Estava um dia de intenso calor. Tinha acabado de desembarcar na estação da Régua, vindo de Vila Real, pela velha linha do Corgo. Aguardava o comboio que, partido de Barca d'Alva, me levaria ao Porto. Aí apanharia a ligação para Lisboa, onde deveria chegar depois de uma viagem de cerca de 10 horas. Era assim, no Portugal de então. "A rádio está a anunciar que morreu o Salazar", disse-me o meu cunhado, que tinha ido tentar apanhar, na tabacaria, o "Diário de Lisboa" do dia anterior, que não tinha chegado a Vila Real e cuja leitura era então, para nós, "obrigatória".
Recordo-me bem de não ter tido qualquer sentimento particular perante a notícia. Salazar tinha morrido politicamente quase dois anos antes, em Setembro de 1968, quando fora substituído por Marcelo Caetano. Desde então, a decadência física do antigo ditador havia sido exposta algumas vezes à mórbida curiosidade pública, com patéticas aparições cuja mediatização quase que parecia destinada a sublinhar o deperecimento político do próprio salazarismo. Alguns, mais bem informados, conheciam o episódio caricato da entrevista ao "L'Aurore", que revelava a existência de um cenário de ilusão em S. Bento, que dava a Salazar a ideia de que ainda era chefe do governo, com a participação teatral de alguns ministros.
No que aos portugueses verdadeiramente interessava, o caetanismo mostrara, nesse período, ter chegado ao limite em termos de abertura política. Uma crise académica séria atravessara o país. As eleições de 1969 haviam constituído uma enorme farsa, a política colonial mostrava-se, definitivamente, como o eixo cristalizador de um regime em que a repressão e a censura se acentuavam de novo. Sá Carneiro e a "ala liberal" iam perdendo as esperanças na propalada "primavera política".
Passam hoje 40 anos sobre esse dia, quase tantos quantos o regime autoritário dirigido por Salazar, que começou e se prolongou sob tutela militar, havia imposto a Portugal. Menos de quatro anos depois, outros militares iriam pôr termo ao que restava do salazarismo.
Desde então, Salazar transformou-se numa curiosidade histórica. Revindicado por saudosistas ou diabolizado pelos opositores, talvez venha a propósito lembrar que a única vez que se sujeitou a sufrágio - e foi eleito - foi durante a vilipendiada Primeira República.