Eu trabalhava no setor de contabilidade da Secção de Títulos da Caixa Geral de Depósitos, no Calhariz, em Lisboa, nesse início dos anos 70.
Era o meu primeiro emprego, a que fora parar por concurso público. As tarefas que me cabia fazer “nos Títulos” (como lhe chamávamos) não eram entusiasmantes, o regime de trabalho era bastante rigoroso, mas o salário não deixava de ser simpático. Continuava a ser estudante “voluntário” na universidade, onde ia fazer as “frequências” e os exames. Para se imaginarem as “facilidades” dadas a um trabalhador-estudante, nesses tempos da ditadura, bastará dizer que, sempre que tinha uma prova académica, esse dia era-me descontado nas férias.
O “setor da contabilidade” era, vale a pena dizer, um conceito majestático: era apenas constituído pelo Sirgado Serra, que o chefiava, e por mim. Por graça, ameacei várias vezes mandar imprimir cartões com o meu título de “subchefe do setor de contabilidade”...
Por esta altura do ano, entre o Natal e o Ano Novo, a nossa tarefa tornava-se mais pesada: eram os “acertos” do balanço. Os acertos era a tentativa de fazer coincidir, até ao limite do centavo, todas as folhas da contabilidade, o que nem sempre era fácil. Nesses dias, trabalhava-se até às 11 da noite e recordo-me de um ano em que, por 30 centavos de diferença, perdemos horas infindas, com o Serra a suar em bica, intercalando impropérios entre a interminável e repetida conferências das folhas. Era assim a vida nesse serviço público, nesses tempos em que o único “computador” era controlado pelo Salazar.
(Não, não é esse que estão a pensar, esse já tinha ido à vida: o Salazar era um colega que manejava uma máquina gigante a que chamávamos “computador”, de onde, ao fim do dia, saía o Modelo 19. E, por favor, não me perguntem o que era o Modelo 19!)
O Serra, o meu chefe direto, era um montijense, com grossos óculos, bastante mais velho do que eu, mas com quem logo estabeleci uma relação simpática. Não tinha um feitio fácil, andava às vezes macambúzio, mas não me recordo de alguma vez termos discutido. Nas saídas, era pontual como um cronómetro. E sentia-se que tinha a vida marcada pelos barcos para a Outra Banda. Dois minutos antes da hora, da gaveta do fundo do lado direito da secretária (estou a ver a imagem), sacava de uma escova e de um pano de lustro, dava polimento aos sapatos e, ao bater da “badalada”, era o primeiro a zarpar.
Eu era um “hard worker” e tinha um truque íntimo: fazia o meu trabalho de contabilidade como quem faz charadas ou palavras cruzadas. Talvez porque soubesse que, a prazo, aquela não ia ser a minha vida, levava o quotidiano com alguma ligeireza. Mas muito a sério. À tarde, depois de sair da Caixa, mudava de registo: ia beber um copo à Opinião, onde entrava na tertúlia do Batista Bastos e do Carlos Porto, ou ia para o Curso de Semiologia, do Eduardo Prado Coelho, no Centro Nacional de Cultura. E acabava o dia, ou melhor, a noite, na Grãfina ou no Montecarlo e, nos fins de semana, às vezes no Bolero.
Ao meu camarada de trabalho Serra uniam-me algumas ideias políticas e, nesse capítulo, tínhamos criado mesmo uma certa cumplicidade. Num tempo em que as paredes tinham ouvidos, as nossas conversas sobre as patifarias do regime suspendiam-se habilmente quando, à nossa frente, passavam alguns colegas que sabíamos adeptos “da situação”. Eu era então bastante radical, o Serra era um socialista moderado. E assim correu a nossa vida, por alguns anos, até que a tropa me apanhou.
A uns metros da secretária do Serra ficava o gabinete do Trancoso, o poderoso chefe de Repartição, figura mítica, que quase não víamos, encafuado nos seus domínios, convocando pelo telefone os dois chefes de Secção existentes na imensa sala em L em que trabalhávamos. Raras vezes, em todos esses anos, vi o Trancoso sair da sua fortaleza burocrática e dar a confiança de se deslocar à nossa sala. Quando o fazia, atravessava em passo largo em direção à secretária do Marques, o nosso chefe de Secção, que logo se colocava em sentido. E o Trancoso, nessa sua rápida coreografia, nem nos olhava e, claro, nunca lhe passava pela cabeça cumprimentar-nos. O Serra, no final dessas raras aparições do chefe de Repartição, rosnava sempre coisas indizíveis.
Disse que o Trancoso nunca nos cumprimentava? Não é verdade! Fazia-o na véspera de Natal. Eu não tinha a menor ideia do ritual, mas, na manhã do primeiro 24 de dezembro que por ali passei, o Serra advertiu-me: “Hoje vai haver mãozada do Trancoso”.
E assim foi. Quando faltava um minuto para a hora de saída, que nesse dia era generosamente antecipada para as 13 horas, sempre medida num relógio nervoso, colocado numa parede em frente a mim, cujo ponteiro dos minutos me recordo que tinha um sobressalto sessenta vezes por hora, lá emergiu a figura do Trancoso, da eternamente fechada porta do seu gabinete, colocando-se junto à nossa saída. E, prodigalizando-nos um sorriso que sempre tive por um mero esgar, dava-nos então essa “mãozada” anual, como dizia o Serra, acompanhada de um “Boas Festas” ritual - e eram essas únicas duas palavras que dele ouvíamos em 365 dias. No ano seguinte havia mais.
Nostalgia desse tempo? Não brinquem, está bem?
(Dedico esta memória ao meu amigo João Aldeia, a quem sei que ela chegará. Recordo-me dos sorrisos irónicos que ambos trocávamos, naquela sala “dos Títulos”, nesse nosso dia-a-dia de burocratas, que, com o saudoso Murta, tentávamos tornar divertido. E, às vezes, conseguíamos.)