domingo, outubro 18, 2015

Luanda


Vivi na cidade que hoje o "Diário de Notícias" diz ser a mais cara do mundo. E, então, era bem barata. Bom, era barata porque não havia nada para comprar...

Foi em 1982 que fui viver para Luanda. Não por escolha minha, mas porque o MNE assim me impôs, como já me tinha imposto a minha anterior ida para a Noruega. O contraste entre ambas as experiências, como se imaginará, não podia ter sido maior. A guerra civil assolava então Angola. Da meia-noite às cinco da manhã, havia "recolher obrigatório". Depois dos jantares, tinhamos de nos despachar para chegar a casa. Os diplomatas podiam obter um "passe" para viajar pela cidade por essas horas noturnas, mas o risco de encontrar as patrulhas armadas, de "kalash" e garrafas de cerveja à mão, era demasiado para valer a pena arriscar. Não me lembro de uma única noite sem tiros, nos quase quatro anos que por lá passei. 

Luanda era uma espécie de "ilha". Por razões de segurança, só algumas dezenas de quilómetros de estrada para sul eram frequentáveis, até à barra do Cuanza, à reserva da Kissama e à praia de Cabo Ledo. Para norte, podia ir-se até ao Cacuaco e pouco mais, aí uns 20 quilómetros. Para leste, viajava-se até Viana, ainda mais perto. Mas, também, para quê ir para aí, subúrbios sem graça e alguns riscos? Em todos os casos, o cenário era comum: estradas esburacadas, fruto do descaso, de serviços públicos desorganizados. Aquele era então o país do gerúndio. Com a desculpa da guerra, as coisas iam-se fazendo. Às vezes, nem isso. 

O hotel onde me alojei pelos primeiros quatro meses tinha um preço ridículo. Mas, também, uma qualidade de serviço a condizer. No restaurante normal, no andar do topo, a comida era apenas sofrível. Caricaturávamos: arroz com peixe frito ao almoço, peixe frito com arroz ao jantar. Por um pouco mais, mas apenas "por gentileza" da direção do hotel (onde andarás tu, meu caro Zé Mário?), comia-se no "grill", uns ligeiros furos acima da cantina do topo, mas onde o "tout Luanda" adorava abancar. Aí, o Smith, o Sambo e outros sorridentes "camaradas" (todos se tratavam assim, por esses tempos) atenuavam, com a sua simpatia, as carências de um país que sentíamos em guerra consigo mesmo. 

Lojas? O Fernando Valpaços vendia artesanato, algumas casas tinham as coisas mais inimagináveis e imprestáveis. Quando, numa loja, se pretendia comprar algo à vista, lá vinha quase sempre a frase: "Não, camarada, não vendemos, aquilo é só para encher montra". Na única livraria: alguma literatura e história angolana, coisas soviéticas traduzidas, o "Avante!" com semanas de atraso. Nem um jornal português. Nem a venerada "A Bola"! Às vezes, corria a notícia: "está a sair" alguma coisa! E lá ia meia Luanda comprar buchas para parafusos ou rolos de cordas ou blocos de papel branco. Precisávamos disso? Claro que não! Mas, como "estava a sair"... Ainda hoje tenho buchas coloridas de Luanda!

A vida social fazia-se na casa uns dos outros. Todos partilhavam o que tinham, o que lhes chegava: de alheiras a whisky, de queijos a champagne, de peixe que alguém trouxera da baía a paté vindo de Paris, de chouriço espanhol a latas de atum. Havia ainda, nos mercados populares, menos baratos, produtos agrícolas, legumes vendidos aos "montinhos" - batata, cenoura, cebola, tomate, etc. E alguma fruta, não muito variada. Deve haver pouca gente mais simpática do que eram as quitandeiras desses lugares de Luanda, riso franco, muito branco, nas caras negras, vivendo as suas carências com a alegria possível. Peixe ia-se arranjando, mas, às vezes, era mais fácil conseguir lagosta (no excelente Mário, em Cabo Ledo, para quem um dia andei à procura de facas "de escalar", em lojas do Cais do Sodré) do que frango ou peru. A carne era o mais difícil. Traziamo-la nas escassas idas a Lisboa, em pequenas arcas frigoríficas. Chegámos a montar o seu fornecimento vindo do Zimbabwe, num voo TAP que chegava antes das cinco da manhã. E abandonámos a compra de carne de porco na ilha de Luanda: sabia a peixe, com que eram alimentados os porcos... 

Ah! Havia a loja diplomática, a "Angodiplo", onde os preços eram mais elevados, mas isso ainda era o menos: os fornecimentos é que eram um "happening". Tanto podia haver trinta espécie de molhos ingleses, como faltar o sal, o azeite ou... o café. Para escapar aos "esquemas" ou à ciclotimia comercial dessa loja, onde, por semanas, as prateleiras chegavam a ser um deserto, mandávamos vir de Lisboa, numa muito atípica mala diplomática, da "Casa Bom Dia", na Infante Santo, um pouco de tudo: de ovos a açúcar, de leite a pilhas, de azeite a lâmpadas, de arroz a ... café! E, claro, para mim, jornais e livros. A chegada semanal da "mala", grandes volumes selados, que se recuperavam a horas muito matinais no aeroporto (deixá-los lá por muito tempo era garantia de ter "mala perdida"...) era um momento de gáudio. Recordo para sempre, dias após a minha chegada, a voz jubilosa do então conselheiro da embaixada, gritando pelos corredores. "La valise est arrivée!". O seu posto anterior fora Paris...

Luanda estava então longe de ser a cidade mais cara do mundo. Mas a vida era muito, mesmo muito, complicada. Porém, éramos novos, aí fizmos grandes amizades para sempre, tivémos experiências únicas. E, de facto, éramos felizes. É por isso que as memórias desse tempo também o são.  

Botelho


Na residência da nossa embaixada em Brasília, onde vivi por uns anos, havia um grande óleo de Carlos Botelho, similar ao desta imagem. Na sala onde estavam belos quadros de Pomar, Resende, Menez e Hogan, e para onde eu levara os meus Palolo, Cruzeiro Seixas, João Vieira, Teresa Magalhães e até um Cesariny, a obra de Botelho ressaltava pelo seu tradicionalismo.

Um dia, dei comigo a tentar refletir por que razão me parecia que aquele quadro não "rimava" com todo o resto. E cheguei a uma conclusão muito pessoal: era eu quem acha muito pouca graça a Carlos Botelho, aquelas "Lisboas" diziam-me muito pouco e - já sei que, para alguns, vou dizer uma "barbaridade"! - acho o pintor sobrevalorizado na sua cotação pública.

Com a idade, ganhei a saudável liberdade para poder dizer que não gosto da maioria dos filmes de Manuel de Oliveira, de que, em geral, Torga me aborrece, de que Régio não faz bem o meu estilo preferido de poesia e coisas assim, como a pintura de Botelho, por exemplo. Guardo para outras ocasiões outros capítulos da minha "lista negativa"...

António Ferro


Há coisas que me "fazem espécie" (gosto cada vez mais de recuperar estas expressões de outro tempo): porque é que alguém escreve um livro com o anunciado propósito de dizer mal de uma determinada figura? Acho normal que se adiante o propósito de "fazer luz" sobre um ou outro aspeto menos conhecido de uma qualquer personagem, mas já me encanita supinamente que, logo desde as primeiras páginas de um livro, alguém deixe claro que o objetivo do texto é apoucar, só porque entende que o "valor" do biografado no imaginário coletivo está demasiado elevado e quer ajudar a baixar a sua "cotação" no mercado das ideias.

Vem isto a propósito de um livro, que já comprei há meses mas cuja leitura só ontem iniciei. Trata-se de uma biografia sobre António Ferro, o propagandista do Estado Novo e de Salazar, figura curiosa de publicista que acabou a sua vida como embaixador político. Ainda vou a meio do grosso volume, mas já deu para perceber que o escriba, um jornalista travestido de historiador (o modelo está aí na moda, talvez numa espécie de vingança pelo facto de alguns historiadores andarem a "armar" em jornalistas) tem como finalidade, pura e simplesmente, dizer mal de Ferro.

Se assim é, por que diabo me disponho a ler o livro, que um amigo meu qualifica de eivado "repelente primarismo"? Por uma razão bem simples: porque tenho por hábito tentar ler tudo (ou quase tudo) o que sai sobre a história politica do século XX. Mesmo coisas deste jaez, porque, nesse tudo, haverá sempre alguma coisa que se aproveita...  

Luisa Sobral


Há dias, num concerto de beneficência, ouvi uma nova (para mim) voz feminina a cujas canções achei bastante graça. Trata-se de Luísa Sobral.

Deixo uma sua canção aqui.

sábado, outubro 17, 2015

Os diplomatas e os "jobs for the boys"

Como sempre acontece em períodos de fim de mandato, os governos que já perceberam que, à sua frente, já só têm o passado tentam arranjar sinecuras para a sua "rapaziada". E toca a inventar uma lugarzitos no aparelho de Estado para pessoal que chegou aos gabinetes ministeriais por via das amizades políticas ou por indicação das "jotas". É com esses lugares, da Segurança Social à gestão hospitalar e outros "tachos" com similar arbítrio nas nomeações, para os quais não fazem concursos e muitas vezes os beneficiados têm apenas habilitação "imprópria", que esse pessoal vai criando currículo que, um dia, apresentará às provas da Cresap, para uns confortáveis lugares de chefia. É a conhecida via partidária para a função pública. PSD e PS são gémeos do vício.

Ainda bem que a comunicação social está atenta a estas manobras e as denuncia, sendo pena - mas essa é uma causa perdida - que o presidente da República, a quem deveria competir cuidar da neutralidade desse Estado de que conjunturalmente é o chefe, não passe um "warning" ao governo cessante,  avisando da ilegitimidade destes procedimentos.

Olhei nos jornais a lista dessas nomeações de "fim de festa" e, com surpresa, deparei com o nome de vários diplomatas. Tenho imensa pena que a educação dos jornalistas os não tenha instruído a separar o trigo do joio. Os diplomatas que saem de alguns gabinetes ministeriais e são colocados em postos no estrangeiro ou em lugares no quadro interno do MNE não vão ocupar nenhum "tacho": são pessoas que pertencem a uma carreira, que foram destacadas para exercer funções relativas à sua qualificação profissional, junto de entidades políticas e que, com toda a naturalidade, numa determinada altura, normalmente coincidindo com o fim de um mandato, retomam a sua carreira. Pode discutir-se se os lugares precisos que vão agora ocupar são ou não adequados à sua senioridade e qualidade profissional. Francamente, não tenho opinião, até porque conheço mal as pessoas, mas isso só à hierarquia do MNE compete ajuizar. Mas não misturemos coisas que não são da mesma natureza.

Espero que os partidos que se opõem à coligação cessante não caiam no erro de confundir com a prática de "jobs for the boys" com a rotação que é normal na vida diplomática. Se assim procederem, cá estaremos para denunciar esse equívoco.

Expresso

Dou hoje uma longa entrevista à Revista do jornal "Expresso", conduzida por Luisa Meireles, essencialmente centrada em política internacional e, em particular, europeia, onde abordo também a política interna portuguesa.

sexta-feira, outubro 16, 2015

E as presidenciais?


Temo que uma agenda política como a que vivemos, obsessivamente centrada na questão do governo, não vá facilitar a que o debate sobre as eleições para a Presidência da República promova um esclarecimento substantivo em torno das propostas dos candidatos a Belém.

Como era quase inevitável, os candidatos, ao longo das próximas semanas, vão transformar-se numa espécie de “comentadores” daquilo que o atual titular do cargo vier ou não a fazer perante a situação política, adiantando como atuariam se acaso estivessem no seu lugar. Numa versão benévola, pode ser que esta emergência, num contexto político que não é especificamente o seu, possa ajudar a avaliar da maior ou menor sensatez e sentido de Estado de cada um.

O resultado das eleições legislativas está a fazer caminhar o país por aquilo que os anglo-saxónicos qualificam de “unchartered waters” ou, usando a frase de Camões, “por mares nunca dantes navegados”. Da mesma maneira que, nos últimos anos, em cada português se descobriu um economista, podemos ter a certeza que todos nos vamos transformar, nos dias que aí estão, em especiosos constitucionalistas, a começar pelos candidatos presidenciais.

Independentemente do saldo final da formação do governo, a próxima legislatura promete ser tudo menos sossegada. Excluídos que parecem estar executivos maioritários, todas as soluções à vista têm um forte potencial de fragilidade. Ora é nos cenários instáveis que o papel de um chefe do Estado é sempre decisivo.

Por essa razão, seria muito importante que o futuro ou a futura Presidente da República trouxesse ao sistema político um sinal de forte autoridade, diria mesmo, de alguma elevação e distância face às forças partidárias.

Não é isto, contudo, que se vislumbra no horizonte, se observarmos o perfil dos três nomes com possibilidades realistas de acesso ao topo da pirâmide institucional do país.

Dois deles emergem dos partidos que estão, e prometem continuar a estar, cada um no seu lado da trincheira política, em aceso e continuado confronto. Por essa razão, ser-lhes-á muito difícil fazer “esquecer” a sua origem partidária, a menos que ensaiem delicados processos de distanciação, quiçá assentes em discursos de “acalmação”. Não estou, contudo, seguro de que consigam ganhar facilmente um estatuto reconhecido como de independência, suscetível de reforçar uma imagem de potencial “honest broker”. O terceiro candidato, a confirmar-se a perspetiva de um governo com o apoio de toda a esquerda, tenderá, com naturalidade, a cavalgar essa onda. E, como é óbvio, isso retirar-lhe-á, no “outro lado”, qualquer imagem de neutralidade e de capacidade potencial para a arbitragem dos futuros conflitos.

Acho que é tempo de nos preocuparmos também com as eleições presidências.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, outubro 15, 2015

Citações a preto e branco

Quando as mensagens que se tentam fazer passar num artigo têm alguma complexidade, o risco da sua simplificação se poder tornar caricatural é muito elevado.

Do artigo que hoje publiquei no "Diário de Notícias", um "site" retirou e titulou com a seguinte frase "O PSD/CDS ganhou as eleições e a ele compete formar governo". O leitor poderá, por aqui, deduzir muito?

O "site", ao qual convinha que esta fosse exatamente a mensagem, escusou-se de acrescentar que eu também dissera que o PSD/CDS, se o não fizer, "a responsabilidade será exclusivamente sua" e que "ao perder a maioria absoluta, deixou de ter condições para impor aos restantes partidos a integralidade do seu programa, tendo assim que fazer fortes cedências, se quiser continuar a governar".

E principalmente, esse "site" não ousou titular algo que eu também disse: "Percebo e partilho o desejo maioritário que prevalece no país de "ver-se livre" da desastrada governação PSD/CDS".

Como vêem, nos tempos que correm, a vida não está fácil para quem não vê o mundo a preto e branco.

MRPP em crise


Agora que os idos de 1975 voltaram à baila (e eu próprio dei hoje a minha contribuição para isso num artigo no DN), eis que o PCTP-MRPP, essa persistente formação, que é um dos mais antigos partidos políticos portugueses (foi criado em 1970, embora então apenas como "movimento"), entrou em grave crise interna. Nos últimos anos, o seu líder tinha sido o histriónico advogado Garcia Pereira, que agora foi afastado de secretário-geral, bem como outros membros do Comité Central (ainda se chamará Comité Lenine, como era nos tempos em que era dirigido por Arnaldo Matos, apresentado como o "grande educador da classe operária?). Esta parece ter sido a maior crise do partido, desde os tempos em que a sua "linha vermelha" (o conceito tem hoje outras leituras no léxico político-jornalístico) se confrontou com uma derrotada "linha negra".

O MRPP, pelo colorido físico e político das suas intervenções e expressões públicas, foi uma das grande "vedetas" desses tempos do "verão quente", com uma política de alianças nunca muito bem explicada. Ao longo dos anos, nunca obteve representação parlamentar, ao contrário da UDP, mas conseguiu manter, em permanência, a sua identidade e a chama política acesas. Emergia nas campanhas legislativas e presidenciais, com uma linguagem tremendista que, neste último sufrágio, para além de pugnar pelo regresso ao escudo e pelo abandono do euro, chegou a apelar, creio que apenas figurativamente, à "morte aos traidores" - frase que levantou uma polémica do seio do partido, a qual, quem sabe?, pode também ter estado na origem desta crise.

Será isto o estertor do MRPP? Logo veremos. Aconteça o que acontecer, o partido ficará para sempre na história política portuguesa. Não é impunemente que uma formação se pode reivindicar de ter tido entre os seus militantes figuras como os governantes do PS Maria João Rodrigues, Vitor Ramalho e José Lamego, do PSD, como Briosa e Gala, Agostinho Branquinho, Durão Barroso ou Franklim Alves, jornalistas como Diana Andringa, Teresa de Sousa ou António Antunes, historiadores como Fernando Rosas ou António José Telo, diplomatas como Ana Gomes ou António Dias, juristas como João Araújo, Maria José Morgado, Romeu Francês ou José António Pinto Ribeiro, bem como outras relevantes figuras já desaparecidas como Saldanha Sanches, Aventino Teixeira, João Isidro ou Freire Antunes. 

Sem a menor ironia, afirmo que o MRPP faz falta à política portuguesa. 

Não estive na Alameda


A governação dos últimos anos induziu uma clivagem quase sem precedentes na sociedade portuguesa. Os descontentes com a política cessante constituem uma maioria, embora negativa, é certo. Os partidos que, titulando essa linha, se apresentaram a eleições não revelaram então que se propunham, conjuntamente, apoiar uma solução alternativa de governo.

Por isso, e de acordo com os hábitos constitucionais portugueses, o PSD-CDS ganhou as eleições e a ele compete formar governo. Porém, ao perder a maioria absoluta, deixou de ter condições para impor aos restantes partidos a integralidade do seu programa, tendo assim de fazer fortes cedências se quiser continuar a governar. Se isso não ocorrer - e a responsabilidade será exclusivamente sua -, o seu programa será rejeitado no Parlamento.

O PS revela-se tentado, nessas condições, a propor ao Parlamento uma alternativa: governar com o programa que apresentou. Um programa que não foi o mais sufragado no voto, mas que obtém um nihil obstat do PCP e do BE.

É aqui que as águas se dividem.

Percebo e partilho o desejo maioritário que prevalece no país de "ver-se livre" da desastrada governação PSD-CDS. Só que discuto o "preço".

Como é óbvio, nada temo de um governo do PS, para cujo programa dei mesmo uma modesta contribuição. Tenho a profunda convicção de que António Costa é, de longe, a personalidade mais bem preparada para ser primeiro-ministro de Portugal, que jamais conduzirá a prática governativa por caminhos que ponham minimamente em causa os compromissos europeus e internacionais do país. É uma figura com grande sentido de Estado e de responsabilidade, que formará um excelente governo. O problema não é esse.

Acontece que não tenho a menor confiança - e reivindico essa liberdade - de que seja possível garantir que o PCP e o BE sustentem, ao longo da legislatura, um apoio contínuo que, por exemplo, permita aprovar eventuais medidas, de natureza institucional ou em matéria de política financeira, que possam vir a ser indispensáveis para garantir a continuidade da nossa presença no euro. Gostava que um regresso do PCP e do Bloco de Esquerda ao mainstream da governação correspondesse a uma sua aberta evolução doutrinária em termos europeus. E, até agora, não vi nada disso, antes pelo contrário.

Em 1975, não estive na Alameda, ao lado de Mário Soares, com o PS à frente, e a direita recolhida atrás, enfrentando uma deriva que podia ter posto em causa a democracia em que hoje, felizmente, vivemos. Por essa época, eu não tinha razão e Soares tinha. Hoje, embora as coisas já não tenham um dramatismo existencial, não me apetece errar de novo.

(Artigo que hoje publico no "Diário de Notícias")

quarta-feira, outubro 14, 2015

O olhar do mundo

Ontem, tive um almoço a convite de um grupo de embaixadores estrangeiros, aos quais interessava conhecer a minha opinião sobre a situação portuguesa.

Pude constatar algumas dúvidas sobre estas "unchartered waters" (Camões diria, "por águas nunca antes navegadas") em que a política portuguesa entrou. 

Houve uma coisa em que fui muito claro e assertivo: não tenho a mais leve dúvida de que o sentido de Estado e de responsabilidade de António Costa o não levará nunca a tomar atitudes, no campo de una eventual governação por si titulada, que ponham em causa, ainda que minimamente, os compromissos europeus ou internacionais de Portugal, nomeadamente os que decorrem do Tratado Orçamental.

Para mim, o principal elemento de risco deste possível modelo de apoio da "esquerda da esquerda" a um governo PS prende-se com as garantias a obter desses aliados ao longo de todo o tempo da legislatura, em especial se vierem a surgir, no plano europeu, circunstâncias novas, em termos da governança do euro, que exijam novos passos institucionais. Não duvido que António Costa esteja a tentar compromissos à luz das circunstâncias do presente. Mas estas valem o que valem, porque importa recordar o que Harold McMillan dizia, sobre o que mais temia em política: "events, dear boy, events". E, num tempo em que apenas os erros dependem de nós, o mercado de futuros é cada vez mais arriscado.

O anonimato


Percebo que o anonimato seja cómodo para quem comenta. Diz-se "n'importe quoi", fazem-se insinuações sem dar a cara, usa-se uma linguagem que não haveria coragem de utilizar se se colocasse o nome por debaixo.

Ao longo destas últimas semanas, dei a esses anónimos "demasiada praça", como se diz nas corridas. Tive mesmo uma "paciência de santo", como alguns amigos se espantaram e é fácil de comprovar nos comentários publicados. O resultado ficou à vista: este espaço transformou-se num instrumento gratuito de agressão e insultos.

Um "filtro" mais restritivo foi agora introduzido. Espero que isso possa reconduzir a alguma serenidade - o que é muito diferente de querer que concordem comigo, bem entendido!

terça-feira, outubro 13, 2015

Memória

Devo ser eu quem tem memória a mais.

Devo ser eu o único que se recorda da "partida" feita pelo Bloco de Esquerda a António Costa na Câmara Municipal de Lisboa.

Devo ser eu o único que se recorda das "tropas" sindicais que Mário Nogueira (leia-se CGTP, leia-se PCP) colocou nas ruas, durante meses, para contestar as políticas educativas de Maria de Lurdes Rodrigues, o que muito contribuiu para o desgaste do penúltimo governo socialista e para a perda da sua maioria absoluta.

Devo ser só eu quem se recorda que PCP e Bloco de Esquerda, mão-na-mão com PSD e CDS, votaram conjuntamente contra o PEC IV, abrindo caminho à "troika" e às eleições que trouxeram uma maioria absoluta PSD/CDS por quatro anos.

É isso: só eu é que me lembro. Mas, porque me lembro, não esqueço.

Agenda breve do dia


1. Almoço, a convite de um grupo de embaixadores estrangeiros em Porrtugal, para análise da situação política portuguesa.

2. À tarde, conferência "Desenvolvimento global é realizável?" num painel sobre a ação da União Europeia em matéria de desenvolvimento, no Museu do Oriente.

3. Ao final da tarde, farei a apresentação do livro "A porteira, a madame e outras histórias de portuguesees em França", de Joana Carvalho Fernandes, na Estação de Santa Apolónia.

4. Ao jantar, participarei numa iniciativa solidária para recolha de fundos para a terrível doença que é a ELA - Esclerose Lateral Amiotrófica.

Futurologia

E se António Costa conseguir criar condições políticas para a formação de um governo minoritário PS, com apoio parlamentar formalizado com o PCP e o BE?

E se Cavaco Silva recusar esse governo, por considerar que, à luz dos critérios de exclusão partidária que enunciou imediatamente após as eleições, não aceita essa solução?

Nesse cenário, que não é totalmente implausível, ambos "ganhariam".

António Costa poderia dizer, alto e bom som, para os ouvidos da esquerda, que tentou tudo para tirar o PCP e o BE do "guetto" político onde se encontravam, o que seria verdade, mas que foi a obstinação do PR que impediu essa solução, a qual, no seu entender, tinha condições para assegurar uma estabilidade governativa.

Cavaco Silva, cujo último desejo é deixar o país com uma "maioria de esquerda", sossegaria assim a sua consciência, faria os mínimos perante a sua família política e regressaria aliviado ao Possolo. Ah! e deixaria a "batata quente" para o seu sucessor.

Nunca ganhei no totoloto, mas acho que esta é uma combinação com hipóteses. 

segunda-feira, outubro 12, 2015

"Casual arrogant"

Há dias, aqui em Lisboa, fui experimentar um restaurante que já tem mais de um ano, mas que não conhecia e nem sequer é "topo de gama". Começo pelo fim: não se comeu mal mas não me ficou na memória o que comi, o que não é o melhor sinal.

Mas esta nota é mais sobre o "estilo". Logo à chegada, quando nos preparávamos para sentar, com uma nota de "autoridade", o patrão lançou do fundo: "Os meninos (sic) venham aqui ver os peixinhos", orientando-nos para umas montras dos peixes e carnes. (Eu admito esta dos "meninos" no Queiróz, de Avelãs do Caminho, e a velhas senhoras em tascas de província, não a um matulão que tinha idade para ser meu filho!). Preços, nem vê-los! Uma lousa a giz (anda aí agora na moda copiar as "ardoises" dos "bistrots" franceses) elencava alguns outros pratos, igualmente sem indicação dos cifrões. Sempre num estilo demasiado à vontade e um ar "rough finaço", com camisa aberta até ao quarto botão, o visível dono falava como se nos conhecesse "de toda a vida" e, volta e meia, dizia graças alto para outras mesas, anunciado "Xandinha, a menina tenha paciência, já aí vou, tá bem?"

Ao pedir a lista, notei uma certa resistência. Foram-nos debitados oralmente, com uma certa displicência, alguns outros pratos, "recomendados pelo chefe". Aí, olhei o rapazola e disse-lhe: "Já provou que tem boa memória. Agora traga-me a lista". Não me pareceu ter apreciado o dito. É que os preços continuavam a não ser vistos em parte alguma. Por fim, lá acabou por chegar o cardápio (um só, para duas pessoas).

Como imaginava, no tocante aos peixes, lá vinha com o espertalhote "p.v.", que é uma maneira de "meterem a unha" olhando a cara do freguês. O empregado (ou devia dizer "colaborador"?) andava por ali com ar de sobrinho disposto a ajudar um tio em dia de folgas do pessoal. Falava como se tivesse um MBA ou vontade de que o tomassem por isso.

No final, surpresa das surpresas, quando pedi fatura, e ao me preparar para dar o NIF, foi-me dito para o dizer alto, através da sala, para o patrão atrás do balcão. A sala ficou a sabê-lo. (Belo método, para desestimular o pedido)

Anda aí numa certa moda, ao gosto de alguns masoquistas seduzidos pelo estilo, esta forma "casual arrogant" de dirigir restaurantes e de lidar com clientes, às vezes assumindo ares graves, como se estivessem a providenciar "haute cuisine" no Noma, no El Bulli ou no Ducasse, outras a dar-se fumos de meninos da sociedade e a permitirem-se ligeirezas com quem não os conhece de parte alguma. Para não me aborrecer, travo-me sempre de lhes dizer aquela frase que um velho amigo meu diz aos proprietários, quando sai insatisfeito de um restaurante: "Vim cá três vezes: a primeira, a única e a última". Foi este o caso.

domingo, outubro 11, 2015

O quadro

Um dia dos anos 80, uma amigo nosso, homem muito generoso, dando-se conta de que lhe havíamos gabado, por mais de uma vez, um belo óleo de Costa Pinheiro que tinha na sua sala, surpreendeu-nos, num jantar, com a oferta do quadro. Não aceitámos. A oferta era totalmente genuína, não tinha outra intenção que não fosse agradar-nos, mas o quadro era bastante valioso e sentir-nos-íamos mal em aceitar aquela que nos parecia ser uma gentileza excessiva.

A vida daquele nosso amigo deu muitas voltas, algumas menos felizes. Morreu há uns anos, para grande saudade das pessoas que dele gostavam. 

Às vezes nos temos perguntado por onde andará aquele belo quadro. Por mera curiosidade. 

Não sei se o atual proprietário, seja ele quem for, neste dia em que foi anunciada a desaparição do pintor António Costa Pinheiro, terá um pensamento para aquele nosso desaparecido amigo.

Geoffrey Howe


Morreu Geoffrey Howe, uma importante figura do conservadorismo britânico. 

Ministro das Finanças e dos Negócios Estrangeiros foram apenas dois dos cargos relevantes daquele que chegaria a "número dois" de Margareth Thatcher, de quem acabaria por se distanciar por discordâncias profundas sobre questões europeias. No seu livro de memórias (sem um especial interesse) "Conflict of Loyalty", ele detalha essas divergências.

Howe era uma figura suave, tanto que o trabalhista Dennis Healey, que o havia antecedido nas Finanças, disse um dia que receber um ataque de Howe era como ser "savaged by a dead sheep".   

sábado, outubro 10, 2015

O dia em que perdi um Presidente


Os portugueses vivem, por estas horas, o início efetivo da corrida à Presidência da República.

Henrique Neto, um militante bastante mal amado no PS, há muito que avançou, embora pouco se tenha visto por ora. Sampaio da Nóvoa, figura exterior aos baralhos partidários, não conseguiu ter o desejado apoio do PS, que o havia pré-lançado, mas vai à luta. Maria de Belém Roseira, anunciou a sua candidatura, que formalizará na próxima semana, sendo a segunda militante socialista a entrar na corrida. Tendo medido cuidadosamente o ambiente à sua esquerda, Marcelo Rebelo de Sousa apresentou ontem aquela que, tudo indica, será a candidatura com que a direita política espera poder conquistar Belém.

Tenho consideração pessoal por todos os nomes referidos, laços de amizade com vários dentre eles, mas posso agora confessar que o meu candidato preferido à Presidência da República era, de há muito, Guilherme de Oliveira Martins.

Trata-se de um cidadão com uma extraordinária - eu diria mesmo, ímpar - preparação em matérias de Estado, com grande equilíbrio político, uma muito rara capacidade de diálogo, um europeísta convicto, para além de possuir de um perfil cultural rico e abrangente, difícil de encontrar entre nós. O seu tempo à frente do Tribunal de Contas honrou a instituição, colocando-a numa posição de prestígio, num tempo polémico e muito complexo. O seu inatacável perfil ético constituir-se-ia numa garantia segura de confiança para todos os portugueses. 

As coisas não correram como eu desejaria. Guilherme Oliveira Martins deixa o cargo de presidente do Tribunal de Contas e passa a integrar o Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian. Embora reconheça que o novo lugar lhe "assenta que nem uma luva", tenho muita pena que não possamos contar com ele no palácio de Belém. Estou certo de que seria um extraordinário Presidente da República portuguesa.

sexta-feira, outubro 09, 2015

Presidenciais

A complexa situação política que resultou das eleições legislativas deixa mais evidente a importância das próximas eleições presidenciais. O papel do chefe do Estado como árbitro institucional da República pode vir a ter, nos tempos que aí vêm, uma relevância ainda mais significativa.

A última década mostrou, à evidência, que uma chefia da República progressivamente enviesada, cúmplice de uma prática governativa que diariamente testou e provocou os limites das regras constitucionais, converteu a Presidência numas das parcelas da equação conservadora que se abateu sobre o país. E não contribuiu para dignificar a instituição.

A delicada situação que Portugal viveu durante a presença da “troika”, com uma tutela internacional sobre as nossas políticas públicas, facilitada por um executivo entusiasta e criativo, perante as receitas radicais que eram impostas ao país, teria justificado que o Presidente da República se tivesse erigido como uma espécie de provedor do interesse dos cidadãos, como um escudo protetor da Constituição que jurara cumprir e fazer cumprir, transformada então na última trincheira de defesa dos direitos coletivos das populações.

O extremismo celerado de algumas das medidas aplicadas ou tentadas por esse tempo sombrio, que trouxe um incontável sofrimento à grande maioria dos portugueses, só foi travado pela coragem e independência do Tribunal Constitucional. Essa instituição foi então atacada e vilipendiada, até no plano internacional, sob estímulo do próprio governo.

Ouviu-se então, da parte do atual ocupante de Belém, uma palavra institucional e política de solidariedade com a corte defensora do diploma fundamental da República? Foi o chefe de Estado capaz de trazer a público a sua voz, exigindo respeito pela separação de poderes e pelo Tribunal Constitucional? Nem por uma vez. Esse imenso silêncio ficou como umas das marcas menos nobres do exercício de funções do atual titular, mesmo num catálogo de omissões ou atitudes dessa natureza onde a escolha não é fácil.

Em claro contraste, cerca de metade do atual período constitucional português havia assistido, na cadeira presidencial, a duas figuras socialistas representarem, com inigualável prestígio, essa mais elevada função do Estado. Mário Soares e Jorge Sampaio encarnaram, cada um a seu modo, uma forma exemplar de exercer o cargo, suscitando confiança nos cidadãos, assegurando uma atenção escrupulosa pelos valores constitucionais e, o que não é menos relevante, projetando com elevação, cultura e respeito o país na ordem internacional.

É assim necessário garantir uma unidade objetiva de vontades que procure assegurar que o próximo Presidente da República recupere a bandeira de independência e dignidade dessas duas presidências exemplares. Tudo deve ser feito para evitar que as forças conservadoras prolonguem, eventualmente num registo apenas mais “animado”, o ciclo que agora acaba, de forma bem penosa.

O Partido Socialista decidiu, e bem, que não tomaria posição oficial por qualquer das candidaturas que entretanto surgiram na sua área política, todas elas tendo já suscitado apoios por parte de figuras do partido.

As candidaturas presidenciais são atos de iniciativa individual. Nenhum presidente será eleito apenas pelos militantes de um partido, quer ele seja seu militante, quer seja uma personalidade com vincada expressão na sua área política. Os candidatos devem conseguir demonstrar que conseguem alargar a sua base de apoio, conquistando apoios num círculo mais vasto, passando barreiras ideológicas, credibilizando a sua personalidade como merecedora de confiança, mostrando estar à altura de tempos complexos em que o país necessite da sua firmeza de convicções, da sua capacidade de interpretar o interesse coletivo, respeitando o jogo partidário mas situando-se acima dele.

A primeira volta das eleições presidenciais deve assim funcionar como uma espécie de eleições primárias onde a existência de excelentes opções prova que a área da esquerda democrática continua a ser o terreno onde é possível encontrar figuras capazes de dignificar a magistratura suprema do país.

Pelas razões que referi no início deste texto, seria de grave irresponsabilidade se os militantes socialistas viessem a alhear-se deste combate. Do seu resultado muito dependerão as condições de governabilidade do país no futuro próximo, bem como a criação de um ambiente de respeito pelos direitos coletivos dos cidadãos, no respeito escrupuloso pelo equilíbrio interinstitucional e pelos princípios da Constituição da República.

(Artigo que hoje publico no "Acção Socialista")

"Pontes por construir"


Ontem, foi lançado em Lisboa o livro "Pontes por construir - Portugal e Alemanha", organizado pela professora Luisa Coelho. Nele escrevem 17 autores, tendo Portugal e a Alemanha como pano de fundo.

O texto pelo qual sou responsável neste livro tem por título "O lugar de Portugal" e o seu objetivo é apresentar ao público alemão (o livro terá uma versão nessa língua) uma perspetiva, naturalmente pessoal e discutível, sobre o modo como Portugal se vê no mundo, na Europa e na sua relação com a Alemanha, não fugindo mesmo às questões mais recentes. Usei uma escrita direta e tão simples quanto a complexidade do tema o permitia, tendo sempre presente a questão da tradução.

Quem estiver interessado em ler a versão portuguesa do meu texto pode fazê-lo aqui.

A solidão política


No domingo passado, o PS perdeu as eleições. Foi o segundo partido mais votado e foi derrotado por essa formação política chamada PSD/CDS. Esta formação, que havia governado os últimos quatro anos com maioria absoluta, perdeu no dia 4 esse privilégio. Daqui em diante, só poderá aprovar medidas com implicação legislativa se vier a contar com a abstenção ou o voto positivo do PS, partindo do princípio que tudo aquilo que o PS não aceitar também não será aceite pelo PCP ou pelo Bloco de Esquerda.

O PS ganhou assim, no futuro parlamento, um verdadeiro direito de veto, tornando-se o partido-charneira da política portuguesa. Porém, esse poder tem de ser gerido com grande habilidade e sentido da medida.

O PS está ciente de que corre o risco de ser chantageado pelo PSD/CDS, o qual, um dia, confortado por uma pressão conjuntural europeia, pode querer dramatizar a situação, alegar ingovernabilidade, ao não contar com uma pontual anuência ou neutralidade socialista, apresentar a demissão e obrigar a eleições antecipadas, em busca de uma nova maioria absoluta.

Mas os riscos não vêm só daí. No outro lado do espetro, o PS sabe que pode ser confrontado pelos partidos à sua esquerda com propostas irrealistas para combater a austeridade, sendo assim colocado em potencial contradição com os compromissos europeus que subscreveu, nomeadamente o Tratado Orçamental, pense-se o que se pensar da racionalidade deste.

O PS está assim “sozinho na praça”. Tem o seu programa, que foi aquilo que levou os seus eleitores a confiarem-lhe o seu voto. É à luz desse programa que o seu comportamento futuro será medido.

Não é sensato pensar que António Costa poderia, algum dia, vir a obter um mandato interno, num compromisso a prazo de uma legislatura, que desse ao PSD/CDS a possibilidade de executar políticas num sentido contrário àquilo que o PS defendeu durante a campanha.

Para o bem e para o mal, o PS não é o Syriza, não dá o dito por não dito, ao virar da esquina.

O PS sabe que não tem condições para impor o seu programa, mas tem plena legitimidade para decidir que tipo de medidas, que venham a surgir, à sua direita ou à sua esquerda, podem merecer a sua aprovação.

Repito o óbvio: o PS perdeu estas eleições. Por isso, estava e deve continuar na oposição, embora agora numa posição mais forte do que aquela que tinha. Um seu regresso ao governo só deve processar-se através de novas eleições, não por “maiorias” contranatura à sua direita, nem por alianças oportunistas, não menos bizarras, com o Bloco de Esquerda ou com o PCP. Porquê? Porque isso está fora da ordem natural das coisas para uma formação política com uma história ímpar de responsabilidade política no Portugal democrático. Não tenho dúvidas que António Costa sabe isto.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, outubro 08, 2015

Que fazer?


Durante o debate entre António Costa e Catarina Martins, a lépida dirigente do Bloco deixou uma insinuante proposta ao líder socialista, para um encontro político no dia 5 de outubro, logo no dia imediato às eleições. Dava a ideia que não havia tempo a perder!

Há pouco, foi anunciado que a reunião prevista para hoje entre o PS e o Bloco foi adiada, a pedido deste partido, para a próxima 2ª feira. É, no mínimo, estranho! Tanta pressa e agora um adiamento, num tempo que se exige de decisões rápidas.

Será que o partido da rua da Palma foi às estantes dos clássicos e está a reler Lenin, em especial o seu "Que fazer?"

Raças humanas


Nadine Morano é uma antiga ministra, uma personalidade política da direita francesa que, em diversas ocasiões, já havia mostrado uma propensão para "flirtar" com algumas das ideias que fazem o seu caminho na extrema-direita do seu país. Diga-se que, nos últimos anos, isso também aconteceu com outras figuras do conservadorismo radical francês, agrupado na ala direita da UMP (partido agora rebatizado de Republicanos), os quais, aqui ou ali, ousaram pisar essa "zona cinzenta", numa manifesta tentativa de penetrar num eleitorado que sentem crescentemente seduzido por Marine Le Pen. Como é evidente, a questão migratória e os problemas de convivência de culturas, religiões e etnias que a França atravessa constituem o essencial desse debate.

O primeiro sinal dessa deriva, que está longe de honrar a direita democrática francesa, foi a atitude de muitos membros da UMP que, eliminados na primeira volta de uma eleição, e confrontados com a necessidade de recomendar aos seus eleitores uma dentre as opções do segundo turno, quebraram expressamente a chamada "regra republicana", que vigorava desde a Segunda Guerra Mundial para a extrema-direita e, em especial, desde que o Front Nacional existe: "tout sauf Front National", significando isso apoiar quem, do setor democrático, estivesse melhor colocado, fossem os socialistas ou mesmo os comunistas. Este princípio vigorou por décadas, mesmo quando o PC francês mantinha uma linha pró-Moscovo declarada: é que todos se recordavam da heroicidade dos comunistas na luta contra o nazi-fascismo. Foi assim triste ver alguns candidatos da UMP recusarem recomendar o voto nos socialistas ou nos comunistas, como forma de barrar o caminho à extrema-direita. Isso significava equiparar a esquerda à extrema-direita, o que é uma conhecida tese reacionária e fascizante. Por alguma razão o contrário nunca se passou: comunistas e socialistas aconselharam sempre o voto no candidato da direita democrática.

Mas voltemos a Nadine Morano. Há dias, num conhecido programa de televisão, Morano cometeu um lapso grave: referiu-se à França como "um país de raça branca". Foi o bom e o bonito! Morano explicou, pensando que isso atenuaria o gesto, que essa era uma expressão que havia sido utilizada pelo general De Gaulle, figura referencial da direita francesa. 

Morano não entendeu que algumas frases ou expressões, ditas numa determinada época, não sobrevivem necessariamente incólumes ao longo dos tempos, sendo sempre necessário fazê-las passar por um teste de contextualização. Com o "politicamente correto" a tomar conta do espaço público, é necessário cada vez mais aos políticos "policiarem-se" no que dizem, por forma a não incorrerem em ditos que possam ser lidos como ofensivos ou, no mínimo, deslocados no tempo. Veja-se o que tem acontecido com as tiradas sexistas e racistas de Donald Trump, o protocandidato republicano americano. E muitos recordarão o "sururu" que entre nós se levantou, com algum exagero, quando, um tanto inadvertidamente e citando uma expressão que fazia parte do património lexical de algumas gerações, o presidente Cavaco Silva se referiu um dia ao 10 de junho, apelidando-o de "dia da raça". Ia caindo "o Carmo e a Trindade"!

Voltando a Morano, devo dizer que me choca um pouco ver Nicolas Sarkozy, chefe do seu partido, os Republicanos (ex-UMP), "deixá-la cair" friamente depois desta declaração, ao ponto de ameaçar retirar-lhe a possibilidade de ser candidata às próximas eleições regionais. É que Sarkozy, curiosamente, conviveu bem com outras figuras do seu partido que desrespeitaram a "regra republicana". E dá-se o caso de que, em tempos muito complicados para o antigo presidente, Nadine Morano esteve sempre e incondicionalmente a seu lado, foi, quase sem paralelo, "a mais sarkozysta dos sarkozystas", defendendo-o nessas ocasiões bem difíceis. Convivo mal com a política quando o oportunismo e ambição esmagam a lealdade. 

quarta-feira, outubro 07, 2015

Ainda o senhor presidente

Não quero parecer que mantenho alguma particular sanha contra o senhor presidente da República, mas também não quero que se diga que, por um qualquer tipo de piedade, que estou certo que os seus eventuais prosélitos seguramente recusariam, ele entrou já numa espécie de inimputabilidade política. Ora o professor Cavaco Silva, ao tomar decisões que a todos nos afetam, expõe-se naturalmente à avaliação crítica dos cidadãos. E enquanto andar por Belém e essas decisões me desagradarem, aqui direi o que penso sobre elas.

O presidente da República, na noite de ontem, não infringiu nenhum preceito constitucional ao ter solicitado ao primeiro-ministro cessante, e presidente do partido mais votado nas eleições, para avaliar da possibilidade de encontrar uma solução de governabilidade (a palavra entrou na moda) que possa limitar aquilo que ele considera serem as desvantagens de um governo minoritário. Não indigitou nenhum primeiro ministro, pelo que não incumpriu o preceito constitucional que obriga à audição prévia dos partidos. 

Contudo, já alimento sérias dúvidas sobre se o senhor presidente não feriu abertamente o espírito constitucional ao ter, liminarmente, eliminado o Bloco de Esquerda e o PCP dos potenciais integrantes de um futuro executivo. A condicionalidade que estabeleceu sobre a necessidade de adesão a certas políticas e a compromissos nacionais na ordem externa, para além de lançar aos olhos exteriores um alarmismo que me parece só ele vislumbra dentro do país (diplomatas estrangeiros telefonaram-me nas últimas horas para tentar perceber que "riscos" se prefiguravam no nosso horizonte), ter-se-ia poupado se o chefe de Estado se tivesse limitado a afirmar que era exigível que os partidos integrantes de um qualquer governo cumprissem... a Constituição da República.

Esse é o único limite de observância imposto às forças democráticas, escolhidas pelo eleitorado com uma legitimidade simétrica à sua. O resto são opções políticas, admito que umas mais sensatas do que outras, mas só isso. Imagino, contudo, que o senhor presidente não tivesse querido reforçar o apelo pelo respeito pela Constituição, porque isso poderia ser lido como uma provocação à maioria cessante, que, nos últimos quatro anos, a tentou violar por diversas vezes, perante o seu cúmplice silêncio.

É importante que se diga que o senhor presidente pediu ao dr. Passos Coelho uma tarefa impossível. Nem o PSD/CDS (acho que devemos começar a referir assim esta nova formação partidária) está disponível para propor aos socialistas de que tanto mal disseram uma entrada no (seu futuro) governo, nem é sensato pensar que António Costa poderia algum dia vir a obter um mandato interno, num compromisso a prazo de uma legislatura, que desse ao novo governo da coligação a possibilidade de executar um conjunto de políticas que vão num sentido exatamente contrário daquilo que defendeu durante a campanha. Felizmente, o PS não é o Syriza, não dá o dito por não dito, ao virar da esquina.

O senhor presidente sabe que está a tentar "sangrar-se em saúde", como se diz na minha terra: quer ficar na história destes seus mandatos pouco notáveis como alguém que tentou tudo para o "consenso", nunca tendo explicado que esse conceito significava necessariamente a sujeição de um partido às políticas de outros.

Tentou isso com António José Seguro e falhou - e todos sabemos hoje que Passos Coelho esteve então na primeira linha da oposição a esse "teatro de consenso", porque isso significava eleições antecipadas. Também nessa altura, o PS não podia, sem o risco de implosão, aceitar esse "consenso". Experimenta agora algo da mesma natureza com António Costa e vai voltar a falhar porque, repito, nem Passos Coelho quer, nem António Costa pode. O senhor presidente sabe isto "de ginjeira", como também se diz, mas quer "ficar bem no retrato" e, de caminho, colocar o ónus político no PS.

O que se vai passar, muito provavelmente, será o cumprimento escrupuloso daquilo que António Costa, sabiamente, disse na noite de domingo, e que aqui repito: "Não inviabilizamos governos sem termos um governo para viabilizar".

O PS perdeu estas eleições: estava e vai continuar na oposição, embora agora numa posição mais forte do que aquela que tinha, não obstante a iniludível derrota que teve. Só regressará ao governo através de eleições, não por acordos contranatura à sua direita, nem por alianças impossíveis com o Bloco de Esquerda ou com o PCP. Não porque esta última opção seja "proibida" pela Constituição ou pelo senhor presidente, mas porque isso está fora da ordem natural das coisas para uma formação política com uma história de responsabilidade que fala por si, no quadro europeu e internacional. O senhor presidente, que conhece o PS, sabe bem que as coisas são assim. Mas "faz de conta" que não sabe.

Restos eleitorais


Numa parede da rua onde hoje moro, manteve-se, por décadas, uma "pixagem", num registo muito amador e primário, que recordava a candidatura comunista às eleições presidenciais de 1976: "Eu voto Pato".

Passando-se isso no bairro da Lapa, tido naquela época revolucionária como um "coio" de burgueses reacionários, posso imaginar que a frase não fosse necessariamente destinada aos moradores da zona, cujo entusiasmo pelo candidato do PCP não devia ser dos mais esfuziantes. Numa sociologia eleitoral de pacotilha, pode mesmo especular-se que o objetivo seria suscitar um sentimento contrastante das "massas" em trânsito, fosse do proletariado apeado de serviço doméstico, fosse de outros trabalhadores que, de elétrico, atravessavam esse terreno do "inimigo de classe". Os 7,59% que Octávio Pato então obteve provou os limites do proselitismo comunista por esse tempo pós-25 de novembro.

A verdade é que a pintura, provando a sua inocuidade, se manteve por lá quase quatro décadas, só tendo desaparecido há uns escassos meses, talvez por decisão de alguma imobiliária, desejosa de evitar perguntas incómodas de um dos muitos chineses que, com visto "gold", pretendem transformar a Lapa num subúrbio de férias de Shangai.

Vem isto a propósito de uma "guerra" impossível que mantenho, desde há muito, contra o insalubre costume dos portugueses de não retirarem os cartazes eleitorais, logo nos dias imediatos aos sufrágios. Para pôr cobro a esta poluição visual, seria necessária legislação com coimas a impor aos partidos que não recolhessem a sua propaganda num prazo a definir. Mas imagino que os legisladores não sejam masoquistas.

Assim, por semanas, senão por meses, lá iremos continuar a cruzar, em posters ou "outdoors" que só a chuva se encarregará de ir degradando, com aquelas caras que nos enxamearam as ruas e as televisões nos últimos meses. Não todas, claro, porque houve duas que, por qualquer mas interessante razão, evitaram essa exposição. Mas, pensando bem, por que diabo os partidos o fariam se as próprias autoridades ainda deixam subsistir, lá para Cabo Ruivo, um letreiro que indica "Expo 98"?

terça-feira, outubro 06, 2015

O CDS ainda existe?

 Na negociação feita com o PSD para a constituição da coligação "Portugal à Frente", é reconhecido que o CDS terá feito um ótimo "negócio". O número de deputados elegíveis que lhe foram consignados correspondeu à projeção dos resultados de 2011, quando todas as avaliações sobre o equilíbrio objetivo com o seu parceiro de coligação indicavam que o seu valor relativo era bem inferior. Tudo aponta para que a "generosidade" do PSD se tivesse ficado a dever ao interesse em proteger o acordo existente entre as duas formações, preservando as vantagens decorrentes da sinergia do conjunto, que é proporcionada pelo método de Hondt. De facto, o recuo de ambos os partidos face ao resultado de 2011 teria sido bem maior se acaso tivessem concorrido isoladamente.

Não obstante esta majoração artificial, o resultado da eleição de domingo debilitou fortemente o CDS na Assembleia da República, colocando-o atrás do Bloco de Esquerda e apenas com um deputado mais que o PCP. Na Madeira e nos Açores, onde o CDS concorreu sozinho, o partido teve resultados catastróficos. Tudo isto legitima a pergunta: que aconteceria hoje ao CDS se acaso se apresentasse isoladamente a eleições? 

No passado, depois de muitos ziguezagues ideológicos, de que a questão europeia foi o caso mais notório, o CDS fixou o seu "fond de commerce" em alguns nichos do mercado polìtico, assentes em questões agrícolas (a "lavoura"), na defesa dos reformados e pensionistas, com um discurso "compationate" que rimava bem com as longínquas raízes democrata-cristãs do partido do Caldas, que também se faziam sentir numa resistência às temáticas mais "fraturantes" da contemporaneidade. Noutro tempo, recordo-me que uma certa reação contra os excessos de tributação ainda colheram a atenção do CDS. Onde tudo isso já vai! 

Hoje, pode dizer-se que a aculturação com a ideologia da "troika", de que o CDS passou de discreto crítico a zeloso executor, com a retórica anti "protetorado" a servir de toque patriótico, levou toda essa especificidade identitária à frente. Não se vislumbra nenhuma bandeira que, com nitidez, alguém possa ligar à imagem do CDS que não acabe por mobilizar, de idêntica forma, o PSD. Onde começa um partido e acaba o outro? 

O CDS, salvo como grupo de pressão para colocação em lugares no aparelho de Estado, ainda existe?

segunda-feira, outubro 05, 2015

António José Teixeira


Acaba de ser anunciada a saída de António José Teixeira da chefia da SIC Notícias. 

Desconheço os motivos desta saída e, confesso, tenho muita pena de vê-lo abandonar uma estação cujo prestígio ganhou muito com o seu profissionalismo e a sua independência. 

5 de outubro


Tive o grato prazer de estar presente na cerimónia solene que, na Câmara Municipal de Lisboa, celebrou esta manhã o 105º aniversário do 5 de outubro de 1910, data que, estou seguro, o próximo parlamento não deixará de aprovar como feriado nacional, a par do 1° de dezembro. A identidade de um país também se faz das datas que marcaram o seu percurso histórico. E só uma insensibilidade insensata tirou dignidade institucional a estas evocações. Aguardo o seu rápido regresso ao calendário afetivo do país.

Fernando Medina fez um excelente discurso, com elevado sentido de Estado. A importância da questão europeia mas, igualmente, as linhas mestras do novo ciclo político que hoje se abre foram por ele realçadas com equilíbrio e rigor. O país deve seguir com atenção este jovem autarca, porque o vai encontrar muito num futuro em que, estou certo, terá um papel decisivo a desempenhar.

O presidente Cavaco Silva, frequentador regular deste evento outonal, só surpreendeu quem o não conhece ou anda muito distraído. Nesta cerimónia, e por uma vez, a sua palavra não suscitou a menor crítica, nenhuma afirmação controversa pôde ser-lhe assacada, evitou com maestria a injustiça de vir a ser acusado de uma leitura enviezada da situação decorrente do sufrágio de ontem. Gerir a palavra desta forma é uma consumada arte, embora a arte seja, como é sabido, uma coisa de leitura não unívoca. Cavaco Silva, que por algumas semanas mais representa a República que lhe saiu em sorte, pode hoje ter concretizado um sonho de mandato: fez o consenso, embora não necessariamente aquele que desejasse. Não teve palmas no seu discurso, não foi interrompido, os apartes que, a seu respeito, possam ter sido ditos foram-nos, seguramente, em voz bastante baixa, pelo que, como habitualmente, nada ouviu nem entendeu. Aplausos tiveram, e fortes, suspendendo o discurso de Fernando Medina, os antigos presidentes presentes, Mário Soares e Jorge Sampaio, já que Ramalho Eanes primou pela ausência. 

Nesta bela cerimónia, só fez falta quem lá esteve.

Um direito de veto

Eram aí umas seis e picos quando um amigo (do género daqueles que têm uma prima que vive com alguém que tem uma "fonte" no MAI ou coisa assim) me disse: "Isto está no papo! Os gajos vão levar uma cabazada das arábias. As sondagens eram uma miragem! Já podes ir abrindo o champanhe!". Adoro estas certezas muito "sportinguistas" e vivo bem com elas, mesmo que nelas nunca acredite. Não abri champanhe nenhum. Nem espumante. Bebi uma cerveja ao fim da noite no Snob, sob o sorriso do Sr. Albino (o Porto tinha ganho), e foi tudo em matéria de libações. Até porque não tinha razões para mais.

(Esclareço que escrevo esta nota sem ter ouvido um único comentador televisivo (nem um!) ao longo da noite. Apenas assisti à declaração de António Costa, tendo acompanhado sem som a coreografia do duo dinâmico da PàF.)

Eu tinha visto bem a composição etária do comício da FIL, tinha olhado com atenção os participantes na arruada do Chiado (muita CDE/CEUD, muita RIA, muita capela do Rato, muito MASPs...), cruzara por toda a parte essa formidável onda socialista de cabelos brancos (ou pintados), a qual, claramente, estava muito longe de poder dar para surfar uma vitória. Há muito que não acreditava que o PS pudesse ganhar estas eleições contra dois partidos coligados (Uma curiosidade: o CDS ainda existirá? Tem ainda programa próprio?), com muita comunicação social complacente, contra um Bloco de Esquerda cujas vedetas femininas raptavam a vontade da gente jovem, contra um PCP que, desde há muito, fizera dos socialistas o seu inimigo principal.

O PS apresentou-se a estas eleições liderado pelo seu mais competente quadro político. Não vale a pena ter quaisquer ilusões. Por muito respeito que me mereça a figura de António José Seguro - e merece-me muito - não considero que tivesse podido obter um resultado melhor do que este (mau) resultado conseguido por António Costa. Ninguém no PS faria melhor. 

As condições políticas que conduziram a esta derrota devem-se a um conjunto de circunstâncias muito desfavoráveis para o PS, algumas das quais têm essencialmente a ver com o próprio partido. O "cisma" Seguro-Costa nunca ficou sarado e deixou sequelas pelo país (agravadas na construção das listas eleitorais), a questão Sócrates esteve sempre "on the back of the mind" dos eleitores e mesmo o episódio Syriza acabou por ter o seu peso subliminar. Nas últimas semanas, ficou também claro que um setor do partido fazia alguma resistência passiva à campanha de Costa (em especial, à medida que as sondagens o iam desfavorecendo) e até a ala "socratista" foi tomando distâncias, como se fosse minimamente sensato que António Costa viesse a colar o PS à luta entre a Justiça e o antigo primeiro-ministro.

Acresce que a coligação, neste caso com a imperdoável anuência inicial de Seguro, deixou fixar no imaginário coletivo a "narrativa" da culpabilidade exclusiva dos socialistas na crise financeira 2010/2011 e António Costa não conseguiu invertê-la, depois da detenção de Sócrates. O governo, cuja governação foi uma espécie de "terceirização" subserviente da receita ditada de Berlim, beneficiou dos equilíbrios conjunturais europeus e, depois, fez uma condução muito competente da campanha, embora utilizando despudoradamente a seu favor a máquina do Estado. Mas quem o não fez no passado, quando pôde, que atire a primeira pedra...

Mas, então, o PS não cometeu erros? Claro que cometeu. O partido fará a sua avaliação, eu fiz e continuo a fazer a minha, com toda a liberdade opinativa. 

O PS não percebeu que, desde há muitos meses, o sentimento popular face à crise tinha mudado. Bastava olhar para o acelerar do consumo das famílias (prova de confiança no futuro), para a interiorização de um sentimento difuso de bem-estar (olhem-se as férias), alambicado diariamente por pequenas medidas oportunistas de facilitação fiscal ou de outra natureza (claro que outros também o fizeram, noutros tempos), para dever ter entendido que o tom catastrofista estava ultrapassado. O país já não estava tão "indignado" como estivera nos tempos da "troika". Por isso, falar obsessivamente do corte das pensões, da emigração, do desemprego e dos truques para o disfarçar e coisas assim era um discurso que já não estava em sintonia com quem queria desesperadamente boas notícias - e que já não tinha ouvidos para quem só lhe lembrava os tempos piores por que passara. O PS deveria ter assumido, sem complexos, que algumas coisas tinham entretanto mudado para melhor. Pior era se assim não fosse! O país ia sentindo isso e, estranhamente, o partido parecia manter uma espécie de permanente discurso "adversativo". É que, se a custo reconhecia que alguma coisa ia bem, logo vinha um "mas" a seguir a essa constatação relutante. O PS dispensou-se de falar para o futuro, deveria ter apresentado quatro ou cinco "bandeiras", medidas emblemáticas, de natureza política (saúde, educação, justiça). Pelo contrário, embrulhou-se em muitas pequenas propostas sem uma coerência global visível, demasiado economicistas. Entreteve-se a falar de um passado que, repito, a maioria dos portugueses quer esquecer, embora, de facto, ele ainda ande por aí no presente, ainda que edulcorado pela propaganda governamental. Mas esqueceu-se que, como dizia o manholas de Santa Comba, em política o que parece é. Este foi um erro de perspetiva.

O PS tentou credibilizar-se com a apresentação de um programa económico realista, que afastasse de si a imagem do despesismo, que o governo da coligação lhe havia colado definitivamente à pele política. Conseguiu-o até ao momento em que esse programa, e alguns dos seus pormenores, se converteu quase no centro exclusivo do debate. Convencido da genialidade intocável desse texto, o PS descurou mesmo a desmontagem das propostas que o governo enviara para Bruxelas e que eram o seu verdadeiro "programa". Com fraco trabalho de casa, em lugar de colocar figuras especializadas credíveis a procurar discutir em público as fragilidades desse tal "programa", deixou enredar o seu líder em discussões penosas, de cariz técnico, a que a coligação conseguiu ligar um ambiente de "insegurança", baseado na difícil explicação da questão da sustentabilidade do sistema de pensões. E António Costa ainda ajudou a potenciar o espetro do medo da "ingovernabilidade" ao não explicar com clareza a sua posição face ao orçamento. Este foi um erro de foco.

O PS, finalmente, deixou-se cair no logro de centrar toda a sua campanha na figura de Costa, pela certeza que tinha da sua imagem ser muito positiva perante o país, pelo capital de simpatia e competência que projetava e até pela ideia de "ganhador" que lhe estava associada em Lisboa. Talvez com receio de uma eventual cacofonia pela dispersão das mensagens, optou por não fazer avançar para a primeira linha de combate os jovens muito talentosos que tem no seu gabinete de estudos, bem como outras novas figuras, algumas incluídas nas listas de deputados, que podia apresentar como a imagem da renovação do partido. A única cara que, desse espetro mais jovem, surgiu com deliberada evidência foi João Galamba, um quadro seguramente muito capaz mas que "esquerdizou" bastante a imagem económica do PS e, como ficou evidente, não contribuiu para evitar a deriva de setores de esquerda para o Bloco (como se vê pelos resultados, o Bloco não tirou votos ao PCP, embora tenha limitado o seu crescimento, subindo exclusivamente à custa do PS). E o PS também não mostrou as muitas mulheres que, pelo país, estiveram na construção da alternativa: caras novas e algumas sem passado político muito firmado, num tempo em que ter passado é quase mais cadastro do que curriculum. Este foi um erro de "casting".    

O PS perdeu. A coligação permanece no poder, mas perdeu a preciosa maioria absoluta, o que a impede de continuar a fazer, como total impunidade, algumas das barbaridades que fez no passado. Agora, dia após dia, se quiser aprovar alguma coisa na Assembleia da República, vai ter de negociar com o PS, num "negócio" que seguramente lhe sairá caro, mas sempre mais "barato" do que fazê-lo com o Bloco ou com o PCP. Espera-se que perceba isso desde cedo. Claro que um dia vai clamar que "assim" não consegue governar e vai pedir eleições antecipadas. Por essa razão é que a eleição presidencial que aí vem é decisiva.

António Costa, na sua declaração final, disse uma coisa muito importante, que é simultaneamente um compromisso e uma nota de responsabilidade: "Não inviabilizamos governos sem termos um governo para viabilizar", deixando ao mesmo tempo bem claro (nomeadamente para ouvidos europeus) que a "esquerda da esquerda" não pode contar com ele para operações que ponham em causa a governabilidade do país. Mas também disse outra coisa: o PS só avalizará políticas que correspondam ao seu programa, pelo que o novo governo terá de ter isso em conta no dia a dia das suas propostas. Nomeadamente nos orçamentos.

O PS perdeu as eleições, mas ganhou um direito de veto. 

domingo, outubro 04, 2015

Começou o inverno!


Chove, venta e os dias que aí vêm não se anunciam promissores.

A chuva, quando cai, cai para todos? Não é bem assim, alguns defendem-se melhor, a vida deu-lhes meios para escapar, com conforto, à inclemência dos elementos. Os mais fracos, esses sentirão as intempéries de forma mais acentuada, sem maneira de se protegerem, acabando por sofrer bastante mais.

É a vida? É, mas podia ser diferente.

VOTE !!!


José Vilhena

Faço parte dos privilegiados que têm (quase) a coleção completa dos livros que José Vilhena editou antes de 25 de abril. São várias dezenas. Ao folhear alguns deles, fico com aquela sensação de distância que temos ao rever certos filmes antigos. O que nos fazia rir nesses textos de Vilhena, pela ousadia e pela insinuação ambígua, perdeu hoje grande parte da sua graça, ou melhor, só nos faz recordar o que éramos quando os líamos.

José Vilhena era um magnífico ilustrador e descobriu, durante a ditadura, um filão editorial. Os pequenos volumes que misturavam desenhos de "capitosas" (era assim que se dizia) e bem "descascadas" pequenas com a crítica feroz aos costumes hipócritas do tempo, com muito anti-clericalismo à mistura, tornavam José Vilhena um autor muito procurado, simultaneamente, pelos seus ávidos leitores e pela polícia, que fazia devastadoras apreensões dessas obras. O rumor que corria de que "saiu mais um livro do Vilhena!" levava-nos a discretos pedidos de "reserva" nas livrarias e tabacarias por onde passava a sua venda. Trocavam-se os volumes entre amigos (masculinos, claro) e, entre gargalhadas, citavam-se algumas das frases mais sonoras dos textos. Vilhena pagou com várias estadas na prisão a sua ousadia, mas imagino que nenhum dos polícias que o prendeu deixava de se divertir com os seus textos - que hoje seriam considerados machistas, sexistas e homofóbicos, aqui e ali com um toque a rondar a pedofilia, que os tempos de então, como é sabido, não condenavam com o rigor atual. Às vezes ponho-me a pensar que um cidadão português de hoje, na casa dos 20 ou dos 30 anos, deve achar uma "charopada" sem o menor sentido se acaso olhar esses badalados escritos do Vilhena, a que tanta piada achávamos.

Com o 25 de abril, tal como aconteceria com as "revistas" do Parque Mayer, José Vilhena "perdeu-se". De início, a "Gaiola Aberta", a revista colorida que passou a editar nesses tempos de liberdade, teve grande popularidade, de certo modo como aconteceu com a "moda" dos filmes eróticos e pornográficos que então invadiu Portugal. Depois, com o tempo e com o desbragamento da linguagem a que passou a recorrer, Vilhena deixou, pelo menos para mim, de ter o menor interesse. Deixou-se cair num registo ordinário, recheado de palavrões, com os próprios "cartoons" a não escaparem a esse declínio de imaginação, embora não na qualidade de traço, que se manteve sempre excelente, servindo porém "scripts" cada vez mais banais.

José Vilhena morreu ontem, aos 88 anos. Andei à procura de uma sua imagem para ilustrar este post. Encontrei algumas muito curiosas, outras que até brincavam com eleições, o que até dava jeito. Optei, porém, por uma bem antiga que, a meu ver, representa muito bem um certo Portugal dos anos 60 ou 70, de que José Vilhena foi um extraordinário retratista.

sábado, outubro 03, 2015

Os inimigos do Barão Vermelho


Ferreira Fernandes elabora hoje no DN sobre Corto Maltese. Tudo bem! Nada me move contra esse aventureiro de cepa maltesa, saído do traço do genial Hugo Pratt, cujas deambulações também tentei seguir, por aqui ou por ali, embora sem o empenho das que FF nos descreve. 

Verifico mesmo que cruzámos algumas esquinas e mares comuns, à sombra das memórias de Corto. Imagino que também ele tenha procurado, nos arredores de Buenos Aires, as míticas "duas luas". Uma noite, convenci quem me acompanhava a fazer essa aventura e acabei por ser brindado com uma lua nova. Ou seriam duas? Nunca se sabe, com uma lua nova...

Como é sabido, Corto Maltese encontrou nos seus caminhos essa figura histórica que foi Manfred von Richthofen, o Barão Vermelho alemão, que atazanou as tropas aliadas na primeira Guerra Mundial. Na crónica, Ferreira Fernandes não alude, creio que deliberadamente, a esse episódio da imensa saga do seu herói de estimação. Pressinto que sei por que o faz. E perdoo-lhe isso. 

É que Ferreira Fernandes sabia que seria indelicado, e até menorizante, fazê-lo no dia de hoje. É que faz hoje precisamente 65 anos que nasceu uma figura cujo imaginário viria a ter combates épicos com Von Richthofen, documentados pela pena de Charles Schultz nos "Peanuts". O Corto, caro Ferreira Fernandes, pode ter criado alguns engulhos ao Barão, personagem cuja cor nos afasta e aproxima. Mas Snoopy, esse herói silencioso, viria a inflingir ao aristocrata alado de Berlim alguns banhos imemoriais de luta, por céus de glória infinda. Não há comparação! Você sabe...

Agora que vamos entrar num tempo em que a paciência de cão vai ser mais necessária do que nunca, e reconhecendo embora que pode ser de valia a "expertise" de Corto com a pirataria que por aí anda, agora ainda mais à solta, devo dizer que anseio ver o Snoopy a morder as canelas dos piratas do pote. Connosco a atiçá-lo, claro!

Nicolau Santos


Na sexta-feira à noite, quase duas centenas de amigos de Nicolau Santos juntaram-se no ISEG para uma "cerimónia" muito especial. 

Nicolau fazia 35 anos de jornalismo e decidiu comemorar a ocasião com uma festa muito especial, nela juntando três ingredientes infalíveis para mais de duas horas muito bem passadas: a amizade, a música e a poesia. Ah! e um copo no final.

Encontrei por lá gente muito diversa, de várias "lateralizações" ideológicas, unida apenas pelo desejo de manifestar ao amigo - mas também ao grande profissional que Nicolau Santos é - o apreço que ele a todos merece, pela sua verticalidade, pela sua competência, pelo seu humor e por aquele modo direto e nada pretensioso como nos serve, regularmente, do melhor jornalismo que se pratica em Portugal.

Foi uma bela festa, Nicolau!

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...