domingo, dezembro 05, 2021

Sampaio


Há uns anos, José Pedro Castanheira escreveu uma pormenorizada biografia de Jorge Sampaio. O próprio contribuiu para esse trabalho, ciente da importância de ajudar a deixar desenhado, “for the record”, como o rigor que lhe era próprio, o seu percurso cívico, desde os tempos da ditadura até àquele em que os portugueses, por uma década, lhe confiaram a chefia do Estado. 

Nunca há apenas uma versão da História. Há leituras diferentes dos factos, dependentes dos ângulos em que cada um se situa perante eles, o mais das vezes à luz dos seus interesses, convicções e circunstâncias. Por essa razão, no relato das coisas, na escolha do que se diz e do como se diz, nas avaliações que se escolhe fazer, subsistirá sempre uma inevitável subjetividade. 

Ninguém escapa a esse relativo arbítrio de perspetivas - desde os atores principais até às figuras secundárias dessa grande peça que é a vida coletiva. A questão essencial é saber se, em todo esse esforço de “dizer” a História, prevalece ou não uma atitude e um esforço de seriedade. Jorge Sampaio passou sempre, com um grau muito raro de elevada distinção, nesse teste de aproximação a uma verdade a qual, repito, por definição, nunca tem apenas um único dono.

Quem tem curiosidade pela História sabe da importância que para ela têm os testemunhos. Um grupo de amigos de Jorge Sampaio, muito pouco tempo depois do seu desaparecimento físico, decidiu pedir a pessoas que privaram com ele relatos de factos e vivências que ajudassem a melhor completar o seu retrato. 

“Era uma vez Jorge Sampaio”, agora editado pela “Tinta da China”, é um conjunto de cerca de 130 curtos textos, assinados por pessoas que, para essas 400 páginas, ilustradas por muitas fotografias, carreiam modos diferentes de nos ajudar a melhor recortar a figura de Sampaio. 

Em todos esses testemunhos há uma inescapável dimensão afetiva. Quem escreveu os textos quis prestar tributo a alguém por quem tinha admiração, olhando-o do lugar pessoal onde estava. O conjunto, se bem que desigual, acaba assim por ser muito interessante, a ajuizar da leitura de mais de metade do livro que já empreendi, em algumas horas. 

Nos últimos anos, recordo-me de ter comentado, por mais de uma vez, com amigos, que, tal como eu, eram admiradores da figura de Jorge Sampaio, que o reconhecimento que parecia ser-lhe dado pelos seus compatriotas, ficava, aparentemente, aquém daquilo que realmente lhe seria devido. Subsistia como que uma “injustiça” na avaliação do empenhamento e do muito elevado sentido de Estado de alguém que, podendo ter cometido erros ou omissões, teve um percurso de exigência consigo mesmo, num tempo muito complexo de decisões, que pedia meças a quem quer que fosse, na vida política nacional.

Curiosamente, no momento da sua morte, o país “retificou”, com espontânea sinceridade, essa suposta e pelos vistos apenas ilusória indiferença. O modo sincero como os portugueses mostraram sentir o desaparecimento de Jorge Sampaio trouxe um sopro de esperança de que, no meio desta espécie de anomia cívica que parece marcar o nosso quotidiano, ainda haja espaço para mostrar respeito por algumas escassas referências morais. E Jorge Sampaio é, sem a menor sombra de dúvidas, uma das mais importantes. Este livro, que recomendo, é também um tributo a essa esperança.

2 comentários:

Flor disse...

Muito interessante.

Flor disse...
Este comentário foi removido pelo autor.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...