quinta-feira, dezembro 30, 2021

Rohmer


Ontem, à hora de jantar, numa conversa com uma familiar, falou-se, já nem sei bem porquê, do filme “Ma Nuit Chez Maud”, de Éric Rohmer. E das angústias existenciais da personagem de Jean-Louis Trintignant no filme, que, a mim, me levou a ler o “Pensées”, de Pascal, e que então me criou uma ideia mítica (um pouco falsa, vá lá!) de Clermont-Ferrand. 

As coisas são como as cerejas, vêm umas depois das outras.

Por instantes, chegou-me à memória um ciclo de cinema francês, numa sala perto da avenida de Roma, em Lisboa, no início dos anos 70, onde vi, pela primeira vez, o “Ma Nuit Chez Maud”. E recordei-me, também, dos "Contes Moraux" de Rohmer. E dos embaraços, à beira-lago, da figura de Brialy, no sempiterno "Genou de Claire". E do inesquecível "L'amour l'après-midi", de onde um amigo meu retirou o dito magnífico de que "mais vale à tarde do que nunca"...

Mas voltemos a Clermont-Ferrand. Fui lá, um dia, há 11 anos, para um encontro com a comunidade portuguesa, creio que numa festa de São João, quando era embaixador em França. 

No segundo dia, antes de regressar a Paris, consegui umas horas livres. Para espanto do simpático motorista que por ali tive, pedi-lhe para me levar a alguns pontos da cidade, que havia registado num mapa, construído pela minha memória do filme. Um deles era uma vista de um ponto alto. O que o homem suou para descobrir o sítio! Mas lá chegámos (deixo a imagem que queria recordar).

Passou-se, entretanto, pouco mais de um ano. 

Fui passar um fim de semana a casa de amigos, na Baixa Normandia. No sábado, a dona da casa convidou-nos para ir ver uma interpretação da peça musical "Carnaval des Animaux", de Saint-Saenz, num festival cultural, perto de Alençon. No palco, estava uma atriz, uma bela senhora de 67 anos. Fui-lhe apresentado no final. 

E disse-lhe: "Lembro-me de si a passear de motocicleta, em Clermont-Ferrand". "Mas eu nunca vivi em Clermont-Ferrand!", respondeu-me ela, amável. "Talvez não! Mas passeou por lá, de motocicleta. Ou não?" Reação, segundos depois: "Ah! no filme?!" e fez um largo sorriso: "Que simpático! Ainda se lembra?" Claro que lembrava! Eu lembro-me sempre do que me dá prazer.

A senhora era Marie-Christine Barrault, a inesquecível atriz de “Ma Nuit Chez Maud”. Naquele ano de 1969, nesse seu primeiro filme, aos 25 anos, tinha protagonizado algumas cenas inesquecíveis - pelo menos para mim. Depois disso, iria ter uma carreira muito diversa. Repetiu Rohmer, por exemplo, no tal "L'amour l'après-midi", fez o histórico "Cousin, cousine", esteve mesmo no "Stardust Memories", de Woody Allen, e até, hélas!, no "Le soulier de satin", de Manoel de Oliveira. 

Foi um gosto raro cruzar a memória com a vida, ainda que cinematograficamente apenas virtual. E tive então o prazar de beber, com Marie-Christine Barrault, uma cidra normanda, saudando esses tempos bons. 

Rohmer acaba aqui, por hoje? Não.

Há minutos, recebi um pedido de “amizade”, no Facebook, de José Manuel Costa, que é, nem mais nem menos, do que o Diretor da Cinemateca Nacional. Só isso? Também não. José Manuel Costa tinha acabado de colocar um “post” onde procurava saber onde poderia adquirir a caixa DVD com os filmes dos Contos das Quatro Estações. De quem? De Eric Rohmer.

Eu sei que não há coincidências. Mas, tal como as bruxas, “pero que las hay, las hay!”

3 comentários:

jj.amarante disse...

Que privilégio, merecido por uma boa memória! Faz lembrar "A rosa púrpura do Cairo" do Woody Allen em que as pessoas saem ou entram no filme. Eu não sei se era mais atraído pela Françoise Fabian ou pela Maud.

Flor disse...

Gostei!! Hilariantes recordações. Na minha juventude fui apaixonada pelo cinema e pela música francesa. "Un homme et une femme"p.ex.

CNF disse...

Oh Flor! Ooh FLOR! O filme do Lelouch é ,provavelmente, o pior filme francês que adquiriu um módico de notoriedade e por más razões! Quem não se lembra da música: tará tá tá.......badabadadá~badabadadá Mau começo para gostar do cinema francês dos anos sessenta ,que conta com muita obra prima.

■ pastilha de cultura a propósito do Rhomer e ,já agora ,do Pascal:chamavam-lhe alguns críticos a propósito da sua sobriedade "o jansenista da imagem".

CNF

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...