quinta-feira, maio 24, 2012

Samuel Pisar

Há dias em que, por precipitação, falamos demais. Ontem, para mim, foi um deles.

Num jantar, aqui em Paris (alguns comentadores acham que a vida dos diplomatas é feita de jantares: é verdade, temos o hábito, quiçá excessivo, de jantar uma vez por dia), fiquei sentado próximo de um cavalheiro, já de certa idade, que, em determinado momento, e tendo sabido que eu era português, se referiu a uma homenagem que vai ser prestada, na UNESCO, a Aristides de Sousa Mendes. Revelou-me estar envolvido na organização e eu congratulei-me logo com isso, tanto mais que, como o informei, era agora o representante português na UNESCO e também ia colaborar no evento. Porque, à mesa, havia uma senhora de permeio e porque ele falava em voz bastante baixa, não tinha ouvido bem o seu nome. 

A certo passo da conversa, ainda sob o tema Portugal, perguntou-me por Mário Soares e pela sua "simpática esposa", que conhecia bem. Disse-lhe as últimas notícias que sabia de ambos, tendo ele acrescentado: "Um livro meu tem um prefácio de Mário Soares". Com um orgulho algo adolescente (cada vez mais me convenço que nós "adolescemos" com a idade), saiu-me de imediato: "Tem graça! Eu também tenho um livro prefaciado por Mário Soares". Sorrimos e o jantar lá prosseguiu.

Minutos depois, perguntei discretamente à senhora que se interpunha entre mim e o tal cavalheiro, já octogenário: "Tem ideia de como se chama o seu vizinho do lado? Não consegui ouvir o nome dele...". A senhora olhou para o pequeno papel que identificava o conviva e disse, baixo: "Samuel Pisar".

Samuel Pisar? "O" Samuel Pisar, nascido na Polónia, que estivera detido em Auschwitz, que escapou miraculosamente das garras de Mengele e de outros cenários de horror, cujo pai fora morto pela Gestapo? "O" Samuel Pisar que, no fim da guerra, se formara em Oxford e na Sorbonne, e que, naturalizado americano, dera aulas em Harvard e fora assessor económico de John Kennedy? Olhei de viés e, com uma curiosidade acrescida, procurei escutar algo que ele dizia para o outro lado da mesa. Nada de decisivo, apenas elogiava a textura dos espargos que estavam a ser servidos, agora que é a época deles.

No final do jantar, num canto, falámos um pouco da Europa e do lugar de Portugal nela. Samuel Pisar é hoje um senador de uma vida que, como poucos, soube recriar a partir da barbárie e que um dia, ao que agora recordo, escreveu: "hoje, sobrevivente dos sobreviventes, sinto uma obrigação de transmitir algumas verdades que aprendi na minha passagem pelo mais baixo da condição humana e, depois, por alguns dos seus momentos altos".

Nunca me perdoarei de ter, inadvertidamente, "rivalizado" com Samuel Pisar, ao reivindicar ter, como ele, um prefácio de Mário Soares. Ou melhor, e pensando bem, talvez tenha a obrigação de ficar contente por poder ter, com ele, esse honroso ponto em comum. 

quarta-feira, maio 23, 2012

Velharias

Não tenho por hábito regular fazer aqui apologia de outros blogues. Mas, desta vez, não resisto. Um amigo chamou a minha atenção para este magnífico Restos de Colecção, onde se recolhem coisas antigas (como o próprio "c" na palavra "colecção"). 

Este cartaz da União Nacional é imperdível, por todas as razões, em especial por essas em que o leitor está a pensar...

Imprensa

Tem vindo a ser extremamente curioso acompanhar a evolução de alguma imprensa francesa, no período posterior às eleições presidenciais. Com algumas exceções, essa imprensa - não falo dos órgãos regionais, que não acompanho - assumiu, ao longo do último ano, uma clara atitude política, de apoio ou de oposição, em face daqueles que eram os dois principais candidatos. Alguns desses orgãos de comunicação social foram de um seguidismo quase militante, tornando-se verdadeiros instrumentos de campanha, quer na defesa do seu político preferido, quer na diabolização daquele de quem não gostavam.

O resultado das eleições, revertendo a realidade face ao statu quo ante, obrigou a uma reconversão de atitude, a qual, nota-se, não está a ser fácil. Passar da oposição à "situação" (como se dizia no Estado Novo) pressupõe o abandono de um estilo exaltado e a criação de outro mais sereno. Sair de esteio mediático do poder para se transformar numa tribuna acerba de combate requer a adoção de uma nova tipologia jornalística, que se vê até na construção dos títulos. São culturas diferentes, que apenas o tempo ajudará a sedimentar. Para um observador exterior, é, sem dúvida, um fenómeno muito interessante para se observar.

Noto que esta realidade se prolonga aqui também pelos "sites" noticiosos, que, em alguns casos, têm considerável importância e influência. Já a blogosfera não é, em França, tão proeminente como entre nós, aparecendo quase sempre como mero prolongamento escrito de outra ação pública mais visível dos seus titulares.

terça-feira, maio 22, 2012

Defesa e Segurança

A ideia é rever o Conceito Estratégico de Defesa e Segurança no qual se apoia a definição, por Portugal, das opções a seguir em matéria de defesa dos seus interesses enquanto Estado. O método utilizado foi a criação de uma comissão, determinada pelo ministro da Defesa nacional e coordenada pelo professor Luis Fontoura, que inclui personalidades como Gomes Canitilho, Adriano Moreira, António Vitorino, Pinto Balsemão, Severiano Teixeira, Loureiro dos Santos, Fátima Bonifácio, entre outras. O trabalho terá de estar concluído em setembro, a fim de ser apreciado pelo Governo e, posteriormente, ser submetido à Assembleia da República

Ao lado do meu colega embaixador Leonardo Mathias, terei o gosto de representar a diplomacia portuguesa no seio desse grupo de reflexão.

segunda-feira, maio 21, 2012

Ainda e sempre os livros

Há uns dias, revelei aqui o ambiente que a minha casa em Lisboa iria ter quando todos os meus livros chegassem. Este fim de semana, descobri esta forma um pouco mais prática de os arrumar, embora talvez com alguma dificuldade de acesso àqueles que fiquem no meio. Mas não se pode ter tudo, não é?

Se

Durante dois dias, por razões que não vêm para o caso, estive ligeiramente "alheio" à informação sobre o que se passa em Portugal.

Hoje, ao retomar o contacto, leio esta frase do Dr. Jardim Gonçalves, antigo presidente do BCP, a propósito da entrada do Estado nos capitais dos bancos:


Devo dizer que, antes de terminar o dia, vou tentar encontrar uma gramática de língua portuguesa, porque me dou conta de que, afinal, estou um pouco desatualizado quanto à utilização dos pronomes reflexos.

sábado, maio 19, 2012

Amizades & conhecimentos

Custa-me ter de voltar a reiterar esta questão, mas devo esclarecer, uma vez mais, que, por uma questão de meridiana lógica, só posso considerar integrar na minha lista de "amigos" no Facebook, ou de "contactos profissionais" na rede LinkedIn, pessoas que, efetivamente, eu conheça e com as quais tenha relações. 

Fico muito grato a todos os outros, que tiveram ou têm a amabilidade de formular uma solicitação de adesão, mas cada um tem os seus critérios. E este, bom ou mau, é o meu.

sexta-feira, maio 18, 2012

Cargos

aqui havia falado neste assunto, suscitando então reações curiosas. Volto à carga, porque a questão se repete agora.

No novo governo francês, Laurent Fabius acaba de assumir a pasta de ministro dos Negócios Estrangeiros. Trata-se de uma grande figura da vida política francesa, que já foi primeiro-ministro e presidente do parlamento. A indigitação de um antigo chefe do governo para um cargo de ministro não suscitou aqui o menor comentário ou estranheza.

Alguém está a ver, em Portugal, um antigo primeiro-ministro a voltar a integrar um governo, como ministro? Por que será?

Portugal e a guerra

Meaux é uma pequena cidade na periferia de Paris. Há meses, foi lá inaugurado um museu sobre a primeira Guerra Mundial.

Ontem, aproveitando o feriado, visitei esse museu e recolhi esta imagem num documento comemorativo da nossa participação naquela guerra. Verdade seja que foi a única referência a Portugal que por lá encontrei...

Para além dos estudiosos e de algumas pessoas ligadas à zona onde teve lugar a batalha de La Lys, em 9 de abril de 1918, raro é o francês que não se surpreende quando lhe falo na nossa participação na primeira Guerra Mundial.

Em tempo: para alguns comentadores, críticos do nosso comportamento em La Lys, deixo aqui e aqui o que sobre isso penso.

quinta-feira, maio 17, 2012

Novo governo

Jantar, na noite de ontem, numa embaixada europeia.

O novo governo, acabado de ser anunciado minutos antes, fazia parte do "menu". A anfitriã distribuiu mesmo a lista completa - 34 nomes - pelo convivas, para avaliar as reações.

Do lado dos franceses presentes, que não eram necessariamente da cor do novo governo, foi interessante notar os comentários à forte presença de mulheres e de figuras com nomes que indiciavam uma origem estrangeira. O mais evidente era, contudo, a revelação do seu total desconhecimento face a muitos dos nomeados, em grande parte membros de uma nova geração e, apenas em alguns casos, com alguma expressão mediática no período eleitoral. Há uma nova França que chega ao governo.

Da nossa parte, dos diplomatas, uma atitude mais contida impôs-se. Sublinhávamos as nomeações óbvias, notávamos duas ou três novidades, mais ou menos inesperadas. Mas éramos reservados, nas apreciações pessoais. O país não é o nosso, o governo é o da França e, seja quem for que o integre, passa a ser o nosso interlocutor. 

A certo passo, alguém referiu um certo nome, agora ministro num determinado cargo. Praticamente ninguém o conhecia. Eu e um outro colega estrangeiro fizemos então "um figurão": havíamos almoçado com ele, há cerca de duas semanas. A nossa "glória" durou precisamente o tempo que nos demorou a dizer todas as escassas coisas que nos era permitido reportar daquela conversa. Amanhã, depois dos jornais e dos debates televisivos, todos ficarão a saber tanto como nós. Ou mesmo mais.

Não há nada de mais parecido com um "dinêr en ville", aqui em Paris, do que uma conversa num "Café du commerce" da província francesa ou no "Café central" de qualquer vilória nossa. Podem crer.  

quarta-feira, maio 16, 2012

Igreja

Foram cerca de duas dezenas os sacerdotes católicos que hoje reuni num almoço na embaixada. Trata-se de religiosos - portugueses mas também franceses, espanhóis, brasileiros e até angolanos - que prestam serviço junto das comunidades portuguesas e lusófonas, em Paris e arredores. 

Este encontro, que promovo anualmente desde a minha chegada, e onde algumas dessas pessoas acabam por se encontrar pela primeira vez, destina-se a agradecer o trabalho de acompanhamento dos cidadãos portugueses que esses sacerdotes desenvolvem, nomeadamente no domínio social.

A conversa, à mesa, não tinha agenda. Mas o tema dos novos imigrantes portugueses chegados a França esteve no centro das preocupações de quase todos, por se tratar de uma realidade a que é necessário estarmos bem atentos. Curiosas foram as notas deixadas sobre a relação entre a comunidade tradicional e os recém-chegados, com atos de generosa solidariedade dos primeiros, em relação aos segundos, a serem registados por alguns dos presentes.

Ferry

Jules Ferry é a grande referência histórica da educação francesa. Como político, é reconhecido como o introdutor daquilo que hoje é um orgulho de toda a França: a escola gratuita, laica e obrigatória. Morreu em 1893.

O novo presidente francês, François Hollande, quis homenageá-lo no dia da sua tomada de posse, como uma das grandes figuras do pensamento da República.

Aqui del-rei! Uns cocabichinhos da História foram logo desencantar algumas frases de Jules Ferry onde este defendia a superioridade de umas raças sobre as outras, na sua apologia do colonialismo. Nada que, à época, muita gente não pensasse.

Mas como agora está na moda, pelo "politicamente correto", obrigar à releitura crítica das ideias antigas, o presidente François Hollande acabou por ser obrigado, no seu discurso junto ao monumento a Jules Ferry, a fazer notar que parte das suas ideias era inaceitável e não deve servir de exemplo, à luz dos princípios do humanismo contemporâneo.

Pena é que, já agora!, o "politicamente correto" não se alargue à estética. Isso permitiria dizer que também já não são aceitáveis barbas como as que Jules Ferry exibia...

terça-feira, maio 15, 2012

Presidência (2)

Foi uma bela cerimónia aquela a que ontem assisti, como convidado, na "Mairie" de Paris, onde o presidente François Hollande foi recebido "pela cidade", com um discurso emocionado do "maire" Bertrand Delanoe. Com rigor e sentido histórico, ambos lembraram, nas suas intervenções, que Paris está para sempre ligada à data inesquecível na qual Charles de Gaulle inaugurou a nova liberdade francesa, no imediato pós-guerra. Uma recordação justa àquele que foi o fundador da V República que agora, uma vez mais, se renova.

Todos os que estavam no "Hôtel de Ville" desejavam sucesso ao novo presidente, na certeza de que um futuro de progresso da França não é indiferente ao futuro de todos nós, nesta Europa turbulenta e interdependente em que vivemos. Mas todos tinham, da mesma forma, plena consciência de que o presidente francês tem, diante de si, um período muito complexo e, essencialmente, não tem muito tempo para reagir à imensidão de problemas prementes. Nestes dias em que emergem os mais diversos comentários, Michel Rocard, o antigo primeiro-ministro, cometeu mesmo o mais notório lapsus linguæ da temporada, ao dizer: "François Hollande n'aura pas un état de grèce", quando pretendia dizer "de grace"...

Na cerimónia de ontem, naquela grande sala de gala da "Mairie" parisiense, praticamente não cabia mais ninguém. Uma larga área era ocupada por cadeiras onde estavam sentadas muitas figuras que a imprensa dá como potenciais integrantes de um governo que só será anunciado hoje à noite. Um amigo, velho "routier" da política francesa, comentava comigo, olhando os assentos desse núcleo de potenciais governantes: "C'est un paradoxe. Aujourd'hui ils sont tous assis, mais demain pour quelques uns il n'aura pas de places..." 

segunda-feira, maio 14, 2012

Presidência

Hoje, François Hollande, toma posse como novo presidente francês. Apesar da sua eleição se ter processado no termo de uma campanha muito tensa, com grande mobilização popular e forte participação nas urnas, sob uma notória bipolarização, o ambiente que rodeia a chegada do segundo presidente socialista ao Eliseu está já muito longe daquele que, em 1981, marcou a eleição de François Mitterrand. A ascensão democrática de François Hollande é aqui sentida com total naturalidade, como normal teria sido a reeleição do anterior presidente.

As coisas não foram assim em 1981. Vivia-se ainda então um tempo de "guerra fria", com a "détente" a fazer o seu paciente caminho. A entrada dos comunistas no governo francês era vista, por alguns, com um temor histórico quase existencial, sem que houvesse a perceção de que esse passo foi, precisamente, o princípio do fim da grande influência que o PCF detinha na política francesa, desde a Resistência. Recordo-me bem que, ao tempo, algumas "cassandras" falavam mesmo da possibilidade de, dentro em pouco, haver "carros de combate soviéticos na praça da Concórdia".

Ao jantar, comentava com um jovem francês esse ambiente de então, que ele não tinha vivido. E concluímos que o mundo já não é o que era: nos dias de hoje, já nem sequer há soviéticos...

São Moreirense

Acabo de saber e rejubilo: o Moreirense subiu à Primeira Liga!

Há tempos, um cronista de restaurantes que, na revista "Sábado", dava pelo nome de Augusto Maria de Saa, deu a um seu artigo o título de "Já viu jogar o Moreirense?". Que raio de pergunta! Nunca vi jogar o Moreirense, nem faço tenções de o fazer. Mas então, qual a razão do júbilo? 

Porque o texto chamava a atenção para o facto de, precisamente ao lado do estádio do Moreirense, se situar aquele que, para muitos, é o melhor restaurante de Portugal - o "São Gião". (Por mim, já o tinha dito aqui)

Agora, com a equipa vizinha ascendida à divisão principal do nosso futebol, o "São Gião" vai passar a ter nova e farta freguesia. Nestes tempos de troika & tralhas correlativas, é muito bom que o negócio do "São Gião" progrida. Só peço ao Fernando Pedro Nunes que os preços não "sofram" com a avalanche e que continue a garantir-me uma mesa nessa incomparável "catedral" de restauração de Moreira de Cónegos.

domingo, maio 13, 2012

Viagens

Leio hoje anunciado, pelo que deve ser verdade...

No dia 15 de julho, com os meus colegas diplomatas Marcello Mathias e António Monteiro, vou falar em Coimbra, na Quinta das Lágrimas, no Festival das Artes, sobre "As viagens dos portugueses, cinco séculos depois - Ásia, Brasil, África".

O convite partiu do nosso comum amigo José Miguel Júdice e da Fundação Inês de Castro. Esperamos que esta "troika" viajante possa trazer um saldo positivo para a conversa.

sábado, maio 12, 2012

"Paris vs New York"

É um livro divertido, por onde perpassa um humor culto, que traça um olhar sereno, mas muito atento e informado, sobre as dissemelhanças entre Paris e Nova Iorque.

A ideia nasceu num blogue e, já há vários meses, saiu em França um volume de desenhos sobre os contrastes nos hábitos e a vida de duas belas cidades. 

Tendo vivido em ambos os locais, recomendo.

sexta-feira, maio 11, 2012

Cesária lusófona

Ontem, comemorando o dia da Língua portuguesa, os países lusófonos encheram o grande auditório da UNESCO, numa homenagem musical a Cesária Évora, que, no ano passado, morreu aqui em Paris.

Se bem pensarmos, Cesária é uma das poucas intérpretes que hoje é comum a todo o mundo da lusofonia, que com a sua música se identifica com naturalidade. Talvez isso se deva ao facto do seu país de origem, Cabo Verde, ser, enquanto espaço de expressão cultural e humana, um espaço de cruzamento com uma riqueza bastante atípica.

quinta-feira, maio 10, 2012

Chandeigne

Desde há algumas semanas, a Librairie Portugaise et Brésilienne, de Michel Chandeigne, tem novas instalações, no 19/21 rue des Fossés Saint Jacques, Place de Estrapade, 75005 Paris, numa zona próxima do seu antigo endereço, também na zona do Panthéon. Aí pode ser encontrada uma muito boa oferta de títulos em língua portuguesa, originários de vários países, bem como de traduções francesas de muitas obras das culturas que se expressam na nossa língua.

Michel Chandeigne é uma personalidade a quem a cultura portuguesa em França muito deve, quer através das edições que promove, quer pelo trabalho desenvolvido na livraria, quer, igualmente, por toda a difusão da História e da cultura portuguesa que tem feito, em múltiplas conferências e palestras.

quarta-feira, maio 09, 2012

Os "Gês"

Há dias, numa conferência em Paris, Alfredo Valladão, um amigo brasileiro que, há muitos anos, é aqui professor universitário, falou sobre a relação entre o G8 (grupo que reúne os oito países mais industrializados do mundo) e o muito mais recente G20, onde esses Estados estão agora lado-a-lado com os "países emergentes" (como o Brasil ou a Índia) e um conjunto de outros de menor dimensão económica (aliás, já bem mais de 20...).

Numa graça, durante a sua intervenção, Valladão comentou: "No passado, os "emergentes" estavam no menu do G8. Agora estão a comer à mesa com eles". É pura realidade: com a sua crescente relevância à escala mundial, os "emergentes" como que forçaram os G8 a abrirem-se. 

Formalmente, o G8 continua a existir, embora a sua agenda, a regular sempre por consenso, seja cada vez menos substantiva, o que se ficará a dever, em grande parte, às reticências crescentes que chegam das bandas de Moscovo. Já o G20, que teve horas de glória mediática no auge da crise financeira, sendo um palco para afirmação de esperanças salvíficas de um novo entendimento universal, parece estar hoje em alguma "panne" decisória significativa, passado que foi, para alguns, o momento maior do susto.

Portugal, que não tem dimensão económica para poder ter ambição sequer de entrar no G20, olha para estes fóruns de designação cooptativa a uma certa distância, cabendo-lhe apenas tentar neles projetar os seus interesses, nomeadamente através da União europeia e de outros países com os quais tenha especiais relações ou identidade de posições. Mas, a prazo, o nosso país tem uma obrigação estratégica de lutar para que as decisões que possam afetar os seus interesses como país sejam reconduzidas para as estruturas multilaterais competentes, nomeadamente as Nações Unidas e as suas agências, bem como as instituições de Bretton Woods (FMI e Banco mundial). Os países mais fracos não têm nenhuma vantagem de verem decidido pelo outros o seu destino e, muito em especial, têm sempre a ganhar em que o processo decisório que os afete assente em modelos de representação democrática, controlada por regras transparentes e equitativas. E é uma evidência que o G8 e o G20, sendo uma realidade incontornável que há que ter em conta, estão muito longe de poderem, com total legitimidade, representar a comunidade internacional.

Emmanuel

Emmanuel Demarcy-Mota recebeu na passada semana, as insígnias da "Légion d'honneur", a mais prestigiada das condecorações francesas. Tive o gosto de estar presente, como seu convidado, nesta cerimónia, representando um país que o Emmanuel sempre identifica e reivindica publicamente como seu, a par da sua orgulhosa cidadania francesa.

aqui se falou, por mais de uma vez, de Emmanuel. Mas creio que muitos portugueses desconhecem ainda que o teatro, em França, tem hoje um cidadão luso-francês como um dos seus maiores expoentes. Com apenas 41 anos, o atual diretor do "Théâtre de la Ville" tem já uma impressionante carreira, feita de grandes sucessos. Mas gostava de sublinhar, porque sou disso uma testemunha privilegiada, que Emmanuel Démarcy-Mota tem sido igualmente o empenhado promotor de uma dedicada cooperação com várias instituições artísticas portuguesas. Também, nós, por isso, lhe devemos uma palavra de gratidão, que aqui quero deixar registada, a par de um abraço amigo de felicitações.

No agradecimento ao ministro Frédéric Mitterrand, Emmanuel Demarcy-Mota prometeu "travailler plus pour partager plus", uma expressão que é uma subtil e não inocente evolução do "travailler plus pour gagner plus", que o agora cessante presidente da República lançou, em 2007, como lema programático para a sociedade francesa durante o seu mandato.  

terça-feira, maio 08, 2012

Obra-prima

Aquele membro de um gabinete político estava contentíssimo. E com razão. Naquela viagem de Estado, num mercado de arte, fizera uma compra de um belo quadro, uma cópia perfeita de uma conhecida obra-prima. E o preço fora bem razoável.

Simpático, não se cansava de avisar os outros membros da delegação das oportunidades do mercado de arte local: "Vocês não percam esta oportunidade! Aproveitem! São cópias autênticas..."

A República francesa

Nada obrigava Nicolas Sarkozy a convidar François Hollande a estar, ao seu lado, nas comemorações que, esta manhã, tiveram lugar, no Arco do Triunfo, para celebrar o aniversário do fim da segunda Grande guerra. E, para o recém-eleito presidente, estava longe de ser obrigatória a sua presença na cerimónia, numa posição que, apesar de tudo, não deixava de ser secundária.

Mas ambos o fizeram, ultrapassando, com uma grande dignidade republicana, a acrimónia de uma campanha eleitoral muito dura, com a finalidade de transmitirem a imagem de uma França que deve estar unida nas suas grandes datas nacionais, ao mesmo tempo que marca um sentido profundo da continuidade do Estado. Esta foi mais uma bela lição que a democracia francesa deu ao mundo.

segunda-feira, maio 07, 2012

A mesa

O secretário de embaixada, naquele posto diplomático isolado, num qualquer lugar do mundo, numa cidade cujo nome me escapa, conhecia ainda mal o seu novo embaixador, que há dias havia chegado. 

Já dera para perceber que se tratava de uma personalidade algo solitária, um pouco sentenciosa, com ideias muito firmes a propósito de tudo. E parecia ser, pelo menos a avaliar por certas atitudes, uma pessoa algo desconfiada. Mas era simpático, e isso é sempre o mais importante, numa embaixada pequena, onde é decisivo preservar uma boa relação entre o chefe de missão e o seu direto e único colaborador diplomático.

O secretário ficou agradavelmente surpreendido quando, numa manhã, o novo embaixador o chamou e inquiriu: "Você, que já está cá há um tempo, diga-me lá: qual é o melhor restaurante da cidade?". O jovem diplomata hesitou um pouco. Os seus "cabedais" não davam para frequentar muito os melhores restaurantes, naquela que era considerada, ao tempo, uma das cidades mais caras do mundo. Mas, naturalmente, ouvira falar nos mais badalados lugares dessa capital. E, sob reserva de não ainda lá ido, indicou um nome bastante conhecido.

O embaixador, além de simpático, era uma homem generoso, como o gesto imediato demonstrou e o futuro viria a provar. "Se você não tiver nada combinado, convido-o para almoçar nesse restaurante", disse o embaixador. O secretário estava disponível, achou graça à ideia e, de imediato, acedeu ao pedido do seu novo chefe para providenciar a marcação de uma mesa. Na conversa telefónica com o restaurante, deixou cair que a reserva era para o embaixador português, por forma a procurar assegurar um acolhimento à altura.

Chegados ao restaurante tiveram, de facto, um tratamento singularizado. O "maître" veio esperá-los e, desde logo, identificou o embaixador, a quem designou pelo seu título. O secretário julgava que o seu chefe havia ficado satisfeito com o facto, mas só até ao momento em que se viu, em voz baixa e desagradada, criticado pela indiscrição cometida: "Quem é que o mandou dizer que eu era embaixador?" O secretário ainda balbuciou algo, mas logo foram conduzidos, em grande estilo, através da larga sala. 

Chegaram à mesa. Tinha uma vista magnífica, sobre a cidade, junto a uma varanda isolada, num espaço algo recatado e protegido do resto da sala. O secretário pensou para consigo: "Com uma mesa destas, o homem já deve estar a pensar que, afinal, fiz bem em revelar que ele era embaixador". Enganou-se.

O embaixador estacou, fez uma cara séria e, voltando-se para o "maître d'hôtel", perguntou: "Não tem outra mesa disponível?". O homem ficou siderado. Havia, de facto, vários outras mesas vagas na sala, mas aquela era, flagrantemente, "a" mesa do restaurante, seguramente a mais requestada pelos clientes. Desejoso de agradar, o funcionário ainda tentou explicar que aquele era o melhor lugar da sala. Irredutível, o embaixador escolheu outra mesa e, já perante o embaraço e a perplexidade do seu secretário, lá se sentou, pedindo o menu e a carta de vinhos.

Passaram-se uns instantes, em silêncio, até que o embaixador olhou o secretário e lhe disse: "Meu caro, você é um jovem, este é o seu primeiro posto, ainda tem uma grande experiência a ganhar. Não devia ter dito que era o embaixador de Portugal que vinha aqui almoçar. Isso identifica-nos e coloca-nos logo sob observação". O comentário era bizarro, mas mais estranha foi ainda a revelação que se seguiu: "E sabe porque é que eu não aceitei aquela  mesa, embora tivesse uma excelente vista?". O secretário não sabia, aliás, já concluíra que não percebia nada do que se estava a passar. "Porque aquela mesa que nos deram, pela certa!, é uma mesa com microfones. A nossa conversa ia ser escutada. Isto é um mundo muito complexo, meu caro. Com os anos, você verá!", disse o embaixador, já pedindo o vinho, e mudando de conversa.

O secretário ficou aquilo a que os franceses chamam "bouche bée". Começava a conhecer melhor o embaixador que lhe "calhara em rifa" e, intimamente dividido entre saber se os seus próximos anos iam ser divertidos ou complicados, perguntava-se (mas não perguntou ao seu chefe, porque percebia que já não valia a pena) que utilidade teria para os serviços secretos desse país gravarem, traduzirem e "tratarem" em termos de "intelligence" a conversa de circunstância entre um embaixador português e o seu secretário. 

Grécia


Hoje

A França acordou hoje diferente, por sua livre vontade, por deliberada opção em favor da mudança, num tempo em que a preocupação com o futuro levou uma maioria de eleitores a designar, para a chefia do Estado e para a condução da governação, alguém que lhes propõe novos rumos. 

Durante semanas, assistimos por aqui a um magnífico exercício de democracia, a debates com grande vivacidade e à livre contraposição de projetos. Como tem vindo a acontecer um pouco pela Europa, nesse espaço de liberdade emergiram algumas vozes e ideias que acordaram perigosos e divisivos fantasmas. Mas a França é um velho e grande país, habituado a este tipo de embates, com instituições fortes e respeitadas. O futuro da democracia francesa não apresenta quaisquer nuvens.

Para Portugal, um amigo tradicional da França, onde hoje vive a nossa maior comunidade no exterior e onde se integraram já, de uma forma quase ímpar, centenas de milhares de cidadãos de origem portuguesa, a solidez do processo político francês é uma garantia da estabilidade naquele que é hoje um dos nossos principais parceiros comerciais e turísticos, bem como o nosso maior investidor externo. Mas, mais importante do que isso, um país com o qual partilhamos essa comunidade de valores e de destino que é a Europa comunitária, a qual, podendo ter imensos problemas para resolver, continua a ser, ainda assim, o espaço privilegiado onde, para eles, poderão ser encontradas as necessárias soluções.   

domingo, maio 06, 2012

O ministro presciente

Na passada sexta-feira, numa cerimónia a que assisti no ministério francês da Cultura, o ministro Frédéric Mitterrand falava, a certo ponto, de algumas das canções mais famosas de Helène Segara, sublinhando aquilo que a sua memória retivera de cada uma delas.

Quando lembrava a canção "Je vous aime, adieu!", suspendeu a leitura do texto, voltou-se para a assistência e perguntou-se: "Por que será que, nesta altura, isto tem algum sentido?"

A sala reagiu, com sonoras gargalhadas, à graça presciente do ministro da administração de Nicolas Sarkozy, que também poderá não ter esquecido, nesse mesmo instante, a sua qualidade de sobrinho de um socialista homónimo chegado à presidência da República francesa.

sábado, maio 05, 2012

Nós e a França

Não deixa de ser interessante verificar o modo como a atual política interna francesa tem vindo a ser acompanhada em Portugal, a começar pela importância que foi dada ao recente debate eleitoral, que chegou a ser transmitido em direto em televisões do nosso país. Nestes dias, há por Paris um número significativo de jornalistas portugueses e os nossos comentadores domésticos desdobram-se em imaginativas especulações, algumas muito bem informadas, outras nem por isso.

Será que a decisão política que os franceses hoje vão tomar, a nível interno, é assim tão importante para nós? Será ela relevante para as centenas de milhares de cidadãos portugueses, ou de origem portuguesa, que por aqui vivem? O impacto de tal escolha naquilo que a Europa comunitária pode vir a definir, em matéria de políticas económico-financeiras, terá reflexos para Portugal? 

A resposta é sempre positiva a todas as perguntas, embora esse "sim" encerre perspetivas contraditórias. Só o futuro terá razão.

Justiças

O caso Madeleine McCann volta a ser citado na imprensa sensacionalista britânica. Do outro lado da Mancha, leem-se, no "The Sun" e em outras folhas de idêntico jaez, "farpas" sobre a qualidade da justiça e da polícia portuguesas, acusadas de ineficácia na investigação. 

Não tenho nenhuma opinião particular sobre este assunto, mas tenho, há muito, uma ideia bem formada de que existe, em alguns países do norte da Europa, um preconceito arraigado contra a justiça "do sul". Isso leva, por exemplo, a que, quase por sistema, quando um cidadão desses países é detido, em casos com algum reflexo mediático, num país desse mesmo "sul" (quando isso acontece em África ou na América Latina, é quase automático), sobre ele se abata, regularmente, uma espécie de presunção natural de inocência e se crie um clamor público a reclamar a sua libertação ou a contestar a duração das decisões judiciais (estou certo que, neste ponto, alguns lembrarão o caso Vale e Azevedo...). A imprensa, ecoando a reação natural das famílias e de grupos de amigos, torna-se então portadora de um juízo de diabolização do sistema judicial do Estado onde o incidente ocorreu, degradando com a sua imagem. Leia-se o que se diz no site britânico Prisioner's Abroad, para se perceber melhor o que acabo de notar.

Um dia, na primeira metade dos anos 90, uma criança inglesa apareceu morta no Algarve. A nossa embaixada em Londres foi então invadida por comunicações escritas e telegramas insultuosos, considerando Portugal "uma selva", um paraíso para os criminosos, um mundo de impunidade e irresponsabilidade. Com o tropismo a que acima fiz referência, a imprensa "tablóide" britânica ridicularizou Portugal e a polícia portuguesa. Deputados e lordes irados, mobilizados pelas suas "constituencies", escreveram e foram mesmo recebidos na embaixada, bradando contra o nosso sistema de justiça.

Poucas semanas mais tarde, a nossa polícia descobriu o criminoso: um cidadão britânico, amigo da familia. De um momento para o outro, a imprensa britânica silenciou. Passaram alguns meses. A medo, amigos do detido, começaram a reclamar, na mesma imprensa, contra as prisões portuguesas e sobre os riscos que o assassino nelas correria. É assim...

Porto de Abrigo

Leio hoje que terá fechado, em Lisboa, o "Porto de Abrigo", um velho e tradicional restaurante nos Remolares, ao Cais do Sodré, onde o arroz de pato foi, durante décadas, um clássico. A este propósito, veio-me à memória uma história passada, creio que em 1999, com Mário Soares, à saida de uma conferência sobre a Europa, no Ritz, que tivera como convidado François Hollande, de quem muito se fala por aqui nestes dias.

Mário Soares e eu havíamos decidido ir almoçar a um determinado restaurante da "baixa" de Lisboa. Ao aproximarmo-nos da porta, um casal idoso que passava abordou o antigo presidente, tendo a senhora inquirido: "Não se lembra de nós?" Mário Soares procurou ser simpático mas, com toda a naturalidade, não podia recordar a imensidão de gente que cruzou na vida e que, a ele, o identifica sempre sem dificuldade. Já fui testemunha de cenas similares, também passadas com Mário Soares, nas ruas de Paris, de Roma, de Estrasburgo e até de Jerusalém.

A senhora lembrou, então: "Até há pouco tempo, nós fomos os donos do "Porto de Abrigo" e, várias vezes, a pedido da dra. Maria Barroso, íamos levar-lhe comida do nosso restaurante, ao Aljube, onde o senhor doutor estava preso por motivos políticos". Mário Soares não me pareceu recordar-se precisamente dos factos, mas saudou com alguma afetividade aqueles que ajudaram a atenuar  o peso desses dias difíceis, proprietários daquela que era uma bem simpática casa de restauração de uma Lisboa de outros tempos. Que, infelizmente, acabou, como, felizmente, acabou o Aljube.   

sexta-feira, maio 04, 2012

Eça em Paris

Eça de Queiroz, recém-chegado a Paris, habitou, durante cerca de dois anos, no nº 5 da rue Crevaux (na imagem), numa zona próxima da nossa embaixada.

Até agora, essa é a única das moradas do escritor na capital francesa onde a sua memória não está assinalada. A falha vai ser corrigida, espero, dentro de pouco tempo. Depois de algumas peripécias, conseguiu-se obter autorização dos proprietários do prédio para nele afixar a devida placa.

Será que, perante tantou outros problemas para resolver, a questão da memória da cultura nas paredes tem alguma importância, perguntar-se-ão alguns leitores? Claro que tem! Ora Eça!

quinta-feira, maio 03, 2012

O mistério Maddie

Um elemento bizarro que, desde o início, me intriga no caso McCann é o facto da generalidade da imprensa continuar a tratar a criança, como ainda há pouco ouvi na nossa televisão, por Maddie, quando os respetivos pais já afirmaram, por mais de uma vez, que nunca a designaram por esse nome e sempre a trataram por Madeleine.

Será que a comunicação social já tem, ela própria, o direito de criar diminutivos? 

quarta-feira, maio 02, 2012

Fernando Lopes (1935-2012)


Olá, Fernando.

Acabo de saber que, para si, já “Era uma vez... amanhã". O seu "Gérard, fotógrafo", que nestes dias se mostra aqui por Paris, não poderá assim “Matar Saudades” suas, porque é, ele também, um “Encoberto” nesse “Voo da Amizade”, a uma "Altitude 114", por onde, há muito, já andava o “Belarmino”, esse seu “Delfim” de uma “Lisboa” da qual, como ninguém, você desenhou a “Crónica dos Bons Malandros”, aqueles que andam por aí, “Ela por ela”, a atirar aos outros: “Tomai lá do O’Neill”!

Todos sabemos que você não era muito dado a olhar “O Fio do Horizonte", mas a verdade é que se fechou agora o semáforo, Fernando, aquele “Vermelho, Amarelo e Verde” que durante tanto tempo lhe abria o caminho, entre “As Palavras e os Fios” das conversas na barra do Gambrinus, para a “Rota do Progresso”, que você percorria a “98 octanas”, retribuindo "Os Sorrisos do Destino" que queria para todos nós, com que numa longa noite sonhámos, em Viena, com outros amigos, até vermos o  "Cruzeiro do Sul" aparecer no fundo de uma garrafa de JB.

Para trás, fica a criação entusiasmada desse seu “Cinema” magnífico, essa sua representação dos "Sons e Cores de Portugal", qual "Domingos Sequeira" da película, onde registou, para sempre, “As Pedras e o Tempo” deste seu "Habitat", deste Portugal que, “Se Deus Quiser”, ainda há-de ser “A Aventura Calculada” pela qual você sempre lutou, embora sem "As Armas e o Povo" na rua, que "Este Século em que Vivemos" já dispensa mobilizar de novo.

Parte agora, meu caro, para um eterno "Interlude", como “Uma Abelha na Chuva” que hoje a todos nos encharca de tristeza. Você que, entre muito poucos dessa sua arte, era daqueles em que, ao ler-se no jornal “Hoje, Estreia”, ao lado de "Marçano, precisa-se", se podia ter a certeza de ter como “Nacionalidade: português”. Bem mais do que alguns que, de "The Bowler Hat" na mão para os subsídios, andam por aí a mimar o que se faz "Lá Fora"

“Nós por cá todos bem”? Não, Fernando, nós ficamos, "The Lonely Ones", em "Câmara Lenta", muito mais pobres, sem si e sem o seu cinema.

Com um beijo amigo à Maria João, deixo-lhe um abraço, já em “contre plongée”   

Debate

A França vai viver, na noite de hoje, um daqueles momentos que a sua história política irá registar para sempre: o tradicional debate televisivo entre os dois candidatos apurados para a segunda volta da eleição presidencial. Digo tradicional, mas não digo obrigatório, porque Jacques Chirac se recusou a esse ritual quando, em 2002, ficou surpreendentemente frente-a-frente a Jean-Marie Le Pen. 

Este tipo de debates políticos tem, em Portugal, uma tradição mais recente. Quem tem idade, ou interesse por isso, lembra-se bem do confronto, em novembro de 1975, entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, num contexto político muito tenso, se bem que não eleitoral. Essas quatro horas de discussão, ficariam marcadas pela expressão, que, a partir daí, se tornou clássica, várias vezes repetida pelo líder comunista -  "Olhe que não! Olhe que não!" -, quando Soares acusava o PCP já não sei bem de quê, em concreto. Dos restantes debates presidenciais ou entre candidatos ao lugar de primeiro-ministro, guardo naturalmente algumas recordações fortes, embora confesse que nenhuma delas, sem exceção, integra as minhas memórias admirativas.

Neste capítulo, a França tem momentos que ficaram para sempre no imaginário coletivo. Em 1974, Mitterrand ficou claramente desestabilizado quando Giscard d'Estaing lhe disse: "vous n'avez pas le monopole du coeur", referindo-se àquilo que alguma esquerda considera ser a sua superioridade moral. Sete anos mais tarde, na desforra política que o levaria finalmente ao Eliseu, o líder socialista, ao ser acusado de ser "l'homme du passé", respondeu a Giscard que, nesse caso, então ele era "l'homme du passif", atendendo à situação económica que herdava. Mitterrand, na sua recandidatura em 1988, seria ainda autor de uma "blague" deliciosa, quando Jacques Chirac, seu primeiro ministro num governo de "coabitação" (presidente de cor política diferente do executivo), de quem era opositor na eleição presidencial, afirmou que os cargos que ambos assumiam deveriam ser esquecidos durante o debate, razão por que iria passar a tratá-lo simplesmente por "senhor Mitterrand". A resposta do socialista foi tão fulminante - "vous avez tout à fait raison, monsieur le Premier ministre!" - que Chirac ficou afetado para o resto do confronto, chegando, a certo ponto, a dirigir-se a Mitterrand como... "monsieur le Président"!

Logo à noite, esperam-nos duas horas e 40 minutos de debate intenso. A negociação entre as candidaturas, entre outros pormenores, decidiu que o ambiente do estúdio esteja a 19ºC. Mas, pelo que tenho ouvido e sentido, a temperatura vai subir bem mais na casa dos franceses.  

(Em tempo: não esperem que este blogue opine sobre quem ganhou ou perdeu o debate, claro!)

terça-feira, maio 01, 2012

Sondagem

Neste tempo em que a França vive mergulhada numa obsessão de sondagens (que, quem quiser, pode acompanhar, clicando no alto, à direita, neste blogue), resolvi fazer as minhas, mas, neste caso, quanto à percentagem de espaço que irei ter para viver, na minha casa em Portugal, quando por lá chegarem todos os meus livros.

A imagem junta antecipa o cenário que me espera.

segunda-feira, abril 30, 2012

A rainha e os ovos

No blogue Ié-Ié, Luis Pinheiro de Almeida publicou o plano da mesa do jantar de Estado que, fez ontem precisamente 19 anos, o então presidente Mário Soares ofereceu à rainha Isabel II, na nossa embaixada em Londres.

Estive presente nesse jantar, não por qualquer mérito próprio, mas porque era então o "número dois" da nossa missão diplomática na capital britânica, tendo a meu cargo a coordenação, substantiva e adjetiva, dessa mesma visita.

A deslocação de Mário Soares ao Reino Unido foi um trabalho interessante, mas algo delicado. No plano luso-português, foi necessário muito bom-senso, por forma a conseguir acomodar algumas sensibilidades políticas internas, atitude que, à época, os frágeis equilíbrios políticos interinstitucionais aconselhavam. Na ordem externa, havia que ter em conta que os britânicos não são nada flexíveis na montagem de uma deslocação "de Estado", porque tendem a impor as suas regras, tidas quase por consuetudinárias. Neste tipo de visitas - e, na minha carreira, fui responsável por algumas - as embaixadas vivem, quase sempre, "esmagadas" entre os dois serviços de protocolo, acabando por ser uma charneira onde ambos os lados descarregam as suas diferenças e vontades. 

A anteceder uma visita de Estado, várias semanas antes, a capital envia aos postos uma missão preparatória, que desejavelmente deixa os principais aspetos da visita já encaminhados. Dessa vez, os colegas vindos de Lisboa eram chefiados pelo próprio chefe do protocolo de Estado, um funcionário superior do MNE. 

Na sala de reuniões da nossa embaixada em Londres, o "staff" da embaixada que estava envolvido na visita e o grupo vindo de Lisboa discutia, a certo passo, o menu do banquete. O "catering" era local, recomendado pela casa real. Optou-se por um menu clássico, europeu. Para projetar a diferença portuguesa nessa refeição, restavam, assim, os vinhos e as sobremesas.

Nos vinhos, não foi fácil o consenso. Mas conseguiu-se. Na discussão das sobremesas, o nosso chefe do protocolo foi arriscando algumas sugestões. Parte delas foram sendo, desde logo, afastadas liminarmente pelo nosso embaixador em Londres, que falava com a autoridade da sua lendária - e indiscutível - competência gastronómica. Outras iam sendo retidas, para posterior ponderação. Até que, a certo momento, o chefe do protocolo decidiu avançar a ideia de se servirem trouxas de ovos. 

A reação do embaixador foi tremenda e sonora: "Ó homem! Trouxas de ovos?! Então você não sabe que a rainha não come ovos?". 

O chefe do protocolo, que carregava já, nesses dias, um histórico pouco suave de troca de argumentos com o embaixador, espantou-se: "Ai é!? A rainha não come ovos!?". E olhou em volta, procurando solidariedade no seu desconhecimento dessa suposta pecularidade dietética da soberana britânica, que, pelo tom de esmagadora evidência que fora assumido pelo seu colega em posto, era, com toda a certeza, uma banalidade informativa a que, por alguma razão, ele não tivera antecipado acesso. 

Eu estava sentado em frente do chefe do protocolo. Mantive-me impávido, bamboleando discretamente "que não", com a cabeça: se um embaixador diz que uma rainha não come ovos, a rainha não come ovos! Ou, pelo menos, é essa a convicção que um leal colaborador é obrigado a espelhar. Não faltava mais nada que assim não fosse!

Porque não sou dado a guardar a menor "memorabilia" de qualquer evento a que tenha assistido na vida, não posso conferir qual o doce português que foi servido à soberana britânica. Trouxas de ovos não foi, com toda a certeza! Mas, até hoje, ainda me interrogo se Isabel II teria ou não gostado dessa deliciosa iguaria, até porque nunca soube se, de facto, a rainha come ovos ou não.   

domingo, abril 29, 2012

Nóbrega (1942-2012)

Acabo de ler, num jornal, que morreu o Nóbrega, com 70 anos. Na minha juventude vila-realense, o Nóbrega era um ídolo da cidade, em particular depois de ter saído do nosso Sport Clube, onde o vi jogar por várias vezes. Um dia, um qualquer "olheiro" assinalou-o ao FC do Porto, onde viria a ganhar o lugar de "ponta esquerda". Por lá ficou uma dúzia de anos, nas décadas de 60 e 70, seguindo depois a habitual peregrinação que o destino aponta aos ex-jogadores, como treinador de pequenos clubes de província.

O Nóbrega era um futebolista muito rápido, com um excelente pé esquerdo, na época em que os "pontas" ("esquerda" ou "direita") corriam colados à linha, avançando, tão longe quanto possível, para centrarem "adiantados", evitando os fora-de-jogo (habituei-me, com o meu pai, até hoje, a dizer "off-side"), com cruzamentos sobre a área, onde os "pontas de lança" aproveitavam as suas jogadas. Julgo que o Nóbrega ganhou as suas quatro internacionalizações, de que a cidade muito se orgulhava, tirando o lugar ao Fernando Peres ou ao Oliveira Baptista, já não sei bem. Sei apenas que ambos eram do meu Sporting...

Lembro-me muito bem do pai do Nóbrega, o sr. Nóbrega, homem grande e com forte vozeirão, morador na Fontinha (ruela em que eu seguia para a minha primária "escola do trem"), logo à saída do "cabo da bila" (é assim, com "b"), famoso columbófilo e com fama de homem de esquerda, que tinha como profissão o ser artesão de pintura (ainda me recordo de ver, lá por casa, um tabuleiro metálico, com as armas da cidade, pintado pelo sr. Nóbrega, objeto de beleza mais do que discutível).

Quando o Nóbrega, o jogador, ao tempo em que era vedeta, se passeava pela cidade, esta olhava-o com evidente admiração. (Vila Real nunca teve muitos futebolístas conhecidos: com algum destaque, apenas o meu amigo Amaral e o Fraguito, ambos idos do Sport Clube... para o Sporting*). Recordo-me muito bem de ver o Nóbrega, de visita à cidade, um pouco curvado para a frente (ou talvez seja sugestão minha, pela forma como me habituei a vê-lo jogar), caminhando pela rua Direita (a maioria dos leitores não conhecerá a rua Direita, mas basta que saibam que é o "eixo" essencial da cidade), com o fácies grave e fechado que muitos adultos de Vila Real sempre exibem, creio que como forma de serem levados a sério. Nesses regressos, o Nóbrega, acolitado por alguns orgulhosos amigos locais, saudava, generoso, os conhecidos com quem se cruzava, que logo ficavam reconhecidos pela confiança recebida de um personagem famoso.

Era assim a minha cidade, a cidade do Nóbrega.

*(E Simão Sabrosa, que desconheço se jogou no SCVR e que foi... para o Sporting. E Paulo Alves, que, esse sim!, jogou no SCVR e teve êxito... no Sporting. E, claro!, o Costa, que foi para o FC do Porto, onde jogou vários anos).

sábado, abril 28, 2012

Conquistas de abril


Éramos quatro, entrámos pé-ante-pé, pelas escadas, evitando o elevador. O prédio era "ao Califa", ali na estrada de Benfica. A informação era muito segura: o Cordeiro, um sinistro inspetor da PIDE, ter-se-ia safado do cerco da António Maria Cardoso e podia estar refugiado em casa ou prestes a aceder a ela. Se iria resistir ou não, isso era o que se ia ver, e não nos sossegava mesmo nada. 

No terceiro andar esquerdo, batemos à porta e preparámos as armas, mimando a coreografia que víamos nos filmes, com a “expertise” operacional de quem vinha da administração militar. De dentro, uma voz feminina perguntou quem era..

"Forças Armadas”, respondemos, num plural majestático que estava a ter momentos de glória ímpar nessas horas, logo após o 25 de abril. 

A porta abriu-se, lenta, com a cara fechada de uma mulher de meia-idade a aflorar. Logo atrás, face angustiada, via-se uma rapariga mais nova, na casa dos 20 anos. Entrámos e o ambiente foi de compreensível frieza, com respostas algo agrestes, de uma dignidade ferida, sem remissão. 

Eram a mulher e a filha do inspetor. Procurámos ser muito corretos, embora firmes e incisivos nas questões, até para dar ares de uma determinação que disfarçasse o nosso imenso nervosismo. Que não, que o inspetor não estava, o que uma busca à casa logo confirmou, e não sabiam onde poderia encontrar-se ou se viria até à noite. Mas, pela conversa e outros dados circunstanciais, ficámos com a suspeição de que o Cordeiro ainda poderia chegar. Como nos tinham dito. Dispusémo-nos a deixar cair a noite, esperando o fugitivo Cordeiro. 

Estudámos a situação e, em discreto conciliábulo, pensámos que seria melhor isolar as duas mulheres, afastando-as do telefone negro na mesa da sala, não fosse elas serem tentadas a dar alarme, caso o inspetor entretanto ligasse. Dividimo-las por dois quartos, ambas acompanhadas. Dois de nós montámos uma espera no corredor, aguardando o eventual abrir da fechadura. 

Passara já mais de uma hora, quando, no imenso silêncio que ali se vivia, se ouviram, de um dos quartos, uns ruídos estranhos, parecendo gemidos ou choro, de súbito calados. 

"Tu não queres ver que o Silvestre perdeu a pachorra e decidiu dar dois tabefes à filha do pide, para lhe sacar o paradeiro do pai?!", exclamou o Branco

Não acreditei. Esse não era o estilo do Silvestre, um miliciano de Económicas, muito educado, com pinta de galã. Atravessei o curto corredor, abri a porta do quarto: lá estavam eles, sentados na cama, ela a vestir-se, sorridente e algo encavacada, com o Silvestre, já a puxar por um cigarro. 

Era um belo início da aliança povo-MFA

sexta-feira, abril 27, 2012

Gérard Castello Lopes

Recordo-me de um antigo, e hoje politicamente incorreto, anúncio na televisão portuguesa em que, com uma voz fanhosa, o locutor dizia: "Palavras para quê?!" Ao olhar para esta fotografia (que não conhecia) de Gérard Castello Lopes surgiu-me a mesma questão, porque descobri nela um bom exemplo desta espécie de sociologia gráfica do Portugal dos anos 50/60 que é (também) a obra fotográfica de Gérard Castello Lopes. Trabalhos que quase não necessitam de ser legendados, tal é a expressividade daquilo que nos transmitem.

Há dias, no novo Centro Gulkenkian, em Paris, assisti à inauguração de uma exposição de Gérard Castello Lopes, uma magnífica mostra do trabalho fotográfico, executado entre 1956 e 2006, por um homem de muitos saberes, e de que por aqui se já falou, por mais de uma vez. A fotografia que ilustra este post não integra a exposição, a qual, na verdade, vai muito para além daquilo que já se conhecia de Gérard Castello Lopes, que pode ser considerado um digno émulo português de Cartier Bressson. Jorge Calado foi o criativo curador desta exposição, organizada e exposta com gosto e maestria.

Até 25 de agosto, quem puder ver estas "Apparitions", no nº 39 do boulevard de La Tour-Maubourg, deve fazê-lo. Esta foi uma bela maneira da Gulbenkian comemorar o 25 de abril, data em que a exposição abriu.

quinta-feira, abril 26, 2012

Feriado

Conversa ouvida, há uns anos, ao almoço, numa mesa ao lado, num restaurante lisboeta, num dia 24 de abril:

- Eu, cá por mim, detesto o 25 de abril! Só trouxe balbúrdia, arruinou a economia e foi uma deceção! Então, cravos vermelhos, nem vê-los!

-  E o que é que fazes amanhã?

- Vou para o monte, ali ao pé de Serpa, já pedi a tarde ao chefe. Tirando uns dias de férias, e ligando ao 1º de maio, faz-se uma "ponte" imensa. Dá um jeitaço!  

Pois dá!

quarta-feira, abril 25, 2012

Os partidos e o 25 de abril

Hoje, dia 25 de abril, convidei para um almoço na embaixada  dois representantes em França de cada um dos cinco partidos políticos que hoje têm representação na nossa Assembleia da República. Durante cerca de duas horas, revisitámos, celebrando-a, a data fundacional da democracia que nos rege, numa discussão serena, onde não deixaram de estar presentes as divergências de que se constitui a diversidade da nossa vida política. Mas onde também ficou evidente, acima dessas diferenças, o quanto Portugal deve a quem o libertou de uma ditadura que criou um triste interregno, de cerca de meio século, numa vida democrática que havia sido iniciada em 1820.

A política é uma atividade nobre que, em grande parte, se objetiva através da ação dos partidos políticos, entidades congregadoras de vontades e portadoras de projetos de sociedade, por natureza contraditórios entre si. Nos últimos tempos, em Portugal, mas não só, a atividade partidária tem vindo a ser denegrida, nos simplismo de um discurso de matriz populista, identificada como um mero exercício de lóbi, como espaço para o carreirismo pessoal, para a concretização de algumas negociatas e para agendas que, muitas vezes, estão longe da prossecução do interesse público que deveria ser o centro da sua atividade. É muito provável que, numa certa medida, essa acusação possa ter alguma sustentação na realidade, justificando assim todos os esforços que possam ser feitos para uma regeneração do nosso sistema partidário. Mas que fique claro: sem os partidos políticos, estes ou outros, não há democracia.

O meu convite de hoje destinou-se, assim, a homenagear os partidos políticos portugueses, com uma saudação particular para aqueles que, nomeadamente em França, já existiam antes do 25 de abril e através de cuja ação militante, muitas vezes em condições bem difíceis, também foi possível ajudar a concretizá-lo.

Miguel Portas (1958-2012)

Acho que Miguel Portas, se tivesse podido determinar a data da sua saída deste mundo, gostaria que ela tivesse coincidido com um 25 de abril. Por algumas horas, isso não foi possível. Mas os cravos de hoje são para ele.

Conheci pessoalmente o Miguel há cerca de dez anos. Eu estava colocado em Viena, tínhamos amigos comuns e, um dia, recebi dele um e-mail, manifestando o desejo de trocarmos impressões sobre as questões europeias, numa ocasião em que eu passasse por Lisboa. Era um assunto em que eu trabalhara alguns anos e pelo qual me continuava a interessar, embora dele desligado profissionalmente. 

Convidou-me para almoçar, sugerindo, cuidadoso com os riscos para o meu "estatuto", aquilo que considerava um sítio "discreto": um pequeno restaurante na praça da Armada (ao lado das "espanholas"), que costumava frequentar (e que eu, por "milagre", não conhecia). Ri-me, intimamente, divertido com o que sabia ir ser o grau de "discrição" do lugar: minutos depois da nossa chegada, as escassas mesas foram invadidas por funcionários do ministério dos Negócios estrangeiros, os quais, nessa tarde de fins de 2002, devem ter espalhado, por uns claustros das Necessidades à época um tanto assombrados, terem sido testemunhas de uma conversa sigilosa entre um embaixador algo conhecido e um deputado do Bloco de esquerda. Recordo-me bem de preocupação do Miguel quando, bem disposto, lhe revelei as presumíveis consequências, em matéria de inevitável "gossip", desse nosso encontro. E sosseguei-o quanto à importância que eu próprio (não) dava ao facto.

O Miguel Portas que então conheci - e com quem, em anos futuros, apenas troquei bastantes e-mails, dada a nossa vida geograficamente distante - era um homem sereno, com um sorriso acolhedor, extremamente delicado, que transpirava honestidade e sentido de dedicação à coisa pública. Tinha seguido, desde bastante novo, um percurso político de grande dignidade, retratado de forma curiosa num pouco conhecido livro inglês, de 1975, que um dia descobri num "sebo" (alfarrabista) brasileiro. O Brasil, aliás, interessava-o bastante, como sempre sublinhava um amigo comum, que muito me falava dele - Tarso Genro, ministro da Justiça e agora governador do Rio Grande do Sul.

À época desse nosso encontro, o Miguel estava muito preocupado com o sentido que as coisas tomavam na Europa. Mas, contrariamente a mim,  angustiava-o menos a nova arquitetura institucional que se desenhava, e, muito mais, o sentido, que lia como quase totalitário, da deriva neoliberal que atravessava as políticas que iam fazendo o seu caminho em Bruxelas. Mal nós imaginávamos o que estava por aí para vir...

Recordo-me de, na conversa, o ter interrogado sobre a génese do Bloco de Esquerda, tentando perceber como era possível a convivência, no seu seio, de tradições trotskistas e maoístas, dimensões que eu julgava mais incompatíveis do que a água com o azeite. Contou-me o papel que as pessoas como ele, originárias do PCP e chegadas ao Bloco através da "Política XXI", representavam nesse (então) curioso projeto político. E recordo-me bem de uma frase que me disse: "No fundo, eu sou hoje considerado como situado na ala direita do Bloco".

Miguel Portas fez um trabalho notável no Parlamento Europeu, sem concessões, com imensa coragem, correndo mesmo o risco de afrontar as iras corporativas, de que é bem demonstrativa uma notável e quase histórica intervenção, que pode ser vista aqui. Ainda na passada semana, em Bruxelas, dele falei com amigos, que me avisaram do agravamento da sua doença.

É quase um lugar comum dizer que homens como Miguel Portas fazem muita falta à política portuguesa. Mas fazem-no muito mais à sua família - muito em especial à sua mãe, Helena Sacadura Cabral, estimada comentadora deste blogue, bem como ao seu irmão, Paulo, meu ministro - a quem deixo a expressão amiga e muito sincera do meu grande pesar por esta perda.

Este 25 de abril é muito mais triste sem Miguel Portas.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...