sexta-feira, setembro 06, 2019

Uma área de real serviço


Desde sempre, conheço-me como um fã das áreas de serviço das auto-estradas. Porque gosto muito de fazer pausas em viagens, “estaciono” imenso nas lojas que há pelo país. 

Pode parecer bizarro a muita gente, mas já me aconteceu, em viagens ao Norte ou ao Algarve, parar em todas as estações de serviço! A sério! Às vezes, não chego a comprar nada: vejo a net, leio um pouco mais os jornais ou as revistas, descanso uns minutos, faço uns telefonemas. E chego mesmo a passar “pelas brasas”...

Nos últimos seis anos, desde que regressei definitivamente a Portugal, o conta-quilómetros do meu carro indica que fiz 160 mil quilómetros pelas estradas da pátria. Acumulei assim alguma experiência - de Valença a Vila Real de Santo António, de Sagres a Bragança e, em especial, de Lisboa a Vila Real, claro.

Cometerei a audácia de dizer que conheço bem mais de 80% das lojas nas áreas de serviço do país. E constato que há de tudo! Desde lugares sinistros, onde a comida só disso tem nome (a de Castro Daire é o meu “benchmark” negativo, mas a A8 tem coisas “notáveis” de mau), até às “Sol”, onde, salvo algum descaso pontual e preços especulativos, o serviço é agradável e eficaz. Algumas vão mudando, com o tempo. Pelo meio das que referi, ficam coisas incaraterísticas como as “La Pausa”. Numa destas, há dias, a confusão da oferta dos “menus” era tal que entrei e saí logo de seguida.

Decididamente, e é isto que quero hoje aqui dizer, a minha melhor experiência (e já foi mais do que uma, na direção Lisboa-Vendas Novas), em termos de oferta e de imbatível serviço, é a “Colibri” de Vendas Novas: excelente apresentação, gente simpática e prestável, muito bons produtos, boa relação qualidade-preço. Experimentem e vão ver que tenho razão!

“Frappés”


Os dois diplomatas chegaram tarde ao restaurante, para o almoço. Algumas mesas começavam a esvaziar-se. Naquela que ficava ao seu lado, um casal conversava animadamente. No balde com gelo entre as duas mesas, surgia uma garrafa de Chablis, "frappé", consumido por esses vizinhos. 

Chablis! Ora aí estava uma boa ideia! Pediram ao empregado dois copos de Chablis. O tempo passou, a conversa fluiu, os copos dos diplomatas foram-se esvaziando.

A certo passo, os convivas da mesa ao lado levantaram-se e saíram porta fora. Os diplomatas miraram a quase meia garrafa de Chablis por usar e, depois de um olhar discreto em torno, serviram-se. Sempre era melhor do que o vinho ir "para dentro", levado pelos empregados, conluiaram em voz baixa.

O Chablis estava excelente. Cada um acabou mesmo por se servir de mais do que um copo. A garrafa chegou ao fim, mas já estavam saciados. Iam pedir a sobremesa e, depois, dois cafés.

De súbito, os vizinhos da mesa ao lado regressaram, depois de, aparentemente, terem ido ao exterior fumar um pouco. 

Os diplomatas levantaram-se num salto, correram para o balcão, pagaram a conta e desapareceram, antes que a evaporação súbita do Chablis, na garrafa dos vizinhos de mesa, fosse notada.

História verídica. Em Paris. No “L’Esplanade”.

quinta-feira, setembro 05, 2019

Notícias para o Outono


Ontem, numa televisão, António Lobo Xavier disse que, pela primeira vez, desde há muitos anos, os tradicionais apoiantes do PSD e do CDS sabem, de ciência certa, que os votos conjugados dos deputados que vierem a ser eleitos por esses dois partidos, nas próximas eleições, nunca serão suficientes para os levarem ao governo. Assim, quem vier a votar PSD ou CDS já percebeu que vai continuar a ser oposição. 

Por outro lado, o “fond de commerce” tradicional da direita, as “contas certas”, habitual arma de arremesso contra o “despesismo” socialista, deixou de ter a menor validade: o governo socialista fez, nestes quatro anos, nesse domínio, exatamente aquilo que a direita disse que ia fazer - respeitar os compromissos europeus em matéria de objetivos macroeconómicos. E, escorado nesse património, o que o PS anuncia que se propõe fazer no próximo futuro é exatamente o mesmo que a direita pode dizer que também faria. Os socialistas, não apenas “raptaram” o discurso da direita, como deram razões a muita gente desse setor, em face do que fizeram, para confiar neles.

Sente-se, assim, que muitos votantes tradicionais de direita, aqueles que são pragmáticos e não cultores de uma agenda ideológica obsessiva, começam a acolher a teoria da “bondade” de uma maioria absoluta do PS. Porquê? Porque, sendo inevitável que António Costa continuará a ser o primeiro-ministro, então - podem pensar - talvez valha a pena dar-lhe toda a responsabilidade, evitando que, na sua ação futura, ele possa vir a ter algumas derivas “esquerdistas”, que pudessem ser justificadas pela sua dependência dos parceiros da anterior Geringonça.

Mas, neste caso, com uma oposição de direita destroçada, que contra-poder passará a existir no terreno, perguntar-se-ão alguns? O presidente da República. Estando em absoluto excluído - e volto à ideia de Lobo Xavier - que PSD e CDS possam formar governo, a “esperança” no equilíbrio do sistema passa a residir, quase exclusivamente, no chefe do Estado. Sabe-se que, na direita, Marcelo não faz a unanimidade mas, neste caso, perante o inevitável, mesmo para setores que não apreciam a sua ação, ele é o único instrumento disponível para “controlar” um governo socialista. 

É perante este cenário de derrota anunciada que setores desse eleitorado tradicional de PSD e CDS podem sentir-se tentados a dar o seu voto, numa opção “experimentalista” e quase lúdica, a minúsculas formações de direita recentemente emergidas, politicamente oportunistas da crise daqueles partidos tradicionais. Elas vão desde o populismo filofascista, com laivos xenófobos e racistas, até uma espécie de “bonapartismo” tardio, personalizado em figuras em decadência política, passando por uma direita mais radical, tipo “alt right”, por cá travestida de liberal. 

Os socialistas só podem “agradecer” a quem se sinta tentado a ir votar nessas formações residuais: não lhes causa a menor mossa política na sua garantida maioria (absoluta ou não) e retira votos que, normalmente, seriam do PSD e CDS. No caso dos social-democratas, em alguns círculos eleitorais mais pequenos, pode mesmo vir a “oferecer” alguns deputados ao PS, na fronteira da maioria absoluta. António Costa só tem razões para sorrir.

quarta-feira, setembro 04, 2019

Clarke e os conservadores


Kenneth Clarke foi ministro das Finanças, do Interior, da Educação e da Saúde de Margareth Thatcher, que nunca gostou dele, sempre desconfiou do seu lado europeísta, mas reconhecia a sua competência e respeitava a sua independência. É hoje o mais antigo membro da Câmara dos Comuns (“the father of the house”), uma figura altamente considerada na vida política britânica.

Ontem, na sequência de não ter seguido as instruções da liderança do grupo parlamentar do Partido Conservador, ao recusar a estratégia de Boris Johnson para o Brexit, Kenneth Clarke viu-se afastado do partido (foi-lhe retirado o “whip”, no jargão parlamentar britânico), juntamente com um grupo de outros deputados, entre os quais o último ministro das Finanças de Theresa May (e ministro dos Estrangeiros de David Cameron), Phillip Hammond.

É este o “estado da arte” no seio dos conservadores britânicos. Mas há mais.

Hoje à noite, tudo o indica, a Câmara dos Comuns votará uma resolução recusando um Brexit sem acordo (mas essa decisão terá ainda de passar pela Câmara dos Lordes, onde a maioria para aprovação não está garantida), o que implicará um pedido de novo adiamento da saída da UE, que estava prevista para 31 de outubro. (A UE concederá sem problemas esse pedido).

Boris Johnson, que recusa em absoluto esta orientação, disse ir tentar convocar novas eleições legislativas em 15 de outubro. Mas, para aprovar isso, necessita de 2/3 dos votos nos Comuns, o que significa que precisa dos votos da oposição. Ora esta insiste, há muito, que quer eleições. Pode assim concluir-se que Johnson tem caminho aberto para realizar o sufrágio?

Longe disso. O líder trabalhista só aceita somar os seus votos aos de Johnson, para a antecipação de eleições, se, antes, ficar aprovada a tal moção que recusa o Brexit sem acordo, o que implica pedir o novo adiamento a Bruxelas. Ora o primeiro-ministro já disse (mas ele já disse tanta coisa, diferente uma da outra...) que nunca faria tal coisa. Em que ficamos? Como se sai daqui? 

Confuso? Ninguém deve estar mais confuso do que os britânicos.

Ainda Timor


Há 20 anos, os timorenses votaram pela independência do seu território. E pagaram por isso, sofrendo uma onda inusitada de violência que escandalizou o mundo.

Tinha cabido à diplomacia portuguesa, ao longo de anos, sustentar, no plano internacional, a questão da ilegalidade da ocupação indonésia da parte Este da ilha de Timor, em face do direito dos timorenses a autodeterminarem o seu futuro. Às vezes, esquece-se um facto: Portugal não tinha de ter opinião sobre se Timor-Leste devia ser um país independente ou se devia integrar-se na Indonésia, eventualmente como uma região dotada de autonomia. Essa era uma questão que cabia aos timorenses decidir, por livre escolha. Portugal não podia aceitar é que a Indonésia ocupasse o território, reprimisse quem se opunha à nova "colonização" e desse por adquirido que Timor-Leste passava a fazer parte do país.

Portugal esteve longe de ser uma parte inocente no conturbado processo de descolonização de Timor-Leste. Depois de 25 de Abril, muitos erros foram cometidos em seu nome e, por ação e omissão, isso facilitou que a lógica da Guerra Fria tivesse permitido a Jacarta executar o golpe de mão que levou à invasão do território e à imensa chacina que, ao longo de anos, dizimou parte importante da sua população civil.

Com o tempo, Portugal foi-se redimindo desses pecados e, já com outro sentido de responsabilidade, conseguiu montar uma campanha internacional, que teve um custo político não despiciendo, de persistente denúncia da violência indonésia. Isso muito veio a ajudar a dar visibilidade à luta heroica dos guerrilheiros que combatiam pela libertação do território.

Para a diplomacia portuguesa, o caso timorense viria a ter duas consequências.

A primeira foi a criação de uma escola de diplomacia aculturada na defesa dos Direitos Humanos. Todas as dimensões de ação externa do país ficaram marcadas pelo caso timorense, tornando algumas relações bilaterais reféns dessa temática e, naturalmente, sobredeterminando a postura dos nossos diplomatas no mundo multilateral.

A segunda teve a ver com os países de língua portuguesa. O caso de Timor acabou por criar um cimento comum, uma causa que Portugal, Brasil e os cinco Estados africanos passaram a desenvolver em conjunto, nos fóruns multilaterais e nos respetivos quadros bilaterais, decisivamente contribuindo para a densificação daquilo que viria entretanto a constituir-se como CPLP.

A luta por Timor-Leste reforçou, ética e funcionalmente, a diplomacia portuguesa.

terça-feira, setembro 03, 2019

Uma improvável amizade


Há dias, numa cerimónia pública, em Lisboa, perguntei a quatro figuras que ocuparam importantes cargos como ministros da democracia se identificavam um senhor idoso que estava sentado num canto. Todos, sem exceção, foram incapazes de colocar um nome naquela cara. E, ainda antes que eu lhes satisfizesse a dúvida, viram, com curiosidade, eu e esse cavalheiro darmos um forte abraço. Tratava-se Rui Patrício, o último ministro dos Negócios Estrangeiros da ditadura.

Conheci pessoalmente Rui Patrício quando cheguei ao Brasil, como embaixador, em 2005. Foi em casa de Alberto Xavier, um breve governante do último executivo de Marcelo Caetano. Naquela que acabou por ser uma longa e agradável noite de conversa, falámos de amigos comuns e trocámos histórias de vida. 

Eu tinha bastante curiosidade em conhecer o último ministro dos Negócios Estrangeiros do regime para cujo derrube tinha modestamente contribuído, em 1974. Ao Rui, presumo, terá sido interessante saber um pouco mais do novo representante diplomático que Lisboa mandava para o Brasil, dos muitos que conhecera desde o exílio que se auto-impusera, já depois da Revolução. Lembro-me bem de, nessa noite, lhe ter dito, na presença de um seu filho, que seria imperdoável se não publicasse as suas memórias.

Durante os anos que permaneci no Brasil, Rui Patrício e eu construímos uma muito agradável convivência, chegando mesmo a planear escrever um livro "a dois" - uma espécie de cruzamento de leituras sobre o papel de Portugal no mundo, antes e depois do 25 de abril. Julgo que o Rui não me levará a mal a revelação pública desta nossa ideia. Por insuperáveis dificuldades de agenda, mas também por alguma pressentida diferença na filosofia de abordagem do trabalho, nunca levámos a ideia à prática. Pela minha parte, tive pena.

Há uns anos, Leonor Xavier disse-me que estava a fazer uma longa entrevista ao Rui, que iria passar a livro - “A vida conta-se inteira”. Mandou-me o texto e, sobre ele, escrevi um comentário que surge publicado na contracapa do livro: "Rui Patrício, um homem sem angústias na fidelidade ao seu passado, ajuda-nos a melhor entender certas decisões assumidas na política externa do Portugal de então, num curioso retrato, a preto e branco, do estertor da ditadura – uma foto, em alto contraste, de dois mundos separados por uma certa noite de Abril."

Rui Patricio vive, desde 1974, no Rio de Janeiro. Tem hoje 87 anos e manteve uma jovialidade que sempre apreciei. Devo-lhe muitas gentilezas, durante os meus tempos do Brasil: fez questão de estar presente em todas as intervenções públicas que fiz no Rio - da PUC ao Real Gabinete, passando por eventos económicos e culturais. Visitou-me depois em Paris, onde, em jantares, cruzámos memórias dos tempos do caetanismo, embora não tivéssemos reconciliado a nossa diferença de perspetivas sobre as grandes dinâmicas desse período. Ficámos amigos. Uma improvável amizade.

Associativos


Cabem todos?

Há dias, numa cerimónia religiosa, vi-o, ao longe. É um traste, uma nódoa moral, um vigarista, com um currículo, melhor dizendo, um cadastro de mau comportamento - face ao cônjuge, à família, aos colegas. Traiu amigos, continua a ser uma figura mesquinha e má. Mas lá o vi, subindo e descendo o corpo na coreografia da cerimónia, repetindo com os lábios a ladaínha do ritual. Ah! E no final, com um ar compungido, foi buscar a hóstia, saindo depois com ela, com o ar humilde dos crentes respeitáveis.

Fui, desde que me conheço, ateu. Olho para estas cerimónias com grande distância, mas sempre com o respeito que acho que é devido às crenças dos outros. Mas, confesso, tenho uma imensa dificuldade em poder admitir que uma religião onde reconheço que há tanta gente de bem, que se apoia em princípios decentes e solidários (princípios em que fui educado e em que me reconheço, embora sem nenhuma matriz religiosa de suporte), aceite no seu seio, sem uma mínima denúncia pública, sem uma estigmatização perante os seus pares, figuras do jaez daquela figura.

segunda-feira, setembro 02, 2019

Fernando Mendes


Leio que Fernando Mendes vai manter-se com o seu “Preço Certo” na RTP, não obstante ter sido tentado por um convite da TVI. A televisão pública vai assim poder continuar a contar com um “produto” de entretimento (não uso “entretenimento”, no que sigo Frei Luís de Sousa e João de Araújo Correia) que, para além dos seus méritos próprios, tem funcionado como um importante “driver” para “segurar” as audiências que levam ao telejornal das oito (o qual, por muitas críticas, algumas justas, que se lhe façam, é, a longa distância, o mais equilibrado e menos populista jornal noticioso televisivo de Portugal). E isso é excelente! 

Dirão alguns, mais puristas, que o modelo do “Preço Certo” casa mal com a ideia de “serviço público”. Estou em total desacordo. A televisão pública não pode desprezar os produtos televisivos que correspondem ao interesse de um largo conjunto de pessoas que apreciam modelos de diversão que, nem pelo facto de serem simples, deixam de ser dignos. Não há serviço público sem ter público. E a televisão pública não é apenas sinónimo de produtos para elites, mais ou menos cultivadas. 

Fernando Mendes é assim, nos dias de hoje, uma figura televisiva de referência. Mas é, igualmente, uma personalidade muito simpática. Há uma década, em Paris, coincidi com ele numa iniciativa na Rádio Alfa, organizada pelo comendador Armando Lopes. Eu levava comigo um casal amigo brasileiro que, desde logo, ficou “íntimo” de Fernando Mendes. Cruzaram-se, dias depois, no aeroporto. Caíram nos braços uns dos outros. Dias depois, estavam a confraternizar no “Solar dos Presuntos”. É assim Fernando Mendes!

É esta afabilidade, esta forma aberta de estar com as pessoas, que me agrada em Fernando Mendes. É isso também que me leva a congratular-me que o “Preço Certo” possa continuar a ser o lugar geométrico onde, ao final da tarde, um certo Portugal se junte para passar uma hora divertida, fora das preocupações da vida, unido por alegrias simples e inócuas. Fazer as pessoas felizes é também serviço público.

domingo, setembro 01, 2019

Cardeal



Agrada-me que o país tenha um cardeal que já encontrei nas noites do “Procópio”.

Spoooorting!


Ser sportinguista é ser portador eterno de um insondável mistério: que mal fizeram ao mundo os sportinguistas para merecerem sofrer, como sofrem, dia após dia, e, não obstante isso, viverem no singular paradoxo de terem imenso orgulho naquilo que são e nem lhes passar minimamente pela cabeça serem outra coisa diferente daquilo que são?

Tertúlia


sábado, agosto 31, 2019

Luiz Rosa Dias


Cheguei ao Luiz através da Alice Pinto Coelho, sua prima. Um dia, há muitos anos, sentou-o na Mesa Dois do seu “Procópio” e passei então a conhecer um médico divertido, bom conversador e que tinha a curiosidade de ser sobrinho de Fernando Pessoa (o Luiz nasceu, em 1931, no edifício onde é hoje a Casa Fernando Pessoa). Da Mesa Dois aos jantares anuais da Mesa Dois (que, por uma década, organizei) foi um salto que o Luiz passou a dar com todos nós.

Um dia, em Paris, fui convidado para um jantar comemorativo do 25 de abril, organizado por esse imparável promotor cultural que é o João Heitor. O repasto, que aconteceria no mais improvável dos lugares, a cave do La Coupole, em Montparnasse, era “abrilhantado” por uma palestra do Luiz Rosa Dias, sobre o seu tio Fernando. Confesso que temi o pior! Sabia que o Luiz tinha, como seu “fond de commerce” para palestras, a memória familiar de Pessoa. Isso, porém, nada garantia à partida. Admito que temi uma estopada. Enganei-me redondamente! O Luiz era um surpreendente bom orador, de fala solta e criativa, prendeu a assistência com belas evocações do tio, do exoterismo às mulheres, e contribuiu para passarmos uma bela noite. Foi um 25 de abril diferente.

Li, há minutos, que o Luiz se foi desta vida. Já não teremos o seu bigode branco e o sorriso daquela figura curvada que sempre nos trazia boa disposição e boa conversa. É a vida! Ou, pior, é a morte.

A cereja no bolo


José Sócrates publica hoje no “Expresso” um artigo em que critica António Costa (sem o mencionar pelo nome) pelo facto de este ter afirmado, numa recente entrevista à TVI, que “os portugueses não gostam de maiorias absolutas”. A esse propósito, Sócrates elenca o essencial daquilo que o seu governo, de maioria absoluta, conseguiu levar a cabo nesse período.

É sabido que José Sócrates mantém uma forte distância crítica de António Costa, por entender que o PS, sob a liderança deste, não prestou a solidariedade que ele entendia ser-lhe devida, no tocante ao processo judicial de que é alvo, em especial face ao modo como a justiça se comportou nesse contexto. Sócrates considera que, desde o início, houve uma inescapável dimensão política em todo esse imbróglio. Costa, pelo contrário, entende que o PS não deve ser envolvido num processo que cabe à justiça conduzir e que seria descabido, com consequências político-partidárias, o PS fazer uma leitura do comportamento da máquina judicial. São duas visões inconciliáveis.

O artigo de Sócrates, pense-se o que se pensar das desavenças no seio da família socialista, é um gesto que, a meu ver, acaba por ser benéfico para António Costa e para as suas ambições, não explicitadas mas muito óbvias, de poder vir a obter uma maioria absoluta, por muito que os portugueses gostem delas ou não - e eu também acho que não gostam. É que, no atual contexto, ser atacado por José Sócrates é quase a “cereja no bolo” que faltava ao líder socialista no caminho para a renovação do seu mandato em S. Bento.

Sylvie ou as férias


Há muitos anos, o Duo Ouro Negro cantava, no “Sylvie”: “E setembro chegou / vamo-nos separar / o Verão terminou / diremos au revoir”.

Sinto o mesmo com as férias, que se vão embora neste fim de semana, com a segunda-feira a significar o regresso ao trabalho. E o Setembro que aí vem promete!

Pensando bem, acho que, um dia, vou ter de me reformar. Mas, dessa vez, será mesmo a sério, juro!

sexta-feira, agosto 30, 2019

Os dias difíceis de Timor


A meio da tarde de ontem, num livraria em Vila Real, comprei o livro “O Negociador”, uma longa entrevista da jornalista Bárbara Reis ao embaixador Fernando Neves. Agora, pela madrugada, lidas atentamente as suas 430 páginas, em cerca de quatro horas, dou comigo em “balanços”. 

Desde logo, para concluir que aprendi bastante com esta obra. Embora eu tivesse acompanhado, relativamente de perto, o processo negocial em que, sob a égide da ONU, Portugal e a Indonésia esgrimiram razões sobre Timor, verifico agora que me escaparam muitos aspetos fundamentais desse extraordinário trabalho negocial, através do qual Portugal tudo fez para que os timorenses tivessem o direito a decidir o que queriam fazer do seu futuro.

A segunda constatação a que cheguei é de que este livro pode ajudar a mostrar, se acaso isso for necessário, a importância de que se reveste, para o país como o nosso, o facto de ter ao seu serviço uma máquina diplomática competente, determinada, perfeitamente consciente dos seus objetivos e com a capacidade de saber instituir uma prática consequente e eficaz para os atingir.

Finalmente, devo dizer que fechei este livro com o reforçado gosto de ter feito parte de uma escola diplomática que produziu profissionais da qualidade do embaixador Fernando Neves, cuja intervenção no processo timorense prestigiou o nosso país e contribuiu para que assim pudesse ser escrita uma magnífica página da nossa história diplomática. Não vislumbro motivo para que o facto de ser seu amigo me obrigue a um qualquer ato de contenção ou modéstia.

quinta-feira, agosto 29, 2019

Agostos da vida - o poder do silêncio


A chefia interina do governo é uma fórmula banal. Nas ausências do primeiro ministro, a coordenação das reuniões semanais de governo é assegurada pelo ministro mais sénior na hierarquia governamental, que estiver em exercício efetivo de funções - e que pode até nem ser o "número dois" do governo. É vulgar que quem coordena a reunião deixe vaga a cadeira que usualmente é a do primeiro-ministro e que continue sentado naquela que lhe corresponde. Uma coisa é óbvia: nenhuma decisão importante é aí tomada sem que o chefe do executivo, que está apenas a uma chamada telefónica de distância, decida por ele próprio. 

Foi assim com que estranheza que, numa reunião de um Conselho de ministros, já há muitos anos atrás, o ministro que a chefiava interinamente (e que, por sinal, não era o "número dois" do governo), que se tinha sentado na cadeira do chefe do governo, depois de despachados alguns diplomas que já vinham "limpos" da reunião de secretários de Estado, e que só necessitavam da chancela formal do Conselho, teve a inusitada iniciativa de suscitar um debate sobre um qualquer tema de "política geral". 

Estava-se em Agosto, mês em que os Conselhos de ministros são, em regra, mais breves, muitas vezes só dedicados a coisas de rotina, sem um pendor decisório muito forte. A ausência do primeiro-ministro como que inibe o Conselho a envolver-se em matérias que passem o estritamente indispensável.

Convirá também dizer que esse ministro, que havia ingressado numa remodelação intercalar inesperada, estava longe de fazer a unanimidade de apreço político entre os seus pares, na apreciação de uma certa geração presente à volta da mesa, por razões que não vêm aqui para o caso.

O ministro começou por dizer da importância do Conselho refletir sobre a temática em causa, tendo introduzido a discussão com uma intervenção detalhada de vários minutos. Alguma perplexidade começou a instalar-se à volta da mesa. Alguns dos restantes ministros e secretários de Estado presentes (estes que aí estavam em substituição dos respetivos ministros, nesse mês de férias) entreolharam-se com algum espanto. Era pouco curial que, na ausência do chefe do governo efetivo, tivesse lugar um debate sobre um tema de orientação política geral. Mas, em silêncio, lá deixaram ir o ministro até ao fim da sua fala. 

Acabada esta, o chefe interino da reunião convidou os ministros presentes a intervir. O silêncio, benevolamente tido como de atenção, com que a intervenção inicial fora acolhida, prosseguiu, mas agora num registo de algum indisfarçável embaraço. Ninguém se inscreveu para falar. Manifestamente, ele não tinha acertado com nenhum dos colegas uma reação para abrir o debate, como frequentemente ocorre.

O nosso homem, talvez já pressentindo que o Conselho lhe estava a "fugir de mãos", inquiriu se os secretários de Estado presentes desejavam dizer alguma coisa. E, perante o também silêncio destes, entendeu por bem complementar a sua intervenção anterior, com novo monólogo de mais uns minutos, suscitando mais algumas questões, sobre as quais "gostaria de poder colher a sensibilidade do governo". Todos os colegas eram agora formalmente interpelados a responder. 

Sem sucesso. Novo e fragoroso silêncio se instalou, com alguns sorrisos e troca de olhares a aflorarem. Alguns dos presentes colocavam já as suas pastas sobre a mesa, com algum "restolho", prenunciando o fim ansiado da reunião. Mas o ministro não a tinha dado por terminada. No continuado e penoso silêncio, olhava para os seus dossiês, talvez perguntando-se como sair dali. A solução acabou por vir de um membro do governo do fundo da sala, um homem de rara ciência que o tempo já nos levou, num comentário a meia-voz: "E se fôssemos andando?". E fomos.

Uma real questão


“Se a Escócia ficar independente, será que vou continuar a poder ir para Balmoral? É que eu nunca tive um passaporte...”

Reino Unido - guia para desatentos


O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, numa decisão que está a ser bastante contestada, decidiu ir suspender, por algumas semanas, o funcionamento do parlamento do país.

As questões, institucionais e políticas, que esta decisão envolve encontram-se em forte debate, até pelas suas implicações constitucionais, atendendo, em especial, ao motivo pelo qual Johnson o quer fazer: facilitar a sua própria liberdade de ação no processo do Brexit.

O Reino Unido não tem uma constituição escrita mas, em contrapartida, dispõe de um corpo de outras leis de idêntica natureza, que, no dia a dia, constituem o esqueleto normativo e orientador do funcionamento do Estado. A isto se soma uma jurisprudência constitucional muito sólida, testada e apurada ao longo de séculos.

Na prática britânica, o parlamento só pode ser suspenso ou dissolvido através da palavra da rainha. De acordo com o compromisso institucional que suporta o regime monárquico britânico, o soberano não tem hoje a menor palavra a dizer sobre questões de Estado. Fará o que o governo de momento (que, noto, lhe foi indicado pelo parlamento) lhe disser que faça. Daqui a dias, a rainha lerá o “discurso da coroa”, preparado integralmente pelo governo, no qual detalhará aquilo que o “my government” escreverá para ela ler.

A ideia, que anda por aí, de que a rainha poderia usar este momento para poder contrariar o governo em funções é completamente desprovida de sentido, tanto mais que nem sequer se sabe o que a rainha pensa - e ninguém no Reino Unido tem intenção de lhe perguntar. Todo o cidadão britânico sabe bem isto, vive confortável com esta regra e só os estrangeiros é que especulam sobre o tema.

Uma última nota, de natureza mais geral: a condição implícita para as monarquias contemporâneas poderem subsistir em regime democrático (leia-se, na Europa e no Japão) é a cedência aos eleitos de todo o poder de intervenção em matérias de Estado. Assim, nos dias de hoje, todos são ... “rainhas de Inglaterra”. Até a própria!

quarta-feira, agosto 28, 2019

O senhor Moisolindo


Passei há dias por lá, por aquela casa, que tem aquela janela. É na rua da Torrinha, no Porto. No passado, foi ali o Lar Gomes Teixeira, pertença do Centro Universitário do Porto. Disponibilizava quartos a preços módicos e por lá me alojei, durante o ano letivo de 1966/67, como caloiro do curso de Engenharia Eletrotécnica.

O lar tinha um porteiro, o senhor Moisolindo (pergunto-me agora: será que se chamava Nozolino e eu sempre percebi mal?), que por lá dormia. Dormia quando podia, porque a agitação no lar era imensa, com noitadas frequentes, até ao dealbar.

Ao pobre do Moisolindo tudo acontecia: desde “bombas” de água em sacos de plástico, que explodiam no eco fácil do saguão fechado para o qual dava o janeluco do seu quarto, até ser chamado, de madrugada, pelo som estridente da campaínha da porta, e, no percurso, tropeçar em fios de pesca estrategicamente colocados, ao mesmo tempo que, pelo vão da escada, sobre ele caíam, cocoricando, galinhas raptadas de quintais vizinhos. Entre tantas outras “invenções”, porque a imaginação dos utentes do lar era infinita.

O Moisolindo era uma figura gorducha, com um ligeiro atraso psicológico e uma gaguez persistente. A nós, servia para abrir e fechar a porta da rua, receber uns recados e pouco mais. Coadjuvava a lavadeira e governanta, que nos servia os pequenos almoços. E imagino que também fizesse limpezas. Era filho do senhor Claudino, um homem simpático que preponderava na portaria do Centro Universitário, a umas centenas de metros.

A porta do lar permanecia aberta, com o Moisolindo por perto, até às 10 horas da noite. Depois, a cada hora, até à uma manhã, estava convencionado haver três aberturas da porta, a toque nosso da campaínha. E lá surgia o Moisolindo, estremunhado, de eterno pijama às riscas.

Num desses serões, às 11 da noite, à abertura da porta, entrei com um grupo de colegas e fiz questão de desejar boa-noite ao Moisolindo, de forma bem visível. E subi para o meu quarto, no topo do edifício.

Na “porta da meia-noite” um novo grupo entrou no lar. Nesse grupo ... eu também vinha! O Moisolindo, julgando estar a sonhar, mirou-me com gaguejante supresa: “O senhor Seixas na-na-não entrou já, há bocado?” Fazendo-me de novas, devo ter dito algo como “Eu? Está enganado, senhor Moisolindo. Boa noite!”, zarpando pela escada.

Uma da manhã. Um derradeiro grupo acede ao lar. Estava o Moisolindo prestes a fechar a porta quando surji eu, afogueado, vindo da rua: “Não feche, senhor Moisolindo, não feche! Falto eu!”. O homem esbugalhou os olhos, não querendo acreditar naquela “aparição”. Creio que já nem reagiu, ficando a olhar para mim, que, pela terceira vez, lhe dava as boas-noites, dirigindo-me rapidamente à escadaria interior.

Nos dias imediatos a esta cena, o Moisolindo, sentindo ter sido gozado por mim, embora ainda sem perceber como, fez-me cara feia. Depois, com o tempo, tudo passou. Acho que ele nunca entendeu a explicação simples para o mistério da multiplicação das minhas “aparições”: eu saía pela janela que se vê na imagem, pertencente a um dos dois quartos do rés-do-chão.

O funcionamento do Lar Gomes Teixeira veio a ser suspenso no final desse ano, por decisão da universidade. Queixas por reiterados atos de indisciplina tinham obrigado a Reitoria a uma intervenção de emergência. Em nome desta, o professor Daniel Serrão já havia chegado a reunir com os utentes do lar, para tentar impor alguma acalmia. Quando um dia, numa conversa no Porto, lhe revelei que, nesse ano “histórico”, tinha sido um dos utentes daquela casa, nem queria acreditar: “Não me diga que o meu amigo era um deles?! Nunca, na história da universidade do Porto, se viu tanta anarquia num lar!", disse-me.

Quero crer que o facto de, nesse ano, eu ter apenas conseguido concluir uma cadeira do curso, é capaz de ter tido alguma coisa a ver com o ambiente no local onde me hospedava. Foram bons tempos? Não estou tão certo disso...

A nova comissária


Elisa Ferreira será a sexta pessoa, indicada por Portugal, a integrar a Comissão Europeia, desde a nossa entrada para as então Comunidades, em 1986. Não será a "comissária de Portugal", porque os comissários, embora indicados por cada um dos governos nacionais, não representam formalmente, na sua ação na Comissão, o seu país de origem. Compete-lhes assumir o interesse geral da União Europeia, embora uma regra não escrita acabe por admitir que, na sua presença no colégio de comissários, eles para aí carreiem a "sensibilidade" do país que os indica. Mas é falsa a ideia de que um comissário pode atuar como uma espécie de funcionário do país no seio da Comissão, aí defendendo abertamente os seus interesses nacionais.

Uma visão antiga e ingénua é a de que, a um país, interessa que ao comissário que indicou seja atribuída na Comissão uma "pasta" que corresponda especificamente aos seus interesses nacionais mais relevantes. Se essa perspetiva egoísta pode funcionar, às vezes, para os maiores Estados, é uma completa falácia no que toca aos restantes. Pela experiência de observação da vida europeia nas últimas três décadas, um comissário torna-se relevante quando, pela sua qualidade, consegue ganhar poder de influência pessoal no seio do colégio de comissários e a quem, pela horizontalidade do seu pelouro, os outros sejam obrigados a recorrer com frequência.

Portugal é dos escassos países que tiveram um seu nacional como presidente da Comissão Europeia, com a década de Durão Barroso. Antes, Cardoso e Cunha, Deus Pinheiro e António Vitorino tinham desempenhado o cargo de comissário europeu. Depois de Barroso, foi Carlos Moedas. Em 33 anos de presença na União Europeia, o PSD indicou quatro comissários e o PS apenas um. A "quota" socialista é agora reforçada, embora Elisa Ferreira não seja militante do PS.

Elisa Ferreira é um nome forte e prestigiado na Europa, largamente consensual em Portugal. Com uma passagem marcante pelo Parlamento Europeu, onde se destacou no debate da questão da União Bancária, a sua ida para vice-governador do Banco de Portugal foi uma decorrência natural, como natural seria que viesse a suceder a Carlos Costa, quando este terminar o mandato.

A nova comissária vem do Norte, foi docente na Universidade do Porto, trabalhou na antiga Associação Industrial Portuense e nunca deixou de refletir, em todas as fases da sua vida, a sua ligação regional. Acho extremamente positivo que uma competente mulher do Norte passe a ser o mais visível rosto português na Europa.

terça-feira, agosto 27, 2019

Elisa Ferreira


É uma excelente notícia para o país a indicação de Elisa Ferreira para comissária europeia. Trata-se de uma figura altamente respeitada na Europa, onde, no Parlamento Europeu, teve um papel destacado no período decisivo das discussões sobre a União Bancária. A sua posterior nomeação como vice-governadora do Banco de Portugal, onde tudo indicava dever vir a suceder a Carlos Costa, no termo do mandato deste, no próximo ano, foi o corolário natural dessa ação.

Elisa Ferreira foi uma excelente ministra do Ambiente e, depois, do Planeamento, nos governos de António Guterres, onde a conheci. Professora da Universidade do Porto, com parte da sua carreira ligada à então Associação Industrial Portuense, nunca foi militante do PS mas foi uma constante “compagnon de route” dos socialistas, que sempre ganharam imenso com a sua colaboração.

Confesso ser suspeito neste avaliação da Elisa: somos bons amigos desde há muito, pelo que é também com muita alegria que partilho esta excelente escolha, que creio plenamente consensual na área política, e pela qual quero também felicitar a clarividência de António Costa. Vai fazer muito bem a Bruxelas poder contar de novo com a inteligência de uma mulher competente e ativa, que gosta da vida e sabe olhá-la sempre com um sorriso bonito e uma atitude saudável. Um abraço também ao Zé Fernando, deixando expressa uma “angústia” interesseira (esta é uma “private joke”): e agora, a “Zulmira”?

segunda-feira, agosto 26, 2019

Nos anos do Pedro


O Pedro fez 80 anos. Pedro Ribeiro de Menezes é um diplomata português jubilado, com uma bela e merecida carreira. Desde sempre, teve para com os colegas mais novos uma atitude de excecional simpatia. Sou feliz beneficiário dessa forma elegante e cordial como nos (me) tratou. E, também por isso, ficámos amigos.

Recordo-o como sendo alguém que esteve na vida profissional com uma postura aberta, dialogante, com um discurso por onde perpassava um certa distância crítica, talvez mesmo um olhar irónico sobre essa “estranha forma de vida” que é a carreira diplomática. Viríamos a ter em comum, em tempos diferentes, a chefia da embaixada em Brasília, para além de termos comungado momentos que ambos conseguimos transformar em bastante divertidos. Outros, um pouco menos.

Em 1979, o Pedro tinha a seu cargo, nas Necessidades, o serviço do pessoal. Um dia, ainda antes de partir para o meu primeiro posto, na Noruega, tomei posse, com outros colegas, da categoria de “segundo secretário de embaixada” - a segunda, a contar do fundo da escala hierárquica, na qual ainda haveria mais cinco a percorrer...

Quem nos conferia a posse era o secretário-geral, o embaixador Caldeira Coelho, tendo ao seu lado Pedro Ribeiro de Menezes.

Caldeira Coelho era, naquela casa, como que a personificação do regime anterior. O 25 de abril havia-lhe trazido alguns problemas, mas o seu “networking” social e político, alguma complacência por parte da ordem democrática e, sem dúvida, uma inteligente habilidade profissional havia-lhe reposto a carreira, que chegara a estar tremida. A democracia foi, para com ele, de uma imensa generosidade.

Ele nunca me tinha visto, mas sabia quem eu era. Semanas antes dessa posse, numa reunião em que o meu nome havia sido discutido, no âmbito das colocações no estrangeiro, soube que se apressou a propor-me para o posto mais complicado, e de vida mais difícil, entre todos em análise: a embaixada em Bagdad. Deixou mesmo cair algumas ironia a meu respeito, nesse debate. Não que eu me escusasse a postos difíceis: no ano anterior havia concorrido a Luanda (e para lá iria três anos depois, pois estas “disponibilidades” não se apagam na memória institucional).

Recentemente, vim a confirmar que o meu nome esteve “no radar” de Caldeira Coelho desde há muito, por razões de natureza política. Nessa colocação de 1979, seria graças à intervenção do meu então diretor-geral, Lencastre da Veiga, que acabei por ir para Oslo, um lugar mais “calmo” do que Bagdad. Às vezes, lembro-me de que Caldeira Coelho tinha algum “faro” geopolítico: a guerra entre o Iraque e o Irão iria começar menos de um ano depois...

Quando os futuros empossados entraram no gabinete do secretário-geral, Caldeira Coelho estava sentado à sua secretária. Mal nos olhou e nem se dignou levantar-se para nos cumprimentar. Pedro Ribeiro de Menezes, que nos recebera, estava de pé, ao seu lado, e ia chamando os funcionários, um a um, para o ato de posse. O termo era assinado por cada um de nós e pelo secretário-geral, que continuava a ignorar-nos. Mas não a todos. Quando chegou a minha vez e ouviu o meu nome, levantou a cabeça, tirou os óculos, olhou-me nos olhos e disse, em voz pausada, onde se pressentia um subliminar tom ameaçador: “Então você é que é o Seixas da Costa?!”

Não era bem uma questão a que eu tivesse de responder, era a constatação de estar perante o “tal” funcionário, que ele bem conhecia “de ouvido”, sem conhecer pessoalmente. Lembro-me do meu incómodo, quanto mais não fosse pelo singular e estranho destaque que me era dado perante os meus colegas. Nenhum deles teve a menor dúvida da razão por que isso acontecia... Ali estava eu, de cabelo mais comprido do que o padrão dos diplomatas “by the book” recomendava, com uma bigodaça bem à época, num tempo e numa circunstância que não augurava nada de bom para a minha carreira futura. Só que os alcatruzes da nora vão rodando...

Peço desculpa ao Pedro Ribeiro de Menezes por ter aproveitado o pretexto deste seu magnífico 80° aniversário - que imagino passado com a sua família, sendo hoje um dos seus filhos, um bom amigo, o nosso embaixador em Madrid, e o outro um credenciado historiador, autor da única (repito, da única) biografia de Salazar - para contar esta historieta pessoal, desses meus primeiros tempos no MNE, em que uma das memórias gratas foi ter tido o privilégio de o conhecer. 

Perguntará o leitor: então não envia os parabéns ao seu colega? Eu esclareço: já trocámos entre nós as devidas mensagens, mas reitero aqui o meu forte e amigo abraço ao Pedro.

domingo, agosto 25, 2019

Jogos florais

É muito interessante assistir ao “bate-bola” entre António Costa e o Bloco de Esquerda, com a invocação, pelo primeiro, do nome de Jerónimo de Sousa e do PCP como o bom exemplo de parceiro que os bloquistas deveriam ter seguido.

Longe vão os tempos idílicos da Geringonça?

O que mais irrita o PS, para além da escassa fiabilidade do partido de Catarina Martins, que os últimos anos evidenciaram, é o persistente discurso contra uma eventual maioria absoluta do PS. Costa pressente que essa conversa pode cair favoravelmente nos ouvidos de algum eleitorado que ”balança” o voto na sua margem esquerda. Sublinhar uma estudada hostilidade contra o Bloco é obrigar esses eleitores a fazerem uma escolha clara.

O que mais irrita o Bloco é a decidida falta de vontade de Costa de o levar para o governo, hipótese que ele sabe que conduziria a uma inevitável crise dentro do PS. Aliás, acho que, ao primeiro-ministro, essa possibilidade nunca lhe passou pela cabeça, atendendo também aos custos reputacionais que isso poderia ter para a imagem de moderação responsável que tanto trabalho teve para construir na Europa.

Os constantes gestos de simpatia face ao PCP são assim o elemento “compensatório”: Costa quer com eles mostrar que não está contra os partidos à sua esquerda, apenas quer pôr “en su sitio” o que não é fiável.

Vou repetir a pergunta: longe vão os tempos idílicos da Geringonça? Não necessariamente.

Se os resultados eleitorais o exigirem, a Geringonça, num qualquer modelo, pode renascer. Isto são apenas “jogos florais”, no caminho para as eleições.

sábado, agosto 24, 2019

Da boa posta


Há já uns largos anos, um (bom) restaurante de Vila Real anunciou na sua lista “posta mirandesa”. Desconfiei, mas mandei vir. Quando o prato chegou à mesa, constatei que se tratava de um bom bife, mas nada parecido com uma posta. Devolvi à procedência, dizendo ter pedido uma posta mirandesa e que aquilo não era nada disso. E, algum tempo depois, voltou outro bife, agora com ar de naco de vitela. Chamei quem de direito e expliquei que aquilo também não era uma posta mirandesa. Simpático, o proprietário, que ainda hoje continua a ser meu amigo, lá me foi dizendo que era tudo o que tinham. A “posta mirandesa” desapareceu da lista daquele restaurante. Quanto mais não seja, talvez tenha sido para não me ouvirem...

A posta é um pedaço de carne muito especial, de uma parte específica do animal, com uma textura muito própria. Os entendidos dizem que, à mesa, se deve poder cortar com “o outro lado da faca”. Não exijo tanto, mas exijo a macieza que só pode ser dada pela genuinidade absoluta do produto e por um tempo de ida ao lume que não “mate” a carne, a qual, para o meu gosto, deve estar num ponto médio/mal passada, dela saindo um molho suficiente para o produto poder sobreviver por si próprio como prato, venha ou não com as batatas a murro clássicas.

Comi, na minha vida, postas memoráveis. Desde logo, nesse santuário que foi a “Gabriela”, em Sendim, ainda com a dita senhora pela sala. Também no “Artur”, em Carviçais, com o mudo a servir-nos o vinho. Em Mogadouro, na “Lareira”, tenho nota de boas postas. O mesmo aconteceu, embora sem nunca deslumbrar, na “Balbina”, na própria Miranda. No Peredo, perto de Macedo, o João Saldanha tinha a sua bem apreciável “posta à Saldanha”. Perto de Bragança, em Gimonde, o “Dom Roberto”, apresentava, em tempos, uma posta soberba. Podendo espantar, uma das melhores postas mirandesas que comi na vida foi em Braga, num restaurante já desaparecido, chamado “Abade de Priscos”. Ah! claro, também comi muitas postas “assim-assim”, quando caí na asneira de me não informar antes se a casa era de confiança no que toca à genuinidade desse prato.

A que propósito vem esta conversa? Apenas para informar que agora, em Bragança, no sempre excelente “Geadas”, comi aquela que considero ser a melhor posta de que tenho memória. A mão da dona Iracema continua infalível, dando plena confiança a quem por ali vai - e eu já não ia há uns tempos, para alimento culposo de um dos meus pecados carnais.

sexta-feira, agosto 23, 2019

O Brasil e a Amazónia


A questão da Amazónia tem um importante histórico no Brasil. Desde há muito que, naquele país, há uma escola de pensamento que, com ou sem razão, acha que a sociedade internacional, e em especial alguns atores nela relevantes, têm uma ambição sobre o território. Isso fez com que os militares brasileiros, no seu culto tradicional (e natural) da soberania, se tivessem auto-arrogado do papel de primeiro defensor da brasilidade da Amazónia. 

“Integrar para não entregar” foi o lema por detrás do esforço desenvolvido, desde o início do século XX, para ali ter o maior número possível de fronteiras protegidas, com guarnições militares espalhadas por todo aquele imenso território. Recordo-me de chefes militares brasileiros dizerem, em privado, que a necessidade do Brasil ter capacidade de contrariar, nessas fronteiras, o tráfico de drogas e as infiltrações extremistas também fazia parte dessa sua “obrigação”, ligada à tarefa de preservação da soberania do país sobre a Amazónia.

Convém deixar muito claro que a defesa da soberania na Amazónia, sendo um “cavalo de batalha” das Forças Armadas brasileiras, é um tema que une muitos e variados setores da sociedade brasileira, da direita como da esquerda. O Brasil é um país muito nacionalista e, tendo ambições em ser reconhecido como uma potência emergente com maior consagração institucional à escala global, é extremamente sensível a todas as potenciais intromissões na sua soberania, que possam ser vistas como debilitantes da capacidade de afirmação do país.

A França, que convem lembrar é também um país amazónico - a Guiana francesa faz fronteira com o Amapá - foi sempre a “bête noire” dos brasileiros quanto ao assunto, muitos recordando ainda as palavras de Jacques Chirac sobre a incapacidade do Brasil para estar à altura das suas responsabilidades, no tocante à preservação do “pulmão do mundo”. Mas, num passado ainda recente, também os Estados Unidos eram vistos como uma forte ameaça nesse domínio. 

Se, apesar de ter de lá saído há uma década, ainda posso ter a pretensão de conseguir identificar algumas dinâmicas internas do Brasil, quer-me parecer que os últimos dias trouxeram alguns alertas que, finalmente, podem ter sido capazes de suplantar a conhecida irresponsabilidade declaratória do presidente Bolsonaro. 

Este, se nos recordarmos, reagiu forte e feio à decisão alemã e norueguesa de suspenderem as suas contribuições para o fundo internacional criado para ajudar o Brasil a levar a assumir as suas responsabilidades na Amazónia, depois do escândalo internacional gerado pela aceleração do desmatamento do território, com laxismo complacente, para não dizer cúmplice, do governo. Porém, o grande surto de fogos já foi posterior e iria ser na sequência deste que Macron “tweetizou” o comentário que voltou a indignar o presidente brasileiro. 

Macron não tem a Europa, e muito menos, o mundo na sua mão. Mas tem um poder de veto sobre o Acordo UE-Mercosul. Por isso, ao ameaçar usá-lo, desencadeou de imediato preocupações nos operadores económicos brasileiros, como já se viu já na declaração da poderosa FIESP. Além disso, as manifestações contra o Brasil, organizadas um pouco por todo o mundo, estão visivelmente a criar, em setores económicos do país, o receio de um início de boicote às exportações brasileiras - sendo completamente irrealista, contudo, pensar-se em sanções, dado que os interesses externos dos principais investidores mundiais no Brasil tornam esse cenário implausível.

Tudo o que acabo de referir terá conseguido forçar Bolsonaro a dar hoje ares de ter algum sentido de responsabilidade, tanto mais que o tema da ameaça à Amazónia está já na agenda do G7, este fim de semana, em Biarritz. O que sobra de bom senso na liderança brasileira deve estar a entender agora melhor o que pode significar para o país o “custo Bolsonaro”. Irá a tempo?

A procissão


Terminaram ontem as festas de Bragança. Na véspera, à noite, tinha acabado de tomar um chá no Flórida (sou um fã histórico do vizinho Chave de Ouro, mas o chá preto, por lá, é sinistro!), deu-me para passear um pouco, aproveitando o clima, pelas ruas da vizinhança. 

Passei pela praça que a imagem mostra, onde, num muito cálido 10 de junho, há muitos anos, recebi a maior condecoração que um servidor público pode almejar. Decidi percorrer a pé várias ruas, no entorno da Sé. Passo por ali tantas vezes, sempre de carro, e essa era uma oportunidade de conhecer melhor a área. Ia sozinho e sozinho continuei sempre porque, não obstante estar uma noite fantástica, havia muito pouca gente.

Isso até certa altura! De repente, comecei a ouvir umas rezas em tom magnificado por altifalantes e dei comigo, ao virar de uma esquina, frente a uma procissão.

Quando digo “frente”, é isso mesmo! Atrás de mim, a rua em que acabava de entrar estava praticamente deserta e, pela frente, aproximava-se uma mole humana que ocupava todo o espaço da artéria, de casa a casa. Na dianteira (não quero parecer o Villaret, a ler “A procissão” do António Lopes Ribeiro, nem usar linguagem de cronista de ciclismo) vinha um grupo com opas brancas, empunhando uma luminárias altas (perdoe-se-me a falta de vocabulário, mas sou de outra “freguesia”, em matéria de fés & fezadas). Todos - repito, todos ! - olharam para mim, com um ar inquisitivo. Eu descia, eles subiam, pelo que todos me viam. Ia desgrenhado, com barba de férias de três dias e um ar (momentaneamente) assarapantado pelo inesperado, num conjunto bizarro que não passava desapercebido àquelas centenas de pessoas que, lentamente, passo a passo, se aproximavam, numa grande e serena frente humana. Derivei, com as discrição possível, para um dos lados da rua, tentando neutralizar a minha presença. Subi uns degraus, à entrada de uma casa comercial, colei-me a uma montra, mas, em lugar de assim me disfarçar perante as atenções coletivas, fiquei gambiarrado nessa plataforma pela luz que vinha do interior, numa exposição ainda maior. Todos olhavam para aquele fulano de cabelos brancos, que ninguém conhecia e que ali estava, numa postura insólita, em claro contra-ciclo com a cerimónia. 

Que fazer? Pensei deixar passar toda a procissão mas, como ela ia numa subida, e o andor que vinha no meio com a Senhora tinha ar de pesadote, e quem o segurava já devia vir cansado, aquilo arreou por várias vezes. Eu, embora sem a menor pressa, começava a sentir-me um pouco mal naquela função de único (porque era o único, em toda a rua!) mirone, mas por todos mirado, do evento. Decidi assim aproveitar uma das pausas para me escapulir, furando com uns “com licença” por entre os fiéis, que não paravam de cantar ou rezar, a maioria empunhando uma vela (aquilo agora parece de vidro, na minha infância era de papel) e quase todos afivelando um ar de silencioso desagrado pelo caminho contrário que aquele forasteiro ia fazendo pelo meio deles. Que embaraço!

Acho que ontem fiquei com meia Bragança a ter uma péssima imagem de mim. Pelo sim pelo não, hoje fiz a barba.

quinta-feira, agosto 22, 2019

Manuel Cardoso Simões



96 anos é uma idade bonita para se morrer. Manuel Cardoso Simões sai agora de uma vida intensa, que dedicou à agricultura e ao desenvolvimento da região que, desde há muito, tinha adotado como sua. 

Vila Real deve-lhe muito mas, principalmente, o empenhamento na ideia daquilo que hoje é a UTAD. Ainda há meses, o professor Valente de Oliveira me falava das inúmeras vezes que o engenheiro Cardoso Simões batia à porta do seu gabinete para promover a instalação dos estudos superiores em Trás-os-Montes. Era difícil travá-lo! 

O meu amigo Manuel Cardoso Simões era um homem caloroso, sorridente, sempre cheio de ideias, um entusiasta da vida. Nos últimos anos, viamo-nos pouco, telefonávamo-nos pelos Natais. A sua voz ia esmaecendo, mas eu sentia que ele se agarrava à existência com o vigor de sempre. Até ontem.

O meu sincero pesar à sua Família.

Falatório



Nikki Halley, a embaixadora americana na ONU, que pediu para sair do cargo por razões nunca muito bem explicadas, tem vindo a dizer, em várias ocasiões, não ser candidata ao lugar de vice-presidente, substituindo Mike Pence, num futuro segundo mandato de Trump. Ontem, uma fonte semi-oficial dizia que, aparentemente, a única pessoa que espalha esse rumor é ... a própria Nikki Halley.

Isto fez-me lembrar uma história passada no Montecarlo, o café lisboeta onde, antes do 25 de abril, nos juntávamos para noites de bela e solta conversa. 

Havia por ali um jornalista, conjunturalmente desempregado, um tipo com alguma graça, que, num certo período, se sentava nas nossas mesas. Todos sabíamos que ele andava “deserto” para entrar para o ”Diário de Lisboa”, à época um prestigiado vespertino, com muita da “nata” do jornalismo a escrever por lá. Mas o convite não chegava, como, aliás, nunca chegaria. 

A conversa dele sobre o assunto era em tom desafiante, do estilo: “Queres saber que há aí uns palermas a dizer que eu vou para o ‘Lisboa’! Como se eu aceitasse, assim do pé para a mão!” E eu, para o ouvir, ia dizendo: “Também já alguém me falou isso, há uns dias, mas já nem sei quem foi ...” Ele, ansioso: “Não te lembras quem foi?” Eu “esquecido”, reprimindo a crueldade, com vontade de dizer: “Foste tu!”

Voto obrigatório


A SAPO pediu-me uma ideia para o ciclo político posterior às próximas eleições. Fui de opinião de que deveríamos pensar em tornar obrigatório o voto, como acontece em outros países. Veja aqui porquê.

quarta-feira, agosto 21, 2019

Inconsútil


Não é para aqui chamado o significado da palavra “inconsútil”. Não interessa para esta história.

Ontem, ao ler o prefácio de José Sarney (já estou a imaginar alguns: “Quem este tipo anda a ler!”) a um livro de ficção de Carlos Lacerda (“Pior! O Lacerda! O que levou o Getúlio ao suicídio!”), deparei-me com a palavra “inconsútil”. Sei o que ela significa mas, como disse, isso nada vem para o caso.

E foi então que me lembrei do que o meu velho amigo Carlos Veiga Ferreira, um heróico editor da nossa praça, um dia disse quando lhe perguntaram por que razão havia decidido dar à sua mais recente editora (porque o Carlos é reincidente) o nome de Teodolito. Aqui vai:

Havia um poeta meritório, que já morreu há muito tempo chamado António de Sousa e mostrou vários poemas ao Herberto Helder. A determinada altura, havia um verso que dizia qualquer coisa ‘noite inconsútil’ e o Herberto perguntou-lhe: O poema é giro mas António você sabe o que é ‘inconsútil’ ? E o António respondeu: ‘Não sei nem me interessa mas é uma palavra muito bonita.’ Eu sei o que é um teodolito e foi por causa disso e também remete para um texto brilhante do Luiz Pacheco que se chamava ‘O Teodolito’ ".

E, repito, o que “inconsútil” significa não vem ao caso. Quando vier, todos temos dicionários para isso.

(“Que raio de história!”, dirão alguns. É o meu conceito de serviços mínimos, como transportador estival de matérias inúteis)

Sinais de fumo



Das grandes economias, chegam sinais de abrandamento no crescimento, a que se soma uma conflitualidade político-comercial com impacto global, tudo contribuindo para uma instabilidade psicológica dos mercados. Terão sido suficientes as lições da crise anterior?

A ideia de trazer os emergentes e outros países relevantes para um diálogo no seio do G20 resultou bastante aquém das expetativas. A Rússia saiu também entretanto do G8, a China entrou num inédito ciclo de bipolaridade e o Brasil está no estado em que está. E, acima de tudo isso, os Estados Unidos afirmam uma agenda egoísta de reforço do seu poder, voltando deliberadamente as costas à gestão multilateral da ordem mundial, quebrando mesmo alguns laços que haviam desenhado pelo mundo, depois de 1945.

Muito daquilo que os especialistas recomendavam que fosse feito, na blindagem financeira da Europa do euro, não chegou a concluir-se. Por falta de consenso político, a UE ficou a meio caminho do reforço institucional do seu eixo económico e monetário, havendo infelizmente a certeza de que, se um novo ciclo de crise surgir, o ambiente de potencial solidariedade coletiva para a adoção de medidas “ad hoc” será inferior ao do passado. Costa tinha razão ao tentar colocar nas instituições europeias figuras que pudessem contrariar isso. É que há ainda que contar com a fragilidade das lideranças das duas maiores economias europeias, as incógnitas do Brexit e a deriva italiana. E a saída de Mario Draghi do BCE não é também a melhor das notícias.

Portugal é uma pequena economia aberta, muito dependente de mercados externos que, tudo o indica, vão começar a retrair-se. O destino económico imediato de países como a Espanha, a França, a Alemanha ou o Reino Unido é vital para nós e, por muito que alguns “sábios” tentem iludir isso, não está nas nossas mãos fazer algo que possa contrariar uma sua potencial dinâmica negativa. Outros mercados alternativos têm limites de expansão e, se se entrar num período de recessão global, embora eventualmente com alguma “décalage” temporal, todos sofrerão também uma inevitável retração. Não é nada agradável pertencer a uma economia que não tem meios de controlar o futuro daquilo que essencialmente a condiciona.

Alguns, esfregando as mãos ressabiadas, perguntarão: é o “diabo” que, finalmente, chega? Quem se enganou na chegada do Mafarrico, enganou-se, redondamente, no período em que o aguardava. Agora, poderá ter “razão”? Se eu disser que, daqui a uns tempos, vai chover passo a génio da futurologia?

terça-feira, agosto 20, 2019

“Do not disturb”


Há muitos anos, um amigo, que me sabia peregrino regular por muitos e desvairados hotéis, teve a coragem de pedir que lhe trouxesse, de cada alojamento diferente, os avisos “Do not disturb”, que se colocam no exterior dos portas dos quartos, quando queremos ter um garantido sossego face às investidas do pessoal. 

Porque, à época, era um pouco mais insensato do que hoje ainda sou, fiz-lhe a vontade e, por alguns tempos, lá coletei esses avisos, oferecendo-os a esse amigo, que se mostrava deliciado na receção de cada fornecimento. Um dia, porém, tive um rebate de consciência e passei a ter o juízo suficiente para passar a respeitar, em absoluto, o património dos hotéis. (Hoje, só sou tentado quando eles disponibilizam sabonetes de boa qualidade, o que, aliás, é cada vez mais raro).

Esse meu amigo, um querido amigo que dava pelo nome de Álvaro Magalhães dos Santos, já se foi desta para melhor há bastante tempo. Lembrei-me dele hoje, ao deparar, no quarto de um hotel, com este belo exemplar de aviso. O paradoxo é que, tendo a certeza de que ele o apreciaria pelo bom gosto, ironicamente, a mensagem já não se lhe adequaria.

Não faço ideia do que terá acontecido à coleção de “Do not disturb” do Álvaro, embora possa imaginar que, no lugar onde está, não necessite de colocar avisos para lhe não perturbarem o sossego eterno.

segunda-feira, agosto 19, 2019

A hora de Alexandre

O olhar da secretária que me esperava na porta do elevador não enganava. “Cheguei tarde?” Era a minha primeira reunião como membro da administração da empresa. “Não chegou tarde, mas tem de ir já para a sala do conselho”. Não entendi o que se estava a passar: estava antes da hora indicada. Quando entrei, Alexandre Soares dos Santos levantou-se da mesa, onde estavam todos menos eu, para me cumprimentar. “Já vai conhecer os hábitos da casa”, disse-me, num tom que vim a perceber ser muito dele, entre o frio profissional e o cordial bem humano.

Para encurtar a história: a reunião estava marcada, de facto, para a hora que eu tinha apontado mas, com Alexandre Soares dos Santos, elas começavam, em regra, uns bons minutos antes. Era a famosa “hora de Alexandre”. Foi a minha primeira lição na Jerónimo Martins.

12.12.12. Fixei este número porque é a data em que, ainda embaixador em Paris, recebi uma chamada de Alexandre Soares dos Santos que, tendo sabido do meu próximo regresso a Lisboa, me convidava a integrar a administração da empresa. Foi uma completa surpresa. Dias depois, numa conversa pessoal, disse-me que gostava que eu o ajudasse a “olhar para o futuro”, em termos geopolíticos, antecipando tendências e problemas. A Jerónimo Martins estava em três geografias, podia vir a alargar a sua ação e esses passos deviam ser tão seguros quanto possível. “Não preciso de si para quaisquer contactos. Nunca lhe irei pedir nada nesse domínio”. E nunca pediu.

Eu havia conhecido Alexandre Soares dos Santos, um ano antes, numa reunião em que a Gulbenkian reuniu os Conselhos Gerais das universidades públicas. Ele presidia à Universidade de Aveiro, eu à UTAD. Conversámos durante o almoço. Anotei, sem a menor surpresa, que a sua perspetiva sobre algumas coisas divergia da minha. Disse-lhe isso no nosso primeiro encontro. “Eu sei o que pensa”, respondeu-me, sorrindo. Nos anos seguintes, e já lá vão mais de seis, nunca o que escrevi ou disse no espaço público, muitas vezes à clara revelia daquilo que sabia serem as suas ideias, mereceu, da sua parte, a menor observação ou sinal de desagrado. 

Alexandre Soares dos Santos foi muito criticado por algumas decisões polémicas e por posturas que, com frontalidade, sempre entendeu dever assumir, na área política e económica. Nunca se refugiou atrás de fórmulas redondas, para deixar bem claro o que pensava. Ninguém o pode acusar de falta de coragem.

Em tempos de crise, dizia que gostava de poder “fechar” os atores partidários numa sala, durante uma dúzia de horas, até que se entendessem numa agenda para os próximos 10 anos. “Não é possível que gente que diz querer o melhor para Portugal não consiga um acordo sobre o essencial”. Ele próprio teria consciência de que as coisas eram mais complicadas do que essa ideia pressupunha. Era, porém, o seu desespero - acho que a palavra é esta - perante a falta de soluções racionais que o mobilizava. É também daí, estou certo, o seu grande empenhamento na Fundação Francisco Manuel dos Santos, que sempre viu como a contribuição que a sua empresa podia, e devia, prestar ao país, pensando-o com rigor.

Julgo ter conhecido suficientemente Alexandre Soares dos Santos para poder dizer, com toda a convicção, que, com a sua desaparição, se perde um criador empresarial como muito poucos que o país teve nas últimas décadas. Desapareceu alguém que o tempo ajudará a julgar como um homem de boa vontade, cuja memória permanecerá muito para além das caricaturas que alguns dele foram fazendo. E eu perdi um amigo.

A greve

A greve dos transportadores de combustíveis acabou. Pelo menos, por agora. Algumas pessoas encontraram na antipatia que lhes despertava o tom pomposo do (bem estranho) representante dos trabalhadores uma subliminar e oportuna justificação para disfarçarem o óbvio: o incómodo que a possibilidade de falta continuada dos combustíveis iria implicar para o seu conforto. Confesso, sem o menor pejo, que foi o que aconteceu comigo. O que eu não queria era a greve e, quando ela começou, desejava que ela acabasse rapidamente. Como, em especial em férias, raramente vejo um noticiário televisivo com som (alimento-me de rodapés), tinham-me escapado as razões salariais dos motoristas. Quando li qualquer coisa sobre elas, devo dizer que passei a ver a sua posição com mais compreensão. Isso também foi ajudado por ter ouvido uma declaração do representante das empresas, uma emproada personagem com ar grave, cujo nome agora me escapa e que logo achei, em termos de antipatia competitiva, ser um digno émulo do tal Pardal. Quem é que, afinal, tinha (a principal) razão? Não sei, tanto mais que não acho que um cidadão comum tenha de ter opinião sobre tudo o que mexe no país. Nesta crise, o que eu queria, muito simplesmente, é que a greve acabasse. Como ela acabou, estou satisfeito. Ponto.

... e logo se vai ver!

Ver aqui .