quinta-feira, setembro 13, 2018

A montra





No sábado, bati com o nariz na porta (férias...) de uma livraria onde, nesse mesmo dia da semana, quase sempre costumo “arruinar-me devagarinho” (a expressão não é minha), como que a “compensar” a barateza (existirá a palavra?) da conta acabada de pagar no local onde nesses dias almoço.

Ao meu lado, a ver uma das montras, estava um cavalheiro mais idoso do que eu, com o nariz desta vez literalmente no vidro, parado, pareceu-me que a olhar os livros, mas não tenho a certeza. Não lhe vi a cara. A senhora, que até um instante antes estivera junto dele, havia entretanto entrado num prédio. O cavalheiro por ali ficou, visivelmente apenas à espera dela, continuando a olhar a montra, estático, com um cuidado de atenção que o que estava nessa mesma montra claramente não merecia. Nem deu por mim, a um metro, nem por ninguém. Achei estranha aquela fixação e mirei-o melhor. Era António Lobo Antunes. 

Não lhe disse nada, porque tive receio que isso pudesse incomodar o seu silêncio. Conheço Lobo Antunes, falámos algumas vezes. Quando eu vivia em Paris, organizei-lhe na embaixada uma homenagem, que incluiu uma sessão de debate com especialistas e jornalistas. Também por lá, almoçámos e jantámos juntos, noutras ocasiões. É um autor altamente apreciado em França. É conhecido por ter um feitio nem sempre fácil ou, como se costuma dizer, tem fama de ser “de luas”. Há poucos anos, já aqui em Lisboa, passámos um bom quarto de hora de conversa a dois, num velório, falando de várias coisas, de França, de dois dos seus irmãos de quem sou amigo, de Melo Antunes, que era um companheiro dele muito querido. Mas, repito, desta vez decidi não o incomodar naquela sua solidão vidrada na montra errada (o conteúdo da outra montra é geralmente melhor) da minha livraria dos sábados. Se soubesse o que sei hoje, tê-lo-ia interpelado.

E o que é que sei hoje que não sabia no sábado? Soube que António Lobo Antunes vai ter a sua obra publicada na Pléiade, a biblioteca editada pela Gallimard, uma verdadeira “montra” em que só entram os grandes génios da literatura. O único português por lá é Fernando Pessoa. Acreditem em mim: a presença de António Lobo Antunes na Pléiade é uma das maiores homenagens internacionais que podiam ser prestadas à literatura portuguesa. Confesso que é uma grande alegria que, como português, acabo de ter.

Parabéns assim a Portugal e, claro, a António Lobo Antunes!


(ps - já sei que alguns comentários a este post vão-se afastar da honra que é ter ALA publicado na Pléiade, acabando por ser sobre se se gosta ou não dele, se Saramago é melhor, coisas assim... É a vida!)

10 comentários:

Luís Lavoura disse...

Esse gajo é nojento, a começar no cigarro e a acabar na escrita.

Anónimo disse...

Já aqui antes tinha dito que me parecia que o único escritor português com alguma coisa traduzida em França seria Pessoa.
Temos mais um!!!!!
Não sei muito bem qual o prestígio das publicações em língua francesa mas que ainda interessa ...interessa.
Pode ser que do francês façam outras traduções noutras linguas.

Joaquim Barreiros disse...

No início da década de 80, tinha eu vinte e poucos anos, comprei numa tabacaria de um parque de campismo o "Cu de Judas", porque precisava de passar o tempo num dia em que o clima não ajudava.
Fiquei surpreendido e no espaço de 2 semanas devorei os 4 livros que ALA tinha publicado até então.
A partir daí a literatura passou a ter um papel diferente na minha vida.
Naturalmente que me congratulo com o que o Senhor Embaixador acaba de informar mas é esta dívida de gratidão, que me acompanha desde essa altura, que sempre me ocorre quando ALA é referido.

Diogenes disse...


Preferindo Saramago a Lobo Antunes, não quero de deixar de expressar o meu contentamento pela distinção de que agora é alvo.
Lobo Antunes, é inegável ser um dos grandes escritores portugueses. O prémio Nobel também não era desmerecido.

Anónimo disse...

Não consigo ler duas páginas dele nem do Saramago.

Anónimo disse...

Distinção justissima para um amigo e para um grande escritor. É das pessoas mais ciltas de Portugal, com um conhecimento vastíssimo da literatura mundial, desde a Grécia Antiga até Céline.

Muitos parabéns

JPGarcia

Anónimo disse...

Foi uma excelente notícia que deu.
É uma honra para Portugal ter Lobo Antunes na Pleíade, ao lado de Borges, Saint-Éxupery, D’Ormesson entre outros.
Parabéns a Lobo Antunes um dos nossos maiores escritores.

arber disse...

Estranho é que o Sr. Embaixador não o tenha abordado e cumprimentado. Isso só pode ter um significado, maior do que o simples não querer incomodá-lo: não o aprecia, nem como pessoa nem como escritor. Será?!
Faria o mesmo, por exemplo, com Eduardo Lourenço?

Anónimo disse...

A fotografia é de meter medo ao susto!

Joaquim de Freitas disse...

Não perdoo à Igreja nunca ter pedido perdão aos portugueses pela sua colaboração activa com a Ditadura e as iniquidades decorrentes dela, a sua total indulgência, desde a primeira hora, com a injustiça, a crueldade, a desigualdade, a intolerância, os campos de concentração
(Tarrafal, São Nicolau)
a monstruosa polícia política, a violência da censura, o desprezo pelas mulheres, a guerra colonial, a perseguição aos estudantes, aos operários, aos camponeses, a desavergonhada defesa dos ricos, as missas para as criadas, as homilias em que exortavam à obediência aos patrões, a violência para com os sacerdotes e os bispos que ousaram levantar-se contra o Estado Novo, a forma como abençoaram as centenas de milhares de rapazes mandados para África combater as aspirações dos povos colonizados, mandando capelães abençoar aquele horror, apoiar aquele horror, santificar aquele horror
(eu estava lá e vi)


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