sexta-feira, setembro 14, 2018

Juncker ou uma certa Europa


Este texto foi escrito antes de conhecer o discurso sobre o “estado da União”, anteontem lido por Jean-Claude Juncker no Parlamento Europeu. A menos que uma improvável “bomba” nele tenha surgido, o cenário é bastante previsível: uns dirão que foi um pouco mais do mesmo - apelando às responsabilidades, alertando e elencando riscos, mas sem que daí decorram necessariamente maiores consequências; outros opinarão que, apesar de tudo, ficaram algumas pistas realistas para um futuro sustentado do projeto. E todos dirão que este acabou por ser o testamento político de Juncker, que abandonará a Comissão no próximo ano.

Uma noite de dezembro de 2000, num hotel em Biarritz, Jean-Claude Juncker, acabado de sair de um jantar à porta fechada com os líderes europeus, sentou-se no bar (poupem as graças) numa conversa comigo e com Elmar Brok, figura ainda hoje dominante no seio do Partido Popular Europeu. E ali nos contou, ainda sob a impressão do tom da discussão que acabara de testemunhar, o que nessa ocasião lhe fora dito, em contraponto a uma intervenção sua, por uma destacada figura de um Estado ao qual a História concede quase sempre uma palavra relevante no destino do continente: “se, no futuro, houver uma nova guerra na Europa, o teu país não chegará para acolher todas as sepulturas”. Com isto, a figura em causa queria apenas dizer que o Luxemburgo, tal como todos os restantes países que “contam pouco”, não era mais do que um figurante menor numa peça em que o estrelato estava pré-determinado. Mesmo que a peça acabasse por vir a ser exibida como tragédia. E Junker ficara chocado e eu passei a conhecê-lo melhor.

Sempre tive grande respeito por Jean-Claude Juncker, muito para além das caricaturas de si mesmo que, por vezes, ele ajuda a desenhar. Estive com ele em muitas reuniões, algumas incontáveis, vi-o atuar, de forma coerente e quase sempre do lado certo, em momentos decisivos. Reconheço nele um europeísta, uma bela figura humana e, no que nos toca, um excelente amigo com que Portugal sempre pôde contar. 

Mas Juncker é, em si mesmo, um retrato datado na Europa de hoje. Digo isto sem qualquer nostalgia, mas com alguma pena, se acaso tal for compatível.

Juncker sucedeu a uma singular tríade que, por muitos anos, espelhou bem aquilo que a Europa dos Estados mais poderosos desejava que a Comissão Europeia fosse: Santer, Prodi e Barroso. Quando foi escolhido (o que, para mim, foi uma surpresa), sabia-se que Juncker nunca viria a ser um Delors, porque os tempos já não estavam para aí virados. Mas, apesar de tudo, a sua escolha indiciava a vontade de ensaiar um novo sopro de integracionismo, quiçá menos abrangente, que permitisse à Europa do euro superar algumas fragilidades reveladas. Porém, o Brexit, a falta de vontade para completar a União Bancária, as crises migratórias e dos refugiados, o desafio global titulado por Trump e, acima de tudo, as clivagens internas não ajudaram o tempo europeu de Jean-Claude Juncker. Tenho pena por ele mas, muito mais, por nós.

O que quer Marcelo ? (1)


Todos temos a clara consciência de que hoje se vive um momento singular no tocante à relação do presidente da República com o país. Se a personalidade de Marcelo Rebelo de Sousa já prenunciava que ele poderia vir a ser um presidente atípico, com fatores específicos de natureza conjuntural e o contraste com o seu antecessor a contribuirem para tal, julgo que ninguém previu o cenário que aí está: uma esmagadora maioria de portugueses, num juízo indiscutível de sociologia empírica, vive hoje satisfeita, em maior ou menor grau, com o chefe de Estado que as eleições determinaram. Sendo que essa maioria, visivelmente, é bem superior aos votos que o elegeram, só podemos tirar uma conclusão óbvia: a ação do presidente conquistou muitos daqueles que nele não haviam votado.

Os que apreciam a sua ação dividem-se, no entanto, quanto à sua postura pública. Há os que acham que o presidente se está a expor demasiado, arriscando gerar um cansaço no país (é desses a bela frase “precisamos de férias do Marcelo!”) e os que entendem que “faz ele muito bem em aparecer!”, que acham lindamente a sua quase ubiquidade, os festivais de selfies e os banhos solidários, de água e multidão, nos rios fluviais - num modelo simultaneamente “royaliste” e a roçar o popular.

Entre outros ainda, há um grupo que aqui me interessa. É o dos que acham que Marcelo, com o seu obsessivo comportamento de proximidade, pode estar a tentar alimentar um projeto com laivos quase populistas, com inescapáveis consequências de natureza institucional. Tenho mesmo ouvido a algumas pessoas a ideia, mais sofisticada, de que o presidente está a fazer uma espécie de revisão “subliminar” da Constituição, fixando-se em terrenos tradicionalmente da área exclusiva do executivo, mandando “recados’ para a Assembleia da República que, na realidade, condicionam a atividade legislativa a montante da produção das leis. O facto de não recorrer ao Tribunal Constitucional também reforçaria a evidência dessa deriva. Marcelo estaria assim a ocupar o espaço político muito para além daquilo que o seu papel constitucional prevê. Para os cultores desta filosofia, isso introduziria uma inflexão nos equilibrios constitucionais e poderia mesmo determinar um redesenho do mapa político-partidário.

Será isto verdade? Para a semana continuaremos a conversa.

quinta-feira, setembro 13, 2018

A montra





No sábado, bati com o nariz na porta (férias...) de uma livraria onde, nesse mesmo dia da semana, quase sempre costumo “arruinar-me devagarinho” (a expressão não é minha), como que a “compensar” a barateza (existirá a palavra?) da conta acabada de pagar no local onde nesses dias almoço.

Ao meu lado, a ver uma das montras, estava um cavalheiro mais idoso do que eu, com o nariz desta vez literalmente no vidro, parado, pareceu-me que a olhar os livros, mas não tenho a certeza. Não lhe vi a cara. A senhora, que até um instante antes estivera junto dele, havia entretanto entrado num prédio. O cavalheiro por ali ficou, visivelmente apenas à espera dela, continuando a olhar a montra, estático, com um cuidado de atenção que o que estava nessa mesma montra claramente não merecia. Nem deu por mim, a um metro, nem por ninguém. Achei estranha aquela fixação e mirei-o melhor. Era António Lobo Antunes. 

Não lhe disse nada, porque tive receio que isso pudesse incomodar o seu silêncio. Conheço Lobo Antunes, falámos algumas vezes. Quando eu vivia em Paris, organizei-lhe na embaixada uma homenagem, que incluiu uma sessão de debate com especialistas e jornalistas. Também por lá, almoçámos e jantámos juntos, noutras ocasiões. É um autor altamente apreciado em França. É conhecido por ter um feitio nem sempre fácil ou, como se costuma dizer, tem fama de ser “de luas”. Há poucos anos, já aqui em Lisboa, passámos um bom quarto de hora de conversa a dois, num velório, falando de várias coisas, de França, de dois dos seus irmãos de quem sou amigo, de Melo Antunes, que era um companheiro dele muito querido. Mas, repito, desta vez decidi não o incomodar naquela sua solidão vidrada na montra errada (o conteúdo da outra montra é geralmente melhor) da minha livraria dos sábados. Se soubesse o que sei hoje, tê-lo-ia interpelado.

E o que é que sei hoje que não sabia no sábado? Soube que António Lobo Antunes vai ter a sua obra publicada na Pléiade, a biblioteca editada pela Gallimard, uma verdadeira “montra” em que só entram os grandes génios da literatura. O único português por lá é Fernando Pessoa. Acreditem em mim: a presença de António Lobo Antunes na Pléiade é uma das maiores homenagens internacionais que podiam ser prestadas à literatura portuguesa. Confesso que é uma grande alegria que, como português, acabo de ter.

Parabéns assim a Portugal e, claro, a António Lobo Antunes!


(ps - já sei que alguns comentários a este post vão-se afastar da honra que é ter ALA publicado na Pléiade, acabando por ser sobre se se gosta ou não dele, se Saramago é melhor, coisas assim... É a vida!)

quarta-feira, setembro 12, 2018

A conta!

Sei que ninguém vai acreditar nesta história mas, hoje, vi alguém, depois de um almoço com amigos que tinha convidado para sua casa, pedir um segundo café à empregada e, distraído, dizer “... e a conta, por favor!” Foi uma gargalhada coletiva, a começar pela própria empregada!

terça-feira, setembro 11, 2018

“O que é Nacional é bom!”


”O que é Nacional é bom!” era um jingle que andou pela rádio e televisão, noutros tempos, a propósito já não sei de que produtos da empresa “Nacional”. O trocadilho entre o nome da empresa e os produtos portugueses resultava em pleno.

Ontem, a propósito de uma conversa aqui sobre cafés, gerou-se em alguns comentadores uma onda de carinho nacionalista pelos produtos portugueses. E tendo eu manifestado a minha preferência pelo Nespresso, fui logo vergastado por remoques patrióticos. Tendo passado uma vida a promover no estrangeiro os produtos portugueses, não é este café que me tira um minuto de sono.

Mas tudo isto fez-me lembrar um professor que tive no liceu, lá por Vila Real, o dr. Girão, uma figura que nos obrigava a sublinhar os livros a lápis (coisa que hoje, aliás, passo os dias a fazer). O Girão, contudo, deixemo-nos de eufemismos nostálgicos, era um inenarrável chato! E salazarista empredrenido, num tempo em que, para nós, a política tinha muito pouco significado mas em que aquele pouco subliminar proselitismo tinha o condão de nos irritar.

Um dia, ao Girão deu-lhe para meter-se numa de elogio à “preferência nacional” e começou a clamar contra o hábito consumista de se comprarem produtos estrangeiros. Recordo-me de que deu o exemplo de um sabão da barba (na altura não havia espumas ou gel): “O sabão Santa Clara pode não ser melhor do que os sabões estrangeiros. Mas se todos os portugueses com barba comprassem sabão Santa Clara, ao final de uns anos o sabão seria um sucesso e tornar-se-ia tão bom como os sabões estrangeiros”.

Armado em esperto, decidi levar o que fora dito à letra e retorqui: “Ó Xotôr! Os portugueses com barba não usam sabão para a barba!”. O homem foi aos arames! “Não usam?!” E eu, vivaço, respondi-lhe: “Não, não usam. Como têm barba, não fazem a barba, logo, não usam sabão!” O Girão não achou graça à minha graça. E lá fui eu mandado “para a rua” e, dias depois, chamado ao diretor de ciclo! Em casa, a falta foi vista com sobrolho carregado pelo meu pai. Contei então o episódio. E não querem ver que o meu pai usava sabão Santa Clara?! Riu-se imenso e, como o Girão era salazarista, perdoou-me o atrevimento académico.

Esta é uma história já ”com barbas”. Pergunto-me agora: terá tido sucesso o sabão Santa Clara? Nunca o vi. Eu, hoje, pouco patriótico, uso (fui agora ver) Nívea. Ó diabo! É alemão...

Chile, 11 de setembro



segunda-feira, setembro 10, 2018

Avante, Tuizelo !



Ontem, ao ver na televisão o encerramento da Festa do Avante!, essa magnífica romaria laica dos comunistas portugueses, lembrei-me de que ando há anos para ir conhecer Tuizelo, uma aldeia perto de Vinhais, no distrito de Bragança. Mas o que é que tem Tuizelo a ver com o PCP? De facto, não é nada provável que, em Tuizelo, haja muitos comunistas... Nas eleições autárquicas do ano passado, o PCP teve aí cinco votos!

Pois, mesmo assim, há alguma décadas que Tuizelo é muito importante para o PCP. Foi com origem em Tuizelo, para os leitores que o não saibam, que os comunistas portugueses foram descortinar a música com que utilizam desde os anos 80 nos seus tempos de antena e que abre e fecha os seus comícios: a Carvalhesa. Ou melhor, selecionaram a música através de um estudo antigo, feito por um etnólogo alemão, mais tarde também trabalhado por Giacometti (o etno-musicólogo francês a quem a memória da música tradicional portuguesa muito ficou a dever). 

E a música, que era uma espécie de dança, tornou-se um verdadeiro hino (sem letra) que o PCP adotou. Todos os anos, a Festa do Avante! termina com toda a gente a dançar A Carvalhesa. E, por essa via, pode dizer-se que a aldeia de Tuizelo (na fotografia), sem o saber, entrou para a história dos comunistas portugueses. Por essa curiosidade, um destes dias vou a Tuizelo.

Ouçam aqui - vale a pena! - a bela e transmontana Carvalhesa.

domingo, setembro 09, 2018

Sporting

Não conheço Frederico Varandas, o novo presidente do (meu) Sporting, a não ser pela sua imagem televisiva. A primeira impressão é positiva. Sinto-me bastante confortado por, aparentemente, o clube ter saído da era de javardice paranóica em que tinha caído. Isso representa já uma primeira vitória.

Sei que, para a generalidade dos sócios e adeptos, o importante são os resultados desportivos, em particular no futebol. Para mim isso também é naturalmenteimportante, mas há algumas outras coisas - muito em especial, a decência, que se reflete na qualidade da atitude pública assumida na defesa dos interesses do clube - que sempre prezei, quando estiveram presentes nas lideranças do Sporting. E estiveram muitas vezes. 

Em regra, todos começamos por ser adeptos de um clube (e não de outro) por uma mero acaso (geografia, família, amigos, fascínio pelo sucesso, etc). No meu caso, para além de uma causalidade familiar, habituei-me a ter razões, bem sólidas, para permanecer como adepto do Sporting (e não de outros). Ainda sou do tempo em que, no futebol, o meu clube tinha excelentes resultados, coisa que há muito deixou de ter. Mas, devo confessar, a expetativa de obtenção de títulos nunca esteve no topo das razões da minha ligação afetiva ao clube. Outras existem. E, nos últimos anos, estava a começar perder essas mesmas razões. Gostaria agora de poder mantê-las.

Porém, espero que, com Frederico Varandas, o (meu) Sporting deixe de ser o clube essencialmente “católico” que tem sido: isto é, que não ganhe só “quando deus quiser”...

sábado, setembro 08, 2018

Aviso à navegação

Com especial incidência nas últimas semanas, tem-se verificado, na caixa dos comentários dos posts, alguma “turbulência”, com derivas insultuosas entre os comentadores, que tenho deixado prosseguir, quase por “voyeurisme” sociológico. Como as coisas já passaram alguns limites, aviso que vou ter de intervir com o lápis azul, no futuro, para manter alguma salubridade neste espaço.

Caso diferente é o dos “haters” anónimos que me têm como alvo pessoal, do insulto às ameaças. Neste caso, limito-me a colecionar e a pedir profissionalmente a identificação das moradas dos seus IP’s (registo de origem dos computadores, pela coincidência entre a hora do comentário e a visita ao blogue), verifico a repetição dos “heterónimos” (alguns tendem a ser “criativos”, na esforçada diversidade de estilo dos textos) e, depois de receber os relatórios (não é muito caro, se quiserem experimentar), dou frequente conta de que a passagem pelos corredores do MNE de alguns desses corajosos escribas (tive algumas surpresas, confesso) não teve o efeito de ajudar a melhorar o seu caráter. São uns patuscos, alguns ressabiados, todos invejosos e frustrados. Mas fiquei conhecê-los um pouco melhor! Ah! E, bem entendido, a sua soez “produção” vai para o lixo, claro. Caso diferente são as ameaças físicas (é verdade, surgem por épocas), que têm o destino policial devido. Isto até tem graça! Fica-se a conhecer melhor o mundo.

“Jornal Económico”


Correspondendo a um amável convite do “Jornal Económico”, passarei a escrever nesse semanário uma coluna mensal (infelizmente, não tenho tempo para mais), que se chamará “Antes que me esqueça”. A “estreia” é para a semana.

sexta-feira, setembro 07, 2018

O almoço das quintas



“Não queres responder àquele cronista que há dias te criticou num jornal?”, perguntava-me um amigo, no almoço das quintas, quando eu confessava hesitar quanto ao assunto a abordar nesta crónica. Respondi que não: quem escolhe os meus interlocutores sou eu, não o contrário. Em especial, quando as pessoas estão de evidente má fé, treslendo o que escrevi, como foi o caso. “Talvez valha então a pena falares das trapalhadas do Benfica!”, alvitrou outro. A ideia nem era má, mas o que é que alguém pode dizer sobre o assunto, sem se pensar logo que a opinião está manchada por clubite? A única coisa que sei, de ciência certa, é que vamos ter uma novela para vários anos, com recursos e contradições judiciais. No final, até aposto!, a montanha vai parir um rato ou um bode expiatório. Não, não vou falar de futebóis, muito menos das eleições de amanhã, no meu Sporting. Outro conviva deu então uma nova dica: “E se comentasses as sondagens que saíram?”. Escrever sobre o tombo do Bloco, pelo efeito Robles, ou de como o PS ainda fica longe da maioria absoluta? “E, de caminho, anotavas que agora já não é a água que vai pelo rio abaixo, mas que é o Rio que vai por água abaixo...”, sorriu o meu parceiro do lado, gozando a “trouvaille”. Não, com as eleições ainda longe, deixo isso para os exegetas televisivos. 

O almoço continuava e eu continuava sem tema. Isto de regressar de férias acarreta sempre um certo torpor, porque a adrenalina ainda não atingiu os patamares necessários. E, embora possa parecer o contrário, não sou um “tudólogo”, cuido sempre em só escrever sobre aquilo em que julgo poder acrescentar alguma coisa: “Ora aí está! Podes escrever sobre as eleições brasileiras e explicar o que é que o Lula afinal pretende com a sua tática de recursos”. Como se eu soubesse! A única explicação é que está a levar a vitimização tão longe quanto possível, para que a emotividade nos apoiantes se transfira, no fim, para a candidatura de Haddad. Mas já escrevi isto algures! “E o livro do tipo do Watergate sobre o Trump, com o escândalo do artigo anónimo no “New York Times”?” Não, quero ler o livro antes. Foi então que alguém decretou:  “O que eu te queria ver era a falar sobre o Marcelo, sobre as selfies, sobre os banhos de rio, aquela “Corte na Aldeia”! Mas sobre isso, é o falas! Vocês têm todos um respeitinho reverencial pelo homem”. Não comentei, nem para lhe dizer que me tinha dado em excelente ideia, para a semana. E foi assim que se passou (ou não) o meu almoço das quintas. 

quinta-feira, setembro 06, 2018

“E então o ... ?”

Anda agora por aí muito “whataboutism”. Isto é, mal se fala de uma coisa, há logo quem replique, em jeito compensatório, com outra “Ai é?! E então o...?”. 

Talvez um dia, quando formos “crescidos”, as pessoas se habituem a falar das coisas com base nos seus próprios méritos ou deméritos, sem desculparem ou relativizarem mediocremente com outros exemplos. O facto de agora o fazerem apenas demonstra má consciência e escassez de argumentos.

A ver vamos

O caso de corrupção & delitos correlativos em que o Benfica se vê envolvido pode vir a ser um teste interessante. Desde logo, à independência do poder judicial face ao peso fático e oculto dos lóbis do futebol na sociedade portuguesa, a começar pelos jornais e pelas televisões, onde reina a guerrilha entre as seitas fanáticas dos emblemas. Depois, sobre a consistência efetiva da acusação, num país onde, neste domínio, é vulgar estas coisas da bola ficarem em águas de bacalhau, seja por debilidade da prova, seja porque é sempre tudo muita “fruta” ao início, mas depois a colheita costuma ser fraca e, sempre, tardia, perdida convenientemente no dédalo dos recursos e da conflitualidade interpretativa das instâncias. Finalmente, aposto em como isto servirá também para pôr uma vez mais a nu essa coisa patusca, balcanizada internamente pelo sectarismo clubístico que equilibra as moscambilhas, a que alguns chamam, com alguma graça, “justiça desportiva”.

quarta-feira, setembro 05, 2018

Fotografias

Sei que a arte fotográfica se aprende, se aperfeiçoa. Mas também sei que, para quem não tem uma sensibilidade apurada nesse domínio, a melhoria tem um limite. 

Sempre fotografei pessimamente. Já cheguei, há muito, ao meu "princípio de Peter". E vivo lindamente com ele, continuando a tirar retratos "à minha maneira", porque, para mim, a fotografia é apenas um ajudante da memória, uma espécie de bloco de apontamentos, mesmo quando se trata de guardar o tempo das caras dos outros.

Ao longo da vida. tive muitas máquinas fotográficas, algumas bem razoáveis, o que prova que a culpa nunca foi delas, era apenas minha, de uma endémica falta de jeito. Às vezes, no entanto, por um qualquer bambúrrio, lá me sai uma fotografia "jeitosa", mas essa é a exceção, muito longe de ser a regra.

Quero com isto dizer que, ao usar nas redes sociais fotografias tiradas por mim, e ao compará-las com outras (de profissionais ou bons amadores), dou comigo a pensar que, se calhar, devia ter mais juízo e nunca ilustrar o que escrevo com "produção" própria. 

É o que vou fazer precisamente neste post, em homenagem sincera aos bons cultores dessa arte magnífica, só acessível a alguns eleitos da sorte, da persistência e do trabalho.

terça-feira, setembro 04, 2018

Herman e Rothko


Há dias, diverti-me, por mais de uma hora, a ver e ouvir, no YouTube, uma entrevista, feita já há uns meses, a Herman José, num registo muito solto, na qual o humorista deu conta dos seus gostos, revelou facetas curiosas da sua vida, tudo dito sempre com imensa graça, inteligência e farta cultura. 

Portugal é um país a quem “saiu a sorte grande” ao ter o privilégio de dispor, desde há várias décadas, de uma figura como Herman José. É uma banalidade, mas eu repito-a, dizer-se que a ele se devem alguns dos grandes “retratos” e momentos maiores da história do nosso humor. Pessoalmente, devo-lhe imensas horas de boa disposição e sinto um grande orgulho em tê-lo como compatriota. Para além do que faz em televisão e fez em rádio, Herman brinda-nos hoje, quase diariamente, com fantásticos pequenos vídeos no Instagram, deliciosas “trouvailles” só acessíveis a alguém que é um evidente génio na sua difícil arte.

E é porque Herman José é um homem culto, vivido, com a cabeça aberta às coisas boas do mundo, que conhece muito bem, que fui surpreendido, no meio da entrevista, com a sua ideia de que o reconhecimento de um pintor como Mark Rothko é apenas uma simples “fraude” (não sei se o vocáculo era esse, a ideia sim) inventada por um qualquer galerista que convenceu outros de que se tratava de um grande pintor, daí se gerando uma onda imparável que deu a imensa fama que a obra do artista hoje tem.

Tive pena de ouvir Herman dizer isto. Acho perfeitamente normal que alguém deteste o que Rothko (ou Pollock) pintam. Conheço muita gente que pensa assim. Gostos não se discutem e entendo que Herman possa não apreciar minimamente esse género de pintura. Mas Herman José, precisamente por ser o homem culto e aberto de espírito que é, deve perceber que há outras pessoas - e eu e muitos (mesmo muitos) estamos entre elas - que, não sendo “manobradas” pelos galeristas ou condicionados por movimento artificiais de opinião, consideram Rothko como um dos maiores génios da pintura contemporânea. 

Possuir um Rothko ou um Pollock, ou, domesticamente, alguns fabulosos Hogan ou Pomar, seriam o único alibi que conseguiria encontrar para me arruinar financeiramente.

Artur Portela


Para as novas gerações, o nome de Artur Portela (assina Artur Portela Filho, para não se confundir com o pai, um grande nome do jornalismo português de outros tempos) dirá pouco ou nada. E, no entanto, essa figura consagrada do mundo da publicidade revelou-se uma personalidade muito original na nossa imprensa, devendo-se-lhe também algumas incursões interessantes na literatura e até na história.

Ontem, o “Público”, pela mão de Nuno Ribeiro, fez-lhe uma boa entrevista que revela um Artur Portela que, nos seus 81 anos, está bem atento ao quotidiano político, com os mesmos valores e acutilância a que nos habituou nos anos 70, em especial na sua polémica coluna “A Funda”, publicada no “Jornal do Fundão” e no “República”. E ressalto aqui a dimensão polémica, porque Portela não fugia a ela - e quem é do meu tempo e estava atento a esses meios tem, com certeza, bem presente uma deliciosa e famosa troca de argumentos com Mário Castrim, no “Diário de Lisboa”.

Na entrevista, Portela fala-nos de figuras do nosso atual quotidiano político e também de outras que marcaram os tempos democráticos, sempre com o desassombro e frontalidade que são a sua marca de água. Foi pena a entrevista não ser mais longa, pelo que pressinto que Portela está ainda a dever ao país um bom livro de memórias.

Tive o gosto de conhecer pessoalmente Artur Portela há poucos anos, num almoço organizado por um amigo comum, precisamente com esse objetivo. Ter-lhe-ei dito que, com gosto, tinha lido praticamente todos os seus livros - e não foram tão poucos como isso. Mas julgo que lhe não referi que, então com bastante menos prazer, porque estava à época no outro lado da “barricada”, recordava bem os seus (politicamente ácidos) editoriais no “Jornal Novo”, um órgão de combate político criado por quem se opunha ao PREC, financiado pela CIP, como Nuno Ribeiro lembrou, numa das questões que lhe colocou. Deixo uma fotografia dele, desse tempo.

Na língua portuguesa que Portela usa, de forma imensamente criativa, nos seus textos é clara a influência de Eça - de quem teatralizou “A Capital”, o que motivou um artigo crítico meu, no “Comércio do Funchal” (ou seria no “& etc”?), intitulado “Ora Eça, ó Portela!”, creio que em 1972. Hoje posso confessar que invejava muito a Portela a agilidade da sua escrita, servida por uma cultura rica e diversificada, própria da gente de muito boa qualidade que, por essa altura, andava pelo nosso jornalismo. Ao lê-lo ontem, dei-me conta de que, infelizmente, nos dias de hoje, já por lá não há muita gente assim.

Enfim, descanso!


Acabaram hoje as minhas férias! Mereço, finalmente, algum descanso! 

Terminou, de vez, esta lufa-lufa de andar de-um-lado-para-o-outro (“Cuidado, olha que já estás na reserva do depósito!”), sem rei nem roque (“Não puseste o GPS e depois dá nisto!”), jantares aqui e acolá (“Não reservou? Agora só lá p’rás dez!), longas maratonas de praia (“Ora bolas! Esqueci-me do protetor solar!”), mudanças de hotel (“Como diabo é que abre este chuveiro?”), procura de tabacarias para comprar jornais (“É assim mesmo! Esta semana, o Expresso veio sem a revista...”). 

Pronto! Acabou! Vou finalmente poder dormir na minha almofada! Agora sim, regresso a casa! Agora já posso ser multado pela EMEL, dar voltas a quarteirões para conseguir estacionar, vai chover, vou perder guarda-chuvas, vou constipar-me, vou perder horas em salas de espera de médicos, vou chatear-me com taxistas ou experts nepaleses de tráfico lisboeta contratados pela Uber, vou chegar atrasado a reuniões, vou andar horas nas lojas do aeroporto até encontrar as portas que mudam para fazermos exercício físico. Isto sim, é que é vida!

Um dia, dá-me uma na veneta, perco a pachorra e, pimba!, reformo-me! (“Mas não estás reformado?” “Já nem sei...”). Depois queixem-se!

Bom, e agora vamos a coisas importantes: o Procópio já abriu?

O bispo e as Felicianas


O jornal da diocese, “A Voz de Trás-os-Montes”, estimável folha informativa em que este escriba deu à estampa os seus primeiros artigos (que estão “fora do mercado”, para evitar chantagens), tinha destacado, com grande fotografia de primeira página, a deslocação a Roma do bispo de Vila Real, dom António Valente da Fonseca. Estava-se em meados dos anos 60, período do Vaticano II.

Como administrador apostólico ficou, encarregado da diocese, monsenhor Libânio, uma figura alta que ainda hoje justifica o nome dado a um cadeirão comprido que tenho lá por casa, herdado do meu avô, a que sempre chamamos a "cadeira do padre Libânio", não obstante o próprio, com certeza absoluta, nunca a ter experimentado.

Valente da Fonseca tinha tanto de anafado quanto Libânio tinha de esguio, óculos à Gramsci, andar desengonçado e um ar de intelectual. No que me toca, via-os sempre à distância e nunca falei com qualquer deles.

Nas ociosas noites do verão vila-realense, havia muito pouco que fazer. Por isso, num grupo de amigos, alguém se lembrou de inventar uma chamada telefónica "feita" pelo bispo, desde há semanas em Roma, destinada ao monsenhor Libânio, que então vivia no seminário de Vila Real.

O local do "crime" foi a casa do celebrado fotógrafo da cidade, Mário Silva, "Marius", pela mão do seu filho, António Manuel. O autor material da chamada telefónica foi um primo deste, Dionísio Rodrigues da Silva, o "Nizo", um bom amigo já desaparecido, o elemento mais velho desse pequeno grupo que se juntou para a organização da "partida". Ainda tenho a visão da cena, connosco à volta de uma mesa.

Desconhecedores do que era uma chamada internacional, ao tempo obrigatoriamente feita através de telefonista, inventámos um conjunto de ruídos que supostamente credibilizariam a verosimilhança da comunicação. Ligámos para o número do seminário, pouco depois da hora de jantar. Atendeu-nos uma voz a quem, num italiano de má opereta, demos a indicação de que "don António, di Roma, voglio parlare con il signor don Libânio". As palavras “António”, “Roma” e “Libânio” deveriam ser suficientes para garantir a atenção eficaz do fâmulo. A chamada era entrecruzada por arbitrários silvos e apitos, sons secos e uma profusão de sinais que, no nosso entender, deveriam fazer parte de uma ligação telefónica internacional. A nossa preocupação era perfeitamente escusada: no seminário, o porteiro ou guarda da noite devia saber de italiano e de comunicações internacionais bem menos do que nós...

Após alguns minutos, ouviram-se passos apressados no lagedo de mármore da sala de entrada do seminário, onde se situava então o único aparelho telefónico da casa. Um ofegante dom Libânio surgiu então na linha. 

Do outro lado, "de Roma", o senhor "dom António" interpelou-o, com o ritmo pausado, aquele conhecido tom eclesiástico “de Braga”, abrindo as vogais, esse “template” vocal da hierarquia religiosa lusitana, de que Cerejeira foi o intérprete mais consagrado.

- Olá, Libânio, como vai você? E a diocese?

Extasiado com a oportunidade proporcionada pela maravilha das comunicações, dom Libânio respondeu, com natural nervosismo de atender uma chamada internacional:

- Muito obrigado, senhor bispo. Vai tudo muito bem, graças a Deus. E como passa vossa excelência reverendíssima?

- Estou bem, Libânio, estou bem. Mas diga-me uma coisa, ó Libânio: e como é que vão as nossas Felicianas*?

Dom Libânio presumiu ter ouvido mal, tanto mais que as comunicações, à época, eram más e o lenço que utilizávamos para tentar disfarçar o som, com uma folha de papel no meio para baralhar o tom de voz do Nizo, criava uma distância que afetava a audibilidade das mensagens.

- Como? Não estou a ouvir bem... Como disse, excelência reverendíssima?

- As Felicianas, Libânio, aquelas pequenas da Vila Velha que às vezes chamamos, para nos alegrarem as noites por aí...

O pobre do administrador apostólico deve ter ficado à beira de uma apoplexia. As Felicianas era um plural, embora pouco majestático, para designar umas raparigas, todas da mesma família, que, na cidade, facilitavam alguns prazeres físicos tarifados, e que eram bem conhecidas de toda a gente. Embora não houvesse nota de deslocações de “room service” ao seminário...

- Não consigo ouvir, senhor bispo! Não ouço quase nada! Vou ter de desligar...

E assim fez. Ainda bem! É que nós estávamos já no limite da gargalhada coletiva. Mas tínhamos ganho uma excelente noite.




(* o nome coletivo das raparigas talvez não fosse bem este, mas quem ousar retificá-lo num comentário vê-lo-á eliminado. Não quero intrigas na minha terra natal...)

segunda-feira, setembro 03, 2018

O trono

Ardeu o trono de dom João VI, no incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro. E ardeu todo o resto do museu, um espólio insubstituível sobre a História do Brasil e de quando Portugal andou por lá. 

Descaso, incúria ou seja lá o que for, o que verdadeiramente importa é que esse testemunho do passado já não existe. Agora, vai avançar a discussão sobre as culpas, a qual, como de costume, a muito pouco levará. Os crimes sobre o património indignam e emocionam sempre muito no momento das perdas mas, depois do “rigoroso inquérito” que o tempo amaciará, dão quase sempre em muito pouco. É que as famílias das “vítimas” não estão lá para exigir nada. Por isso, como antes se dizia, siga a marinha!

domingo, setembro 02, 2018

O carro do Guerra



Não sei há quantos anos morreu o Guerra Liberal. Era assim mesmo o nome desse amigo, um pouco mais velho do que todos nós, mas que nos acompanhava, com uma camaradagem excecional, nas noites e madrugadas de Vila Real, nos verões dos anos 60. Era uma figura encantadora, disponível, amigo-do-seu-amigo, como então se dizia.

O Guerra, como o chamávamos, era proprietário de um carro grande, velhíssimo, um Vauxhall preto, de quatro portas, que vulgarmente estava estacionado em frente ao Hotel Tocaio, a dois passos da Pastelaria Gomes. O carro estava sempre aberto e, recordo-me, em épocas de enchente na esplanada da Gomes, convertia-se numa espécie de “sala de estar” dos amigos do Guerra, mesmo sem ele. Grandes conversas lá tive! 

Há duas aventuras (só conto duas, porque outras houve!) passadas com o carro do Guerra - porque o carro andava! - que nunca mais esquecerei. O primeira foi algo perigosa, a segunda foi divertidíssima.

Uma noite, houve uma ideia maluca, logo complementada por uma aposta. Tratava-se de conduzir o carro do Guerra até ao fundo da reta de Mateus, no alto do Bairro dos Prazeres, desligá-lo e deixá-lo deslizar por ali abaixo, praticamente sem “tocar no travão”, tentando que ele chegasse tão longe quanto possível, nesse trajeto, quase sempre a descer, do antigo “circuito”. Íamos quatro lá dentro, com o Guerra a conduzir. A operação era muito arriscada, porque se utilizava toda a estrada, na esperança (felizmente concretizada!) de que não surgisse ninguém em sentido contrário. Largado o carro, passada “na mecha” a curva da Araucária, em direção à garagem do Antoninho do Talho, junto à casa do Granjo, o Vauxhall preto fazia uma perigosa tangente na casa do chefe da Estação, entrava, “com o balanço”, na pequena reta do colégio, descia para a ponte metálica e ia morrer algures no seu termo. A grande questão é se chegava à tasca da Cardoa ou não. Eu apostei que sim... e perdi cinco paus! Inconsciências! 

Da segunda aventura, fui apenas observador, colocado com outros, discretamente à distância, na esquina do Patinhas. O Guerra tinha conseguido negociar com uns ciganos, a troco já não sei de quanto, a cedência de um pequeno burro. Já bem de madrugada, pelas quatro ou cinco da manhã, meteu-se o burro no carro, com a cabeça de fora, do lado do condutor. A operação foi concluída em frente ao Tocaio. Dentro do carro, deitado, com uma mão no volante e um pé no travão, ia um voluntário. O carro foi empurrado, fez uma curva para a direita na esquina no hotel e passou, bastante devagar, em frente à Polícia e à garagem S. Cristóvão. À porta da PSP, numa guarita que por ali havia, estava um cívico de capacete, que deve ter pensado ser uma “miragem” ver deslizar, sem ruído de motor, um carro “conduzido” por um burro... O homem ter-se-á assustado e entrou para dentro da esquadra (nós cocávamos, de longe), enquanto o carro deslizava pela estrada abaixo, desaparecendo no caminho em direção à ponte do Cabril. Passado aí um quarto de hora, o Austin, desta vez bem a trabalhar, subiu o caminho inverso, conduzido pelo Guerra (que entretanto tinha ido pela Marechal Teixeira Rebelo ter com o carro às Florinhas da Neve, onde o cigano recebeu o burro de volta). Na esquina da PSP, estava o guarda e um colega. Mandaram parar a viatura. O primeiro guarda inquiriu: “Este carro não passou há bocadinho aqui, com um burro?” O Guerra fez-se de ofendido: “Ó senhor guarda! Desculpe lá! Eu não lhe admito que me chame burro! Eu passei para baixo, há pouco, em ponto morto, mas não sou nenhum burro!”. Criou-se uma perplexidade entre os polícias, com o primeiro, desesperado, a teimar: “Mas eu vi um burro neste carro! Lá isso é que vi!”. O Guerra insistia, dizia que, se continuasse a ser insultado, iria falar com o comandante no dia seguinte e coisas assim. E, com a cumplicidade implícita do segundo guarda, que já não “comprava” a história do seu colega, lá conseguiu seguir. Disse-nos, depois, que foi logo tomar banho: o carro ficou a cheirar a burro por semanas...

(Quem não é de Vila Real daquele tempo terá de desculpar o peso toponímico do texto)

sábado, setembro 01, 2018

Ary e o aborto


Há pouco, vi colocado um “like” na minha página de Facebook por alguém de apelido Torga. E embora todos devamos saber que Miguel Torga era um pseudónimo e que o escritor e médico, na realidade, se chamava Adolfo Correia da Rocha, posso imaginar a quantidade de vezes que a essa pessoa alguém deve ter já perguntado: “é parente do Miguel Torga?”.

E como isto é como as cerejas, lembrei-me de um episódio.

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, tive um colega, bastante mais velho, chamado Carlos Ary dos Santos. Foi chefe do Protocolo e embaixador em vários postos. Era uma figura clássica, um homem muito educado, de excelente trato, com quem sempre tive uma magnífica relação, pessoal e profissional. 

Sendo primo do famoso poeta, letrista e declamador José Carlos Ary dos Santos, constava, como mais tarde vim a saber, que não lhe agradava excessivamente que as pessoas lhe lembrassem esse parentesco - quiçá por razões políticas, quiçá por outras.

Um dia dos anos 80, fui em missão de trabalho ao Luxemburgo, onde Ary dos Santos era embaixador, tendo ele oferecido um jantar à delegação. Depois da refeição, à conversa, perguntei-lhe, casualmente: “O senhor embaixador é com certeza parente do ...”. 

Ainda a frase não estava concluída e eu já via a cara do embaixador formar um esgar estranho, misto de desagrado e maçada. “Lá vem o meu primo à conversa”, devia estar ele a pensar. Eu desconhecia então que ele não gostava da associação ao primo, porém pressenti-o naquele preciso instante.

Acontece que a minha pergunta não era sobre o seu primo e poeta José Carlos. E concluí a frase: “... parente do jurista Ary dos Santos, de quem tenho uma obra publicada sobre o aborto”.

Imagino que, entre os circunstantes, alguém devesse ter-se interrogado por que luas eu me tinha interessado em adquirir uma obra jurídica do pai do embaixador, logo sobre um tema tão bizarro como o aborto. Mas nada esclareci, confesso, por embaraço. Vou fazê-lo agora.

Fora uns bons anos antes, na década de 70, na feira do livro de Lisboa, na noite do último dia, antes do fecho definitivo. Eu procurava, nos stands de livros usados, algumas pechinchas, nessa altura vendidas ao desbarato, nas últimas horas da feira. Já ia carregado de sacos quando vi, no topo de uma das bancadas, longe para lhe poder chegar com a mão, um livro de Ary dos Santos, com o título “O crime de aborto”. Por baixo, trazia a menção “advogado”. Acaso seria o poeta advogado? Eu sabia lá! A edição parecia antiga, o preço eram, creio, 15 tostões. Obra “de juventude”? Nunca tinha ouvido falar. Era um título forte. Seria poesia? Seria um manifesto de polémica? Pelo sim pelo não, disse ao livreiro, apontando: ”ponha esse aí também!”. O volume veio assim na molhada que levava dessa bancada dos “quinze tostões”, num saco. Só chegado a casa é que vi o “barrete” que enfiara. O livro era mesmo uma tese ultra-conservadora sobre o aborto, de Alfredo Ary dos Santos. De 1935...

Voltemos à sala do Luxemburgo. O sorriso aliviado de Carlos Ary dos Santos, ao ouvir o termo da minha pergunta, acompanhou uma detalhada explicação de que se tratava, de facto, do seu pai, de cuja carreira e obra nos falou, com muito orgulho. 

Carlos Ary dos Santos continuou a tratar-me lindamente, todas as vezes que nos voltámos a cruzar, no futuro. Se calhar, desde essa data, até um pouco melhor do que antes...

sexta-feira, agosto 31, 2018

A diversidade europeia

A diversidade tem sido, historicamente, a grande riqueza da Europa. Nenhum espaço geográfico desta dimensão apresentou, até hoje, uma tão grande variedade de expressões culturais, linguísticas e institucionais como o continente europeu. Daí que mesmo os mais ardentes defensores da unidade política da Europa se tivessem resignado, desde o primeiro momento, à necessidade de fazer conviver essas expressões distintas, fruto de uma História que, tendo uma raiz comum, têm também ideossincrasias que será sempre utópico tentar fundir. 

É um pouco por essa razão que muitos europeístas, com um sentido realista das coisas, foram dizendo que nunca teríamos uns “Estados Unidos da Europa”, porque a realidade objetiva do continente impede que por aqui se crie uma espécie de grande país. Jacques Delors, que junta ao sonho um são pragmatismo, disse um dia que as instituições europeias eram para ele um OPNI, um “objeto político não identificado”. Com isso, queria significar que essa Europa tinha de assumir um contorno institucional diferente dos modelos tradicionais, assemelhando-se-lhe na matriz do equilíbrio de poder que vinham da lógica de Montesquieu e que, em princípio, todos aceitavam, mas, ao mesmo tempo, preservando a necessidade de ser compatível com as expressões de soberania nacional que permaneciam a nível dos Estados membros. Isso não significava, antes pelo contrário, que a Europa comunitária não devesse caminhar no sentido de identificar e tratar, em comum, aquilo que lhe era comum. O processo (e não o projeto) de integração europeia é precisamente isso mesmo: criar mecanismos que permitam, com a economia que só a escala dá, gerir interesses oriundos de entidades nacionais muito diversas. 

A Europa comunitária caminhou nesse sentido. Federada pelo trauma da guerra, depois pela ameaça soviética, gizou lógicas conjuntas para o comércio, passando para além do livre-cambismo e estabelecendo uma fronteira comercial comum. Depois, desenhou e aperfeiçoou o mercado interno nesse espaço, a libertação das peias nacionais que impediam a livre circulação - desde logo das mercadorias, depois dos capitais, serviços e, finalmente, das pessoas. Conscientes dos custos da “não-Europa”, os então Estados membros, com maior ou menor dificuldade, desmantelaram defesas obsoletas, na garantia de um ganho maior. Foi um processo nunca totalmente concluído, como quem conhece os assuntos europeus muito bem sabe. E sabe porquê.

Com o fim da União Soviética, a Europa sonhou somar ao “gigante económico”, que já era, algo que fosse diferente do “anão político” que continuava a ser. O continente, com a nova Rússia em baixa e a China então ainda distante da grelha de partida, olhava para o outro lado do Atlântico, para o “amigo americano”, que até aí fora o seu aliado (e, vá lá!, tutela) estratégico, como um competidor sério. Mas, ainda assim, parceiro nos valores, desde logo do multilateralismo e das liberdades. Mas a Europa começava, sem o dizer, a dar razão a Jean-Jacques Servan-Schreiber, que, faz agora meio século, escreveu o premonitório “Desafio Americano”. Guterres, com a Estratégia de Lisboa, procurou potenciar esse esforço, pretendidamente comum, de solidificação do papel europeu na nova economia. Mas, já aí, a diversidade de que falei no início do texto impôs-se e arruinou a iniciativa. Depois, chegou o grande alargamento.

Agora, o mundo mudou. A diversidade europeia, que começou em Schengen e no euro, revelou-se escandalosa na crise financeira. E nos refugiados, nos migrantes, no desafio do Brexit. Trump faz agora o resto.

A diversidade da (e na) Europa, que é a sua maior “graça” e é algo de permanentemente inevitável, configura-se hoje como a grande dificuldade à afirmação da expressão política da União Europeia. Há dois dias, quando olhava o encontro ítalo-húngaro, com propostas tão contrastantes com aquilo que era o discurso europeu “mainstream” de há poucos anos, quando via as imagens das agressões xenófobas em Chemnitz, quando constatava o fosso que permanece no Brexit, dei comigo a interrogar-me como vai ser possível sairmos disto. Mas terá de haver uma saída: a História não tem becos.

As tarefas de Macron


Emmanuel Macron surgiu em França como uma figura política de conjuntura. Se François Fillon não tivesse empregado ficticiamente a sua própria mulher, estaria hoje a habitar Eliseu. Com ela por lá. Macron acabou por ser o candidato anti-Le Pen. Importantes setores da direita e da esquerda votaram nele apenas para afastar, uma vez mais, o fantasma da extrema-direita.

Macron provou, mas só depois, ser mais e melhor do que isso. Revelou ter um pensamento estruturado sobre a Europa, ideias arrumadas sobre o que é necessário fazer para apoiar o euro, uma leitura estratégica da ambição que a Europa deve ter, neste tempo conturbado em que Trump dá as cartas, baralha o jogo e nem precisa de fazer bluff para condicionar o mundo. Macron pode vir a não conseguir levar a sua avante, por oposição alemã, mas mostrou já estar à altura das responsabilidades de uma potência que, após o Brexit, assumirá necessariamente um papel de singular destaque na Europa.

No plano interno, Macron começou por afirmar não ser “nem de esquerda nem de direita”, o que, como se sabe, é sempre um auto-confissão conservadora. E, uma vez mais, isso ficou provado. A política social do novo presidente, sem surpresas, seguiu uma agenda “reformista” e “modernizadora”, com tudo o que isso quer dizer no jargão do liberalismo económico. E, claro, pagou um preço nas ruas. E foi também nas ruas que outros problemas iriam surgir, com um seu colaborador muito próximo, disfarçado de polícia, a ser apanhado a reprimir manifestantes, criando um escândalo reputacional muito sério ao presidente. 

Na composição do seu governo, Macron havia conseguido incluir, como ministro de Estado, Nicolas Hulot, uma espécie de “papa” francês do Ambiente, que havia resistido a convites anteriores de Sarkozy e de Hollande. Foi um fator importante de credibilidade para o novo executivo. Macron disse então querer colocar as questões do clima e da transição energética como sua prioridade central. E tem-no repetido. Há dois dias, Hulot bateu com a porta, com estrondo, alegando não conseguir impor as suas políticas. 

Conseguirá Macron virar o jogo, retomar a iniciativa, recuperar da clamorosa perda de popularidade que hoje o atinge? Com o Brexit no horizonte dos problemas, com Merkel acossada, com a Itália sob uma agenda radical, uma Espanha em equilíbrio precário, quem terá força para garantir sucesso à reforma europeia? Para um país como o nosso, fortemente empenhado na agenda da Europa, a fragilidade de Macron não é uma boa notícia.

Tocaio

A “Sábado” traz ontem um artigo sobre o antigo Hotel Tocaio, em Vila Real, assinado por Maria Espírito Santo. 

Como o texto bem destaca, o Tocaio foi, por muitos anos, o centro cosmopolita de uma cidade onde só raramente aportavam figuras de destaque, as quais, naturalmente, era por ali que se alojavam. O artigo traz, nesse particular, algumas histórias curiosas. A cidade fazia alguma “cerimónia” com o Tocaio, com exceção, a partir de certa altura, do bar do hotel, que passou a ser frequentado como espaço social mais aberto.

O Tocaio, contudo, havia deixado de funcionar já há décadas, mantendo-se como uma triste ruina, no centro da mais emblemática avenida da cidade. Vai agora ser transformado numa clínica privada, mantendo a traça da sua última versão arquitetónica. Do mal o menos! Numa metáfora que se liga à sua futura utilização, pode dizer-se que é sempre preferível uma “cicatriz”, mais ou menos bonita, à “ferida” que Vila Real ali teve aberta por muitos anos. E ganha-se um equipamento de saúde, o que não é despiciendo.

Sou testemunha pessoal de que, desde o início do seu mandato, o atual presidente da Câmara, Rui Santos, se empenhou fortemente na procura de uma solução para uma reutilização do espaço do antigo Tocaio. Com o entendimento encontrado com a família Serôdio, proprietária do edifício, a cidade a ele muito fica a dever a descoberta da solução que foi possível para o problema. 

quinta-feira, agosto 30, 2018

Toca da Raposa




Terá sido inaugurado em junho de 1960. Para Vila Real, este espaço, que originalmente com tinha um balcão corrido do lado direito, de bancos altos, e, ao fundo, uma pequena sala de refeições, representou uma imensa novidade. Era um “snack-bar”, algo que, na realidade, correspondia a um restaurante - e esse era um tempo em que, na cidade, não havia nenhum! (O restaurante que se lhe seguiu foi a “Churrasqueira”, em frente à Pastelaria Pompeia. O saudoso e justamente afamado “Espadeiro” só seria inaugurado em 1969).

Por aquele tempo, em Vila Real, só havia pensões - Excelsior, Mondego, Coutinho, Areias e poucas outras - e “casas de pasto”, neste caso inúmeras, quase sempre com portas de entrada “à Texas”, balcão com pipos por detrás, vinho ao copo e petiscos. Lembro (de memória rápida e muito, mesmo muitíssimo, longe de pretender exaustiva), o Alemão, a Cardoa, o Barracão, o Chaxoila, o 22, a Pépia, o Carrico, etc. Ah! E o Alcino, no largo Camões, em frente ao tribunal, de que deixo uma história (muito pessoal) ligada à Toca da Raposa.

Um dia, o Zé Luis Carneiro (hoje médico nos EUA) e eu, aí nos nossos 13 ou 14 anos, lembrámo-nos de telefonar de minha casa para o Alcino, em nome do dono da Toca da Raposa (que a cidade sempre conheceu como o “António da Toca da Raposa”), pedindo para lhe mandar, com urgência, uma grade de vinho tinto. Não sei qual de nós foi a voz do “António”, embora desconfie. Ao telefone, o “António” explicou então ao Alcino que tinha a casa cheia de gente chegada “do Porto” e que lhe tinha “falhado” o vinho. 

Minutos depois, pela Avenida Carvalho Araújo abaixo (a tasca do Alcino e a Toca da Raposa ficavam exatamente nos extremos opostos, vivendo eu também por ali) avançaram dois empregados do Alcino, carregando a grade de vinho “pedida”. Nós, entretanto, sentámo-nos a beber qualquer coisa no balcão da Toca da Raposa. 

A certo passo, da porta, ouvimos: “Ó senhor António, está aqui o vinho!”. Intrigado, o António saiu de lá de dentro e interpelou os rapazes: “Vinho?! Que vinho? Não pedi vinho nenhum!”. Eles lá explicaram que eram ordens do senhor Alcino, uma ”encomenda do senhor António”. Este decidiu tirar tudo a limpo e, à nossa frente, passou a desenrolar-se então uma conversa telefónica, crescentemente pouco serena, entre o António e o Alcino. Eu nem tinha coragem de olhar para o Zé Luis, com a vontade de rir, perante a ira do António com o Alcino, seguramente confrontado com a teimosia deste, que devia estar a insistir em ter dele recebido o pedido do vinho. Pouco antes da chamada ser desligada, ainda ouvimos o António berrar, no limite da fúria, que o Alcino devia meter o vinho dele num local físico que os limites de linguagem deste espaço me não permitem nomear. E lá vimos os rapazes, igualmente furiosos, regressar carregados com aquele que (não) terá sido o último vinho encomendado pela Toca da Raposa à tasca do Alcino.

Era assim, essa Vila Real dos anos 60, tempo de “partidas” simples que, com toda a certeza, tinham uma graça diretamente proporcional ao desagrado quem as sofria. Mas tudo já “prescreveu”, razão por que posso agora relatar isto, impune, escrevendo o que leram na esplanada da Toca da Raposa, ontem, num belo fim de tarde de verão. Mas não pedi vinho...

quarta-feira, agosto 29, 2018

À boleia na Guerra Fria



Há dois dias, falei por aqui de boleias. De quando isso era corrente e do modo como essa prática tem vindo a ser afetada pelo correr dos tempos.

Hoje deixo uma memória de uma dessas boleias que “apanhei”. Já não me recordo bem qual a cidade do sul da Alemanha que, naquele dia de século passado, eu pretendia alcançar. Recordo-me que, a certo passo, parou um automóvel, conduzido por um cavalheiro idoso. Num inglês algo macarrónico mas suficiente, confirmou o meu destino e convidou-me a entrar no carro.

Nesse instante, dei-me conta que era uma pessoa que não utilizava os pedais da viatura, devido a uma acentuada deficiência física. Junto ao volante, tinha manípulos para o acelerador e o travão. Terá sido porventura o olhar menos discreto que deitei para tão pouco usuais instrumentos que levou o meu disponível anfitrião a explicar que havia sido ferido na Segunda Guerra, na frente leste. "Foram os russos que me fizeram isto", disse, com uma voz cortante, para logo acrescentar: "E foram também os russos, durante a invasão do meu país, que mataram a minha mulher". 

Não me recordo da minha reação, porque havia muito pouco que eu pudesse dizer, perante a tragédia que afetara, de forma tão brutal, a vida aquele homem. O tempo que vivíamos era de plena Guerra Fria, havia ainda duas Alemanhas, com o Muro bem no seu lugar, os soviéticos e a sua influência estavam por muito perto, apenas a algumas dezenas ou centenas de quilómetros.

O meu condutor sentiu-se estimulado a continuar a falar contra os russos, contra o comunismo, contra o executivo alemão da "grande coligação", entre os cristão-democratas da CDU e os social-democratas do SPD, que então governava em Bona (como hoje governa em Berlim), em particular contra o então MNE Willy Brandt, que ele achava "um traidor", um esquerdista "vendido aos vermelhos". Ora eu, à época, até considerava Brandt um excessivo moderado, e a expressão "social-democrata", no nosso jargão político-radical de então, tinha uma sonoridade quase insultuosa. Por uma proverbial prudência, mantive-me calado, evitando qualquer comentário que pudesse aumentar a quase ira que jorrava do discurso prolixo e incessante do meu interlocutor.

"Mas isto vai mudar, você vai ver! Aqui na Alemanha, estamos a organizar um novo partido, o NPD, e vamos dar a volta a isto. Um destes dias, vamos acabar com esses vermelhos e vamos criar um regime novo. A Alemanha é um grande país. Temos de resgatar a nossa memória e deixar de ter complexos quanto ao regime que tivemos durante a guerra, que só foi derrotado pela aliança entre as democracias corruptas do ocidente e os bandidos comunistas. Vou hoje para uma reunião do NPD onde, com gente que combateu na Wehrmacht, mas também já com muitos jovens patriotas, estamos a preparar o futuro. Os Brandts e estes democratas traidores que nos governam vão ter a devida lição".

Importa lembrar, chegado a este ponto, que o NPD foi um partido neonazi criado em 1964, que nunca conseguiu fazer-se eleger para o parlamento federal, mas que chegou a estar representado em assembleias estaduais. A sua influência foi sempre muito diminuta na política alemã e alguma radicalização da conservadora ala bávara dos cristão-democratas, a CSU, de Franz-Josef Strauss, terá contribuído para esse inêxito. Nos dias de hoje, o NPD já não existe, mas há agora a AfD, a Alternativa para a Alemanha, um novo modelo de extrema-direita que começa a ter um preocupante sucesso eleitoral.

Mas voltemos à viagem. Ela estava a ser-me muito incómoda. Ia-me enterrando cada vez mais no banco do automóvel, desejoso que aquilo acabasse rapidamente, perturbado por aquele insólito encontro com uma Alemanha que apenas pelos jornais sabia que existia. Mas, ao mesmo tempo, olhando para o drama pessoal daquele homem, até era levado a entender que ele pudesse pensar da maneira que o fazia. Num certo momento, num cruzamento, tive uma inspiração: disse-lhe que, afinal, tinha mudado de ideias e que ficaria por ali, mudando os meus planos de percurso. Parou, eu retirei a mochila do banco de trás, agradeci a amabilidade da boleia e, quando me preparava para fechar a porta, ouvi-o perguntar "Você disse que era português?" Confirmei, para logo o ouvir de volta: "Que sorte que você tem de viver num país que tem à frente o Salazar. Aquilo é que é um homem!".

Não tenho a certeza, mas, baralhado como eu estava e desejoso de me ver livre do neonazi que, no fundo, tão amável tinha sido para comigo, confesso que não estou nada seguro de não ter dito que sim, que estávamos “felizes” com o paroquial ditador de Santa Comba que nos tinha saído em rifa, o qual, no mundo sinistro dos seus comparsas europeus, até passava por moderado.

terça-feira, agosto 28, 2018

Entrevista

Aqui fica o link para a entrevista que dei ao “Notícias ao Minuto”

A boleia



Hesitei por um instante, mas nem sequer abrandei. O casal que, ao final da tarde de ontem pedia boleia para Bragança, na A4, à saída da área de serviço de Águas Santas, no Porto, olhou para mim, a conduzir sozinho, com uma visível esperança. Mas em vão. Não parei.

Há mais de 50 anos, em dois verões, atravessei a Europa, pedindo boleia. Da primeira vez, parti sozinho, da Rotunda do Relógio, em Lisboa, e, semanas depois, cheguei quase à fronteira sueca com a Noruega. Andei assim, à boleia, nesses anos, muitos milhares de quilómetros, dormindo em “pousadas de juventude” e em alguns outros pousos noturnos menos curiais. Às vezes, fazia percursos com ocasionais companhias, conhecimentos de circunstância. Na maioria dos casos andava sozinho. Ser filho único ajuda muito a gerir (e a saber apreciar) o estar só.

Há meses, encontrei lá por casa um velho bloco de folhas brancas, de argolas. Era desse tempo. Usava-o para escrever, com um marcador negro, as cidades para onde pretendia ir. Mostrava-o aos automobilistas que passavam. Para envolver esse bloco - imaginem! - eu tinha mesmo uma capa plástica, creio que para os dias de chuva! Era de uma organização meticulosa, dos medicamentos à higiene e às roupas, que levava na mochila. Tenho histórias deliciosas (outras mais banais) desses tempos, desses muitos dias que bem me ajudaram a olhar (e a desejar conhecer melhor) o mundo exterior, face ao Portugal muito fechado em que vivia.

Por que é que não dei boleia ao casal que ontem queria ir para Bragança? Por que não parei, precisamente há uma semana, ao ver um outro casal, à saída de Viana do Castelo (ela tinha um sorriso lindíssimo!), que mostrava um letreiro “Porto”? Por que é que, há décadas, nunca dou boleias? 

Não sei bem, ou melhor, sei. Porque, embora sem a menor razão, fui acumulando uma desconfiança, um receio do desconhecido, um comodismo legitimado pelo alibi do risco potencial de abrir a porta do meu carro a estranhos. Tenho a sensação de que, na maioria dos casos, até acharia graça à conversa com esses companheiros eventuais de viagem, quase sempre estrangeiros. Aprende-se sempre alguma coisa com quem é diferente de nós. Mas a verdade é que não arrisco. Há um leitor do “Correio da Manhã” dentro de mim, um prenúncio de que algo pode correr mal, de que essas pessoas podem ser algo mais do que inocentes passageiros da sua liberdade. 

Confesso que sinto uma raiva imensa por, agora, pensar desta forma. E essa raiva é ainda maior, e é quase uma vergonha, quando me recordo das largas dezenas de pessoas que, pelas estradas da Europa, me acolheram generosamente nos seus carros, algumas que insistiram em pagar-me um copo, outras que partilharam farnéis, outras ainda que me ciceronearam com orgulho pelas suas terras. Algumas com quem embarquei em histórias que não vêm ao caso. Caramba! Eu andava pelos 20 anos! Cruzei-me então com gente bem agradável. Devo-lhes muito.

“Isso foi há mais de 50 anos! O mundo mudou!”. Ouço essa voz cá dentro e obedeço-lhe, numa cobardia que, infelizmente, assumo.

segunda-feira, agosto 27, 2018

Vera Franco Nogueira



Li que morreu Vera Franco Nogueira, mulher do embaixador Alberto Franco Nogueira - diplomata, ministro dos Negócios Estrangeiros e biógrafo de Salazar.

Há um episódio, de dimensão político-diplomática, envolvendo Vera Franco Nogueira, que se contava nos corredores das Necessidades. Nunca pude confirmar se era verdadeiro, pelo que a relato aqui com todas as reticências.

Um dia, na sua maratona pelo mundo para ganhar apoios para a política colonial do Estado Novo, Franco Nogueira, acompanhado da sua mulher, ter-se-á deslocado à África do Sul. 

O regime do “apartheid” vivia os seus anos mais radicais, com o privilégio aos brancos a prevalecer em todos os setores da sociedade. A ideia que todos temos é a de que essa prática discriminatória era feita contra os negros. Mas esquecemo-nos de que outras raças eram também vítimas desse preconceito.

Chegado o casal ministerial ao hotel onde iria ficar, terá havido um incidente. O hotel era “whites only” e não terão querido deixar alojar Vera Franco Nogueira, por ser asiática. Não sei como é que o incidente, a ser verdadeiro, terá sido superado. Alguém ouviu falar desta (repito: verdadeira ou falsa) história?

domingo, agosto 26, 2018

John McCain


A morte do senador republicano, John McCain, convoca a memória de um outro Partido Republicano americano, o qual, nos tempos que correm, vive a reboque de uma agenda política que afeta a dignidade da sua história e contribui para uma tensão, a nível interno e internacional, nunca antes vista na história política daquele país. 

John McCain representa, de certa forma, o conservadorismo são e patriótico que também ajudou a construir o que de melhor a América conseguiu projetar pelo mundo. Creio não me equivocar se disser que a melhor homenagem que McCain gostaria que a América lhe prestasse era ver-se livre de Donald Trump.

sábado, agosto 25, 2018

Prémio da montanha


Ontem, para um belo almoço no “Las Misas”, em Puebla de Sanabria, tivemos de grimpar a inclinada Calle Costanilla até ao topo. Com os bofes de fora, como se estivesse a sprintar na Senhora da Graça, fui fazendo uma gestão de futuros por objetivos, para atenuar o esforço da difícil encosta. Assim, como “prémio da montanha”, esperava poder vir a ter os famosos “boletus” da casa (depois, foi difícil desempatar, “na linha da meta”, entre os “al ajillo” e os “con foie”). E, lembrando que a “Vuelta” começava hoje, alvitrei que aquela subida era digna de Federico Bahamontes, o grande trepador do ciclismo espanhol, vencedor do “Tour de France”, em 59. No topo da Costanilla, à chegada à Plaza Mayor, final da “etapa”, já à entrada para as mesas das irmãs “merujeras” (nome das habitantes de Puebla) donas do restaurante, onde nos esperavam iguarias anunciadas desde Bragança, olhei para o lado e lá estava, numa placa: “Bahamontes, abogado”. Eu sabia...

Será inveja?


Acho bizarro - mas nada surpreendente, confesso - o barulho que aí vai em torno da “transferência” televisiva de Cristina Ferreira. Não sendo um espetador dos seus programas, quando por eles me acontece passar reconheço nela uma eficaz profissional do entretimento, numa mistura que combina simpatia, humor e vivacidade. 

Pelos vistos, as audiências gostam bastante dos programas de Cristina Ferreira. Os anunciantes, ao darem-se conta disto, preferem, naturalmente, divulgar os seus produtos ou serviços nas horas em que ela está no ar. E, por essa razão, estão dispostos a concentrar a sua publicidade no canal que emite os seus programas, o qual, por sua vez, contrata a apresentadora pelo valor que ela pede, correspondente aos lucros que com ela obtém. Tudo muito simples, parece-me.

É muito dinheiro? É pouco? É o valor do mercado e, não saindo esse dinheiro do meu bolso, só me resta felicitar Cristina Ferreira (com quem nunca falei) pela “procura” que os seus “produtos” profissionais têm e, muito sinceramente, esperar que o que lhe pagam a ajude a ser feliz. Sempre aprendi que é isso que devemos desejar aos outros. O contrário tem um nome: inveja.

O Chiado a arder


A notícia caiu de chofre: alguém, de Lisboa, pelo telefone, informou que o Chiado estava a arder. Houve uma reação coletiva de choque, no seio da delegação oficial que eu integrava. Estávamos numa visita de trabalho a Oslo, na Noruega, naquele dia 25 de agosto de 1988. 

Nesse tempo, não havia telemóveis, a única televisão portuguesa não era captável fora do país, nenhum de nós tinha, como era óbvio, um aparelho de rádio de ondas curtas. Os pormenores disponíveis eram, assim, muito escassos. Falava-se da possibilidade do incêndio poder atingir o largo do Carmo e mesmo a Bénard e a Brasileira, levando o Grémio e a Bertrand. Telefonou-se de volta para Lisboa, mas as informações continuavam muito incertas. A ideia de que o Chiado - todo o Chiado! - corria o risco de desaparecer fez-me uma estranha impressão, transmitiu-me uma rara sensação de perda irrecuperável.

Não sou lisboeta. A minha memória do Chiado é quase toda adulta, da cidade para onde fui viver em 1968. De criança e do Chiado, lembro-me apenas da excitação de andar nas escadas rolantes do Grandela, nos anos 50. Para um miúdo ido de Vila Real, onde o único elevador da cidade (do edifício da Gomes) nunca até então funcionara, aquelas ruidosas engrenagens eram o "máximo" da modernidade. No imaginário, as cenas do "Pai Tirano" fizeram o resto. E claro que viria a fixar a memória queiroziana da montra da Férin, onde o Artur Corvelo ia ver se os "Esmaltes e jóias" se vendiam. 

Daquilo que depois viemos a saber que se perdeu, eu apenas era visitante, com alguma regularidade, da Valentim de Carvalho. Fora também cliente episódico do José Alexandre, mas (ironias do destino...) não tenho ideia de alguma vez ter entrado no Jerónimo Martins nem, muito provavelmente, no Martins e Costa. A Ferrari também não fazia parte dos meus percursos, nos anos em que trabalhei pelo Calhariz e em que o Chiado entrava no meu quotidiano. E, de certeza segura, nunca fui cliente da Perfumaria da Moda nem da Casa Batalha, que haviam de ser vítimas irrecuperáveis da tragédia.

Tenho a imagem muito nítida da rara angústia que me atravessou nessas horas, ao pressentir, na desaparição do Chiado, a amputação de uma parte do meu próprio património pessoal de memória. Hoje, em perspetiva, acho mesmo um tanto exagerada a reação emocional que então me atravessou. Quem é de Vila Real compreenderá melhor se eu disser que foi como se me tivessem dito que toda a rua Direita estava a arder. 

Regressado a Lisboa, no dia seguinte, fui, de imediato, ver os estragos. Depois, com o tempo, tudo se tornou mais natural. Passados os anos, como toda a gente, convivi e desesperei com as “engrácicas” obras. À medida que elas se concluíam, fui-me habituando ao "novo" Chiado, embora o resultado final esteja muito longe de ser do meu agrado. Mas isso é uma outra história. 

O que agora me interessa deixar expresso é que a notícia do incêndio do Chiado, em 25 de agosto 1988, faz hoje precisamente 30 anos, passou a ser ser uma das mais emoções fortes de toda a minha vida.

sexta-feira, agosto 24, 2018

O campo de Santana


Está provado que a vida política inocula, em muitos que a experimentaram, uma poderosa e persistente adrenalina. Para quem já esteve sob as gambiarras do sucesso, herói das palmas de plateias ululantes, deve ser difícil viver o silêncio do dia seguinte. Um ministro francês disse, um vez, que é complicado ser-se governante e, horas depois, ser condenado a ir passear o cão. Para quem tiver cão, claro. 

Será talvez esse tropismo de ambição que torna tão frequentes as tentativas de “remake”, de regresso a tempos em que se foi incompletamente feliz na política. Se personalidades bem realizadas foram tentadas a esse retorno, pode imaginar-se o que passará pela cabeça de figuras que entendem que o destino não foi justo para com elas, condenando-as a ficar na soleira da História. 

Pedro Santana Lopes é uma figura curiosa na constelação das estrelas de mediana grandeza da nossa vida política. Foi discípulo de Sá Carneiro, mas se se perguntar a alguém o que terá ele herdado do fugaz primeiro-ministro, a resposta pouco terá de concreto. Da sua vida como político executivo, sobra uma passagem pouco destacada como responsável pela Cultura, num governo em que o tema era um fogacho não essencial. Autarca, espelhou o social lisboeta na Figueira da Foz (como o poderia ter feito em Fornos de Algodres ou na Calheta). Na Câmara de Lisboa conseguiu alguma relevância, logo prejudicada pela sua intravável inconstância. Foi um deputado europeu sem história e, como mais notória, apenas ficou a sua passagem pela Misericórdia de Lisboa, onde cultivou a imagem senatorial, ajudada pelo pausado comentário televisivo. Presidiu ao Sporting e debateu penaltis e foras-de-jogo nos rentáveis debates televisivos. Ah! e, já me ia esquecendo, foi primeiro-ministro, num interlúdio político que muitos portugueses hesitam, com sólidas razões, em creditar-lhe como currículo.

O anúncio de que Santana Lopes tinha a intenção de criar um novo partido acabou por ser a revelação de um segredo de Polichinelo. Até numa vetusta capa do “Independente” isso já havia sido notícia. Com Marcelo a tapar-lhe Belém, com um PSD grávido de outras ambições, Santana Lopes ousa romper com o atual sistema de representação partidária, depois do afloramento conjuntural que foi a aventura do PRD, e que só o Bloco conseguiu concretizar, explorando a esclerose do PCP e o excesso de pragmatismo do PS.

Terá Santana sucesso? Logo veremos. Uma coisa é evidente: não deve ser nada fácil viver na nostalgia de um futuro que não se teve.

Saúde!

Nos tempos que correm, sinto saudades do tempo em que Portugal tinha uma Ministra da Saúde!