Morreu ontem o arcebispo anglicano sul-africano Desmond Tutu. Mandela ainda ficaria preso em Robben Island, por alguns anos mais, quando, em 1984, Tutu recebeu, no Rådhus de Oslo, o Prémio Nobel da Paz.
Os nórdicos têm uma “rightousness” que, às vezes, irrita por excesso de presunção. Porém, em matéria de sensibilidade face a situações de injustiça e desigualdade, estiveram frequentemente à frente de muito outro mundo. O Prémio Nobel da Paz, que o Comité Nobel norueguês atribui (os suecos atribuem os restantes), não obstante alguns erros de “casting”, teve o frequente mérito de ajudar a destacar alguns desses casos gritantes, contribuindo para dar eco a algumas lutas justas, ajudando mesmo, em certos casos, a resolvê-las a caminho da solução que a História veio a ter como certa.
O regime do “apartheid” foi, com toda a certeza, uma das criações políticas mais detestáveis que essa mesma História alguma vez já acolheu (claro que houve o nazismo, eu sei). Por muitos anos, os negros sul-africanos foram considerados estrangeiros na terra onde nasceram, sujeitos a um processo de discriminação e repressão, por parte de quem se considerava superior e com o direito de definir onde e como eles podiam viver. Os “bantustões” iriam ser, nesse projeto insano, um dos produtos institucionais mais absurdos.
A complacência com que, na Guerra Fria, o regime sul-africano foi sendo tratado por “este lado”, pelo “mundo livre”, só não raiou o cinismo porque o ultrapassou bastante em perversidade. Nunca devemos esquecer que foi uma denúncia da CIA que conduziu à detenção de Nelson Mandela - o início dos seus 27 anos de prisão. E é bom também lembrar que foi o governo de Thatcher que procurou atrasar as sanções europeias, bem como aquelas que a Comunidade dita Britânica tentou implementar, para isolar o “apartheid”, com a ajuda de uns não inocentes úteis, que nós conhecemos de ginjeira.
Desmond Tutu, de quem o ANC, que pilotava a luta contra o regime, muitas vezes divergiu, foi, por muito tempo, a figura moral que ajudou a modelar, um pouco pelo mundo, uma crescente reação, por decência básica, contra o “apartheid”.
Com a libertação e a emergência de Mandela na vida democrática do seu país, Tutu recuou no palco político, mas nunca cedeu um milímetro na postura ética que iria manter até ao final da sua vida. Nesse importante caminho ficou a condução que fez da Comissão para a Verdade e Reconciliação, uma iniciativa que, não obstante algumas justificadas críticas às respetivas insuficiências, teve o mérito de entrar por um terreno precursor, à escala mundial.
A África do Sul que hoje existe está, seguramente, muito longe do sonho de Mandela e era, visivelmente, uma realidade com que Desmond Tutu não vivia bem.
O arcebispo, aliás, nunca escondeu críticas a práticas locais que considerou atentatórias da democracia e do Estado de direito, da corrupção às desigualdades e aos atentados aos direitos sociais e humanos, bem como em relação à xenofobia que, para surpresa de muitos, emergiu na sociedade sul-africana. Tutu nunca se importou de ser impopular, a bela qualidade das pessoas realmentes superiores.
Devo confessar que sempre me fascinou o sorriso franco, quase galhofeiro, de Desmond Tutu. Sempre imaginei que, com isso, Tutu devesse irritar bastante os “boers” que estavam no poder que ele ajudou a derrubar. Era o sorriso de quem sabia que estava do lado certo da História.
10 comentários:
O Prémio Nobel da Paz, [...] não obstante alguns erros de “casting”
Eu diria que os erros de "casting" são mais que muitos. São tantos, mesmo, que, diria eu, é mais frequente falharem na pessoa a quem atribuem o Nobel, do que acertarem.
Exemplos recentes são os líderes israelita e palestiniano, Obama, e Abiy Ahmed.
Sobre os não inocentes úteis, não se está a referir a gente por cá, pois não? É que eu recordo-me de um famoso (o termo correto é mais infame) voto contra uma resolução na ONU apelando à libertação de Mandela, pelo Governo de Cavaco Silva, com o alto patrocínio de sua Excelência o Presidente da Região Autónoma da Madeira, Alberto João Jardim, a mostrar bem a cepa de que um certo PSD era então feito...
Sr. Jaime Santos. É sempre bom, lembrar os "velhacos do pelotão".
Caro Tony, Fui simplesmente mais direto, quem os lembrou foi, e muito bem, o Sr. Embaixador.
A Maria João Marques escreveu um excelente artigo há pouco tempo sobre a ausência de mulheres nos órgãos de direção do PSD (os outros Partidos não são exatamente exemplos, cabe notar), entre outras queixas sobre como os social-democratas não são exatamente o Partido mais Feminista que existe em Portugal...
Mas isto é só para mostrar que, ontem como hoje, a luta pela igualdade no sentido lato não ocupa um lugar central nas preocupações do PSD, algo que é bom ter na memória na hora de pôr a cruzinha no boletim de voto.
No caso particular de Alberto João Jardim, sabemos bem de onde ele provém e assim sendo, a sua atitude não espanta. A de Cavaco Silva, que sempre mostrou ter coragem cívica igual a zero, também não...
Quanto ao atual líder do PSD, é de outra geração, mas cabe lembrar que pelos vistos quer fazer Portugal grande de novo outra vez (como se alguma vez tivesse deixado de o ser, mesmo nos momentos mais sombrios da noite fascista, porque havia quem lhe resistisse) e, pior, quer retirar os subsídios aos madraços do RMI, entre os quais se encontram, como bem notava Marques, muitas mães que educam os filhos sozinhas...
Sobre o personalismo cristão do PSD também estamos conversados. Ele há frases que dizem mais que livros inteiros...
Tretas deste calibre, tal como certas tiradas estalinistas do PCP, a verter lágrimas pela queda da URSS (cujos 30 anos se celebram, digo eu!) porque pelos vistos era muito útil à social-democracia ocidental já que obrigava o capitalismo a conter-se (os comunistas quando não podem elogiar a obra diretamente, dada sua falência brutal, elogiam-lhe os efeitos, digamos, marginais), merecem ser tratadas a pontapé...
Meu caro Embaixador
Sim, concordo consigo que Desmond Tutu, mas fundamentalmente Nelson Mandela, estavam do lado certo da História ao acreditarem na nação “arco-iris” pós-apartheid.
O problema foi que transformação sociedade e do regime político sul-africanos pós-apartheid nunca foi no sentido idealizado por NN e DT, mas sim do que aquilo que o intelectual nigeriano Kole Omotoso descreveu numa palestra intitulada “A Ambiguidade Perigosa da Tribo Wabenzi: Áfricas dos próximos futuros” ("Wabenzi [wasignifica povo] é uma tribo nova que existe em África e que tem em comum o facto de todos os seus membros guiarem um Mercedes-Benz") feita em 2011, na Fundação Calouste Gulbenkian integrada no programa Próximo Futuro, organizado por António Pinto Ribeiro.
Sobre a África do Sul, Kole Omotoso, nascido na Nigéria em Akure em 1943 e que vive actualmente em Joanesburgo, afirmou então na Gulbenkian: "As pessoas têm que compreender que não há sentido em continuar a culpar as potências coloniais ao fim de 50 anos. E mesmo na África do Sul já passou tempo de mais para se continuar a dizer que a culpa de tudo é do apartheid."
Aquilo de que o Carlos Antunes está a falar tem um nome na literatura de relações internacionais e chama-se 'state capture', captura dos estados por interesses privados, e existe igualmente nos países capitalistas ocidentais e noutras latitudes (na Rússia ou China existe um capitalismo de Estado controlado pelo poder político, o que não é a mesma coisa que a submissão do interesse privado ao público, pelo contrário).
Nos países ocidentais essa captura é talvez mais mitigada pela existência de instituições mais fortes, mas basta olhar para a plutocracia americana ou para a corrupção que grassa numa praça financeira como Londres (Roberto Saviano disse que o RU era o país mais corrupto do mundo) para percebermos que não é de todo o exclusivo dos países em desenvolvimento.
Claro, não fica tão bem dizer de nós o que dizemos deles...
E antes que concluam que eu sofri uma espécie de conversão paulina e que vou passar a cantar loas ao Camarada Fidel Castro, cabe notar que os nacionalismos progressistas que, sobretudo com apoio soviético, expulsaram os poderes coloniais europeus em África e na Ásia e em alguns casos derrubaram ditaduras clientes dos EUA na América Latina (pelo menos temporariamente), falharam praticamente todos e converteram-se em poderes despóticos e corruptos...
Basta olhar para a profunda tristeza em que se converteu a Nicarágua (o poder em Cuba pelo menos não é obscurantista)...
Uma excepção, apesar de tudo, é a África do Sul, fruto da visão de Mandela e Tutu. Mau grado a corrupção e a violência, a democracia tem-se aguentado e chegou mesmo a mandar um presidente corrupto para casa...
O que eu quero dizer com tudo isto é que por baixo do leve verniz ideológico, o que é perene é a venalidade dos homens, independentemente das crenças e do tom de pele...
Meu caro Jaime Santos
Estou de acordo com as suas considerações de que aquilo que designa por “state capture” não se restringe aos países africanos.
O problema é que passados mais de 70 anos sobre o início da independência dos países africanos e o fim do colonialismo em África, os ditadores e regimes despóticos africanos continuam, para justificar a corrupção endémica dos seus governos apenas rentável para as elites e o atraso que isso tem gerado no desenvolvimento nas suas sociedades, aos problemas herdados do colonialismo.
Depois de ter citado Kole Omotoso, permito-me recorrer a um outro intelectual nigeriano, Chinua Achebe (1930-2013), um dos pais da literatura africana moderna, e um dos mais lúcidos narradores do colonialismo europeu em África, que ao mesmo tempo, traçou o mais impiedoso retrato dos regimes ditatoriais que se seguiram às independências, às guerras civis e às consequências trágicas que daí advieram na maior parte das nações africanas da História recente (“Quando o Mundo se Desmorona”, Mercado das Letras, 2008) tornando-se a voz mais incómoda para alguns intelectuais africanos que «a qualquer pretexto desfraldam a bandeira da “vitimização” pós-colonialista do continente africano, demitindo-se assim das suas responsabilidades, e também para certos intelectuais ocidentais que não se conseguem ver livres de um exacerbado complexo de culpa histórica, e que com essa disfarçada atitude paternalista mais não fazem do que legitimar a hipocrisia dos tiranos africanos e a desgraça dos seus povos».
Depois, não nos queixemos do que se passa com os imigrantes africanos no Mediterrâneo!
PS: Ainda que tendendo a concordar consigo que o regime democrático se tem conseguido minimamente manter na África do Sul, a verdade é que como o bisneto de Nelson Mandela e activista Siyabulela Mandela, afirmou recentemente “existe uma debilidade ou mesmo falta de instituições de Estado, por exemplo, de tribunais ou parlamentos, capazes de julgar a corrupção dos seus líderes ou as injustiças a que submetem o seu povo”.
Quanto a Jacob Zuma, este foi condenado a prisão efectiva pelo Tribunal Constitucional da África do Sul, que se recusou a cumprir, incitando para o efeito, aos protestos populares dos seus apaniguados zulus, incluindo actos de pilhagem a estabelecimentos comerciais e destruição de propriedades nas províncias de KwaZulu Natal (sua terra natal), encontrando-se por força disso, e à revelia da decisão do tribunal, em sua casa em regime de liberdade condicional.
Carlos Antunes, permita-me ser pessimista. Não se consegue ser a Dinamarca (para tomar emprestado o título de um capítulo da Origem da Ordem Política de Fukuyama, que recomendo vivamente) do pé para a mão. 70 anos é uma bagatela em termos históricos (e 30 é uma bagatela ainda maior) e a herança do colonialismo ainda perdura, desde logo nas fronteiras artificiais dos estados africanos.
Portugal tem uma longa história de constitucionalismo, mais antigo que o próprio reino da Dinamarca, e também não consegue ser a Dinamarca, desde logo porque esta tem a sua população escolarizada há muito e nós chegamos a 1974 com uma taxa de analfabetismo que nos deveria fazer corar de vergonha ainda hoje.
E note-se que não foi há muito tempo que os nosso sistema judicial começou a combater a impunidade e a corrupção na política...
Não há, creio, muito a fazer em relação a África senão esperar que esta se desenvolva. Evidentemente, isso cria um problema profundo porque os seus cidadãos querem emigrar para a Europa em busca de melhores condições de vida, tal como nós o fazíamos nos anos 60 e 70, já que a Europa acabava nos Pirinéus...
Estes paralelos deveriam impedir-nos pelo menos de dar lições de moral aos africanos. Até porque, convenhamos, é preciso muita coragem para se viver em África...
Não há, infelizmente, soluções rápidas para problemas complexos e devemos desconfiar de quem diz vender milagres, seja qual for a sua proveniência ideológica. O único guia para a acção é uma boa dose de prudência e pessimismo, combinada com muita decência e alguma esperança (mas pouca). E um investimento nas instituições...
Jaime Santos
Respeito a sua opinião, mas não concordo consigo.
Longe de mim dar lições de moral aos africanos, porque também sou um deles. Conheci bem a África do Sul antes e pós apartheid e, por isso, me permiti dissertar sobre o assunto.
Se reparar todos os citados no meu post sobre a realidade sul-africana, são intelectuais e activistas africanos. Não recorri a nenhum euro-ocidental.
Fico-me por aqui, porque senão o Embaixador ainda nos dá um puxão de orelhas por estarmos abusivamente a utilizar o espaço do seu blog.
Carlos Antunes, falo enquanto Português que não é africano e o que digo aplica-se a mim e àqueles que não o são.
Claro, quem é africano está em melhores condições para criticar os seus.
Mas nem sequer me considero incapaz de criticar o que se passa por exemplo em Angola, como já fiz neste espaço, aliás... Os angolanos também se permitem criticar o que se passa em Portugal e têm toda a legitimidade para isso. As arengadas do Jornal de Angola no tempo de Eduardo dos Santos poderiam ser irritantes, mas eram absolutamente legítimas...
Mas independentemente da sua condição, de facto não concordo nem consigo nem com os autores que cita, sejam eles africanos ou não. Primeiro, porque considero que a herança do colonialismo se mantém em escalas de tempo muito mais vastas do que uns meros 70 anos (o colonialismo não começou aliás no sec. XIX, embora tenha adquirido o seu nome então) e em segundo lugar porque a construção de instituições fortes também se espraia por tais horizontes temporais longos, como o nosso próprio exemplo português mostra.
O que não quer dizer que as pessoas e os Países estejam completamente impotentes, há alguns casos de boas práticas democráticas, Cabo Verde em particular. E também não quer dizer que os europeus, lá porque reconhecem o peso do colonialismo e a dificuldade em construir instituições sólidas, não possam ter uma atitude crítica contra a corrupção, sobretudo quando Portugal é usado por quem quer que seja para lavar dinheiro.
Evidentemente, aqueles que estão melhor colocados para a criticar e combater são os próprios africanos, como disse acima.
Finalmente, nunca vi o Embaixador levantar a voz contra conversas em tom elevado com a nossa e que não se desviam do tema que ele discute. Já me deu puxões de orelhas, mas não por isso, e suspeito que os mereci...
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