Uma das fraquezas da vida diplomática é a possibilidade de alguém se deixar seduzir de tal modo pelo país ou pelo governo junto do qual atua que passa, de forma mais um menos acrítica, a tomar como suas as respetivas posições, muitas vezes em contraponto às próprias orientações do Estado que representa.
"To go native" (ou, em tradução livre, ficar igual aos locais) é uma forma de mimetismo diplomático que pode arruinar a função e tornar irrelevante, quando não contraproducente, a ação do diplomata. Esta atitude pode comparar-se a uma outra, de sinal contrário, igualmente nefasta: a rejeição e diabolização das instituições e das figuras do país onde se atua, conduzindo a uma sistemática crítica negativa das suas políticas e tomadas de posição.
Conheço muitos casos de diplomatas que "went native", subscrevendo, com regular entusiasmo, tudo quanto emane do governo junto do qual estão a atuar, relevando a sabedoria das suas políticas, a argúcia dos seus dirigentes e a sistemática razão que lhes assiste. A maioria das vezes, isso não tem a menor das importâncias, para além do facto de desvalorizar o trabalho de informação que deve ser efetuado pelo posto.
Um problema surge, porém, se e quando há algum conflito de interesses entre o governo que esse diplomata representa e o Estado junto do qual está acreditado. Por real convicção ou por tropismo comodista, já vi casos de colegas apostados em tentar que as nossas autoridades mudem de posição, que Lisboa siga no sentido dos interesses... dos outros. Às vezes, o argumentário acaba por ser tão criativo que não pode deixar de ter-se alguma admiração profissional por quem, do outro lado, os conseguiu convencer...
Que fique bem claro que não estou aqui a falar de "traição" ou sequer de deslealdade, coisa com que, felizmente, nunca na minha vida profissional deparei em nenhum colega - o que, aliás, seria muito estranho, num corpo diplomático, como o português, onde o patriotismo é uma marca bem reconhecida. Trata-se apenas da emergência sincera de uma convicção de que a posição do nosso país está errada e de que certa é a daquele em cuja capital vive. Ora a vida diplomática é o contrário disso: é a necessidade de fazermos passar mensagens favoráveis aos interesses que as autoridades do nosso país entendem dever promover como sendo os nossos, mesmo que não tenham "pitada" de razão. Como dizem os americanos - e todos os diplomatas devem ter como lema -, "my country, right or wrong".
Muitas histórias poderia contar para ilustrar este tipo de atitude, mas, a este propósito e num sentido algo diverso, vem-me à memória a relutância que um dia notei, de um representante português junto de uma organização internacional, em obstaculizar a entrada da Indonésia num determinado comité. Tratava-se de uma instância onde a unanimidade era requerida e, por essa razão, Portugal poderia aí objetivar a sua política de então, que era criar dificuldades ao país cujo isolamento tentávamos garantir, como indireta pressão para contrariar a sua atitude no caso timorense. O argumentário técnico para justificar a nossa rejeição à pretensão de Jacarta era nulo, pelo que se imagina o embaraço do diplomata português junto dos seus colegas, ao ser-lhe pedido para explicar o inexplicável. Mas ele era pago para isso...
Depois de ter suscitado por escrito, ou em contacto com os serviços do MNE, todas as sua possíveis objeções às nossas instruções, o embaixador pediu para me falar - estava eu então em funções de natureza política. Pelo telefone, explicou-me a sua dificuldade: "Eu não tenho argumentos para me opor à admissão da Indonésia. Os meus colegas acham ridícula a minha posição e isto é quase um vexame!". Reparei que o homem estava, de facto, numa posição difícil. Perguntei-lhe: "Mas você acha que nós não temos razão?". Ao que me respondeu, um tanto aflito: "Bom, nós temos as nossas razões, só que eu as não posso dizer abertamente, porque eles nunca as aceitariam".
Nesse passo da conversa, não vi outra solução: "Meu caro, nesse caso, 'go native' e diga aos seus colegas que, por si, até concordaria com eles e deixaria entrar a Indonésia. Mas que, 'lá de Lisboa', as ordens são imperativas e que você, como profissional que é, as não pode contrariar. Eles perceberão". E ele assim fez. E julgo que os colegas perceberam.