segunda-feira, dezembro 13, 2021

Pécresse, Zemmour e a França que aí vem


A quase seis meses do sufrágio, a luta política em torno das eleições presidenciais francesas segue já bastante animada. 

À esquerda, Jean-Luc Mélenchon é o único a conseguir furar, ainda que ligeiramente, a barreira dos 10%, com a candidata socialista Anne Hidalgo a mostrar-se sem hipóteses de dar um salto significativo nas sondagens. A desesperada tentativa que fez para lançar uma espécie de “primárias à esquerda”, para escolher “quem estivesse em melhores condições para derrotar a direita”, ideia que envolvia Mélenchon, os Verdes e candidatos de outros setores, foi acolhida com total frieza por esses mesmos candidatos e lida por toda a gente como sintoma de total isolamento.

Mélenchon, um antigo secretário de Estado de Mitterrand (facto pouco conhecido) que tenta federar a “esquerda da esquerda” através da sua “France Insoumise”, é um candidato sem condições de ser eleito ou mesmo qualificar-se para a segunda volta. Isto acontece por muitas razões mas, muito em especial, pelo facto da esquerda, em geral, ser, nos dias de hoje, um setor político com um “appeal” conjunturalmente reduzido no cenário francês. Um dia poderá tentar perceber-se o que levou a este “desastre”, à revelia de uma tradição política de muitas décadas. O que, no entanto, não significa que não seja uma tendência reversível.

À direita, há duas surpresas. 

No seu extremo, o surgimento de Éric Zemmour, um jornalista, prolífico comentador televisivo e escritor ultra-conservador, trouxe uma quebra sensível à força de Marine Le Pen, que, por muito tempo, se considerou, com razão, a federadora da extrema-direita e, nessa qualidade, a “challenger” natural de Emmanuel Macron. O presidente da República estaria, ao que se diz, bastante confortável com esse cenário. É que, em 2017, Le Pen havia dado clara mostra das suas limitações, no debate entre as duas voltas, e nada levava a supor que as coisas se tivessem alterado em termos que pudessem colocar em risco a reedição das pretensões de reeleição de Macron.

O surgimento de Zemmour veio alterar esse equilíbrio. Le Pen teve uma queda imensa nas sondagens, claramente em favor de Zemmour, que, nas primeiras semanas, chegou a equivalê-la na preferência potencial dos eleitores. O jornalista defende uma agenda anti-islâmica e de rejeição da presença dos estrangeiros, dizendo querer reconstituir uma França “para os franceses”, que entende estarem a ser privados do seu país por uma “invasão” islâmica que, a seu ver, tenderá, a prazo, a tomar conta da França (“le grand remplacement”). Com um discurso muito articulado, Zemmour é um razoável tribuno e um excelente debatedor, sendo que a sua sofisticação intelectual (no que se distingue imenso de Trump) o pode tornar mais ouvido em setores mais conservadores da direita tradicional. Em seu desfavor funcionará um excesso de agressividade verbal, alguma misoginia e um sensível recuo em temáticas de género, que o isolam de um eleitorado mais centrista. Tem contra ele muitos setores de imprensa, os quais, no entanto, lhe continuam a dar imenso palco. Num debate recente com o ministro da Economia, Bruno le Maire, Zemmour mostrou um manejo dos temas económicos que surpreendeu muitos observadores, que o consideravam limitado a uma agenda quase monotemática - assente na segurança e na identidade.

A segunda surpresa, também à direita, foi dada pela escolha de Valérie Pécresse, numa eleição “primária” entre os militantes da direita clássica. Embora a imagem de Pécresse fosse sólida e, ainda recentemente, tivesse sido reconduzida pelos eleitores à frente da região do Grande Paris, estava longe de ser dada como favorita na seleção do candidato do “Les Républicans” às presidenciais. Xavier Bertrand, também presidente de região e antigo ministro de Sarkozy era visto como a escolha mais provável. O antigo comissário e negociador do Brexit, várias vezes ministro, Michel Barnier, parecia oferecer uma “imagem de Estado”. E até Éric Ciotti, da ala direita do partido, com uma linguagem e propostas de grande radicalismo, “pescando” claramente nas águas de Le Pen e Zemmour, parecia surgir como mais qualificado. Seria, aliás, Ciotti quem iria passar a uma segunda volta com Pécresse, sendo aí derrotado. O facto de todos esses putativos candidatos terem já declarado apoiar Pécresse ajudá-la-á muito na mobilização das hostes comuns.

Pécresse, também ministra de Sarkozy, traz consigo um passado governamental sólido, competente, mas não muito espetacular. Ser mulher acabará por um fator importante, ter tido um percurso político sem falhas e sem “gaffes” redunda numa excelente qualificação. Contra ela funcionará um tom algo arrogante e um ar “social-urbano” a que os franceses chamam “bobo”. Mas Pécresse revela uma interessante determinação no discurso e revela ter ideias claras. Parece, ainda assim, “à esquerda” de François Fillon, o primeiro-ministro de Sarkozy que, em 2017, terá ficado atrás de Macron por virtude de trapaças nepotistas em que se havia envolvido. Pode assim dizer-se que Pécresse estará no “mainstream” do “Les Republicans”. Ela própria afirma que quer ser “um terço de Thatcher e dois terços de Merkel”. 

A escolha de Valérie Pécresse é, assim, uma má notícia para Macron e para Zemmour. 

Macron foi (e, a sê-lo de novo, assim será) eleito com muitos votos do eleitorado da direita clássica, que Pécresse agora passou a representar. E esta parece ter possibilidade de vir a deslocar muitos dos apoios que Fillon tinha perdido, na sua “débacle” ética, em 2017. E, claro, numa hipotética segunda volta Macron-Pécresse, a tarefa do presidente será mais difícil do que o seria com Le Pen, bem menos qualificada, em quem muitos eleitores da direita tradicional continuariam a não se rever e que todos recordariam ter sido “destroçada” no debate entre os dois turnos.

Mas também Zemmour, que contava com parte do eleitorado do “Les Républicans” para garantir apoios que pudessem ir para além da “direita popular” de Le Pen, terá agora um desgaste na sua margem de eleitorado potencial. Aliás, numa sondagem feita já depois do surgimento de Pécresse como candidata do “Les Républicans”, Zemmour recuou nas intenções de voto.

Porém, é ainda muito cedo, faltam alguns meses para as eleições e muita coisa pode ainda acontecer. 

Macron, com a saída de cena de Merkel e com a titularidade da presidência francesa da União Europeia, que vai exercer no primeiro semestre de 2022, ganha visibilidade, passando a ter consigo um forte sopro de prestígio institucional. A sua vitória em maio de 2022 continua a ser o cenário mais provável. Depois de Sarkozy e Hollande não terem tido condições para renovar o quinquenato, isso significaria um retorno à viabilidade prática de recondução dos presidentes.

4 comentários:

Flor disse...

Reflexão atenta e detalhada dos candidatos às
eleições francesas. Gostei.

José disse...

Tento imaginar o que seria se um candidato de direita aparecesse com um mote como "France Insoumise"... Adiante.

Há aqui uma questão de imagem que também é importante. A Direita "moderada" apresenta-se com dois candidatos com boa pinta. Macron tem aquele ar de jovem simpático e de boas famílias e Valérie Pécresse é uma mulher atraente, com um ar fino.

Já a dita "extrema" Direita, apresenta-se com uma candidata feia, com algo de masculino até e um candidato que parece uma personagem de banda desenhada (feiticeiro malvado que conspira na sombra).

Quando falam, a vantagem também vai para os "moderados". Macron com uma voz calma e até paternal, Zemmour com um tom anasalado algo irritante. Entre as mulheres a diferença é menos acentuada embora Le Pen esteja um pouco em desvantagem.

Questões de imagem à parte, como vou começando a ter alguma idade já me chateia este constante tocar a alarme cada vez que há eleições em França. Há quanto tempo nos tentam assustar com a extrema Direita no hexágono? Desde os anos 80? Já ganharam alguma coisa? Não.

Siga!... (e, já agora, que Zemmour tenha uma boa votação - ao menos dá sabor à comida insonsa)

mensagensnanett disse...

A EUROPA IDENTITÁRIA... versus... A EUROPA DO CIDADANISMO DE ROMA
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As décadas XX-XXI são décadas de uma importante clarificação histórica:
- O CIDADANISMO DE ROMA É UM FACTO INCONTORNÁVEL NA EUROPA!
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O cidadão de Roma gosta de projectar uma economia partido do pressuposto da existência de outros como fornecedores de abundância de mão-de-obra servil.
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Esquerda do sistema XX-XXI =
= Direita do sistema XX-XXI:
-> 'é tudo farinha do mesmo saco': boys e girls do cidadanismo de Roma.
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Políticos do tipo D. Trump colocam o cidadão de Roma XX-XXI em pânico: 'sem os trabalhadores imigrantes morremos à fome' ("sem os trabalhadores imigrantes as parteleiras dos supermercados ficam vazias").
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O cidadão de Roma XX-XXI possui um discurso de ódio exactamente igual ao cidadão de Roma do passado:
- ódio às intenções Identitárias.
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O SEPARATISMO IDENTITÁRIO É ABSOLUTAMENTE NATURAL NA EUROPA!
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--»» Por um lado, temos o EUROPEU CIDADÃO DE ROMA: este europeu projecta uma economia partindo do pressuposto da existência de outros... como fornecedores de abundância de mão-de-obra servil.
--»» Por outro lado, temos o EUROPEU IDENTITÁRIO: este europeu valoriza o Ideal de Liberdade que esteve na origem da nacionalidade: 'ter o seu espaço, prosperar ao seu ritmo'.
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Valorizas a liberdade identitária... então:
-> reivindica liberdade/distância/separatismo do cidadão de Roma!
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O que há a dizer aos globalization-lovers ( EU lovers, etc) é simples e óbvio:
- possuem imensos, imensos, territórios ao seu jeito!...
- não sejam nazis!!!
- ou seja: aceitem a existência de outros!!!
Isto é: os 'globalization-lovers', UE-lovers, etc, que fiquem na sua... desde que respeitem os Direitos dos outros... e vice-versa.
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SEPARATISMO-50-50
(separatismo identitário)
---» Todos Diferentes, Todos Iguais... isto é: todas as Identidades Autóctones devem possuir o Direito de ter o SEU espaço no planeta -» INCLUSIVE as de rendimento demográfico mais baixo, INCLUSIVE as economicamente menos rentáveis.
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-» blog http://separatismo--50--50.blogspot.com/
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P.S.
A MIGRAÇÃO INVERSA DO CIDADÃO DE ROMA.
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O separatismo identitário vai originar a promoção/valorização social do europeu com disponibilidade de trabalhar como mão-de-obra servil... e vai originar a promoção/valorização social do europeu com disponibilidade para criar/educar crianças.
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Consequência:
- muito, muito, europeu (cidadão de Roma) vai migrar para sociedades aonde a disponibilidade para trabalhar como mão-de-obra servil (e a didponibilidade para criar/educar crianças) não sejam tão valorizadas socialmente.

Jaime Santos disse...

A Extrema-Direita no Hexágono, José, representa uns 30% e vi aí uma sondagem em que Le Pen, se fosse à segunda-volta com Macron, teria 45&, Imagine o que eles conseguiriam com um bom candidato/a, que justamente recorresse a um slogan soberanista 'France Insoumise', anti-UE, e se preocupasse menos com a 'Grande Substituição'...

O problema parece ser que os eleitores dessa área política preferem versões francesas de Trump, e o resto da Direita ainda não está pelos ajustes. A Direita Clássica Francesa é bem educada, e o Gaullismo, não nos esqueçamos é de tradição anti-fascista...

Quanto à Esquerda, a sua fraqueza deve-se, antes de tudo, à fuga dos eleitores centristas para Macron. Depois da débacle que foi a Presidência de Hollande, e da viragem do PSF à Esquerda com a escolha de Benoît Hamon para candidato presidencial em 2017, os eleitores de centro que votavam no Partido Socialista preferiram Macron e a REM.

A Dra Martins e o Jerónimo de Sousa deveriam olhar bem para o exemplo francês e também para a votação agregada dos candidatos de Esquerda nas últimas presidenciais e perceber que frentes de Esquerda terão em Portugal o mesmo destino da Esquerda Francesa, que deve ser mesmo a mais burra do mundo.

Burra e pomposa, olhando sobretudo para o senhor Jean-Luc 'Je suis la Repúblique' Mélenchon, que a série Baron-Noir satirizou de forma cruel... ​

Mas Martins e Sousa continuam a acreditar que o proletariado português anda enganado estes anos todos e que um dia vai acordar, sair da caverna para a luz e dar-lhes a maioria absoluta... Podem esperar sentados.

O PS é tão bem sucedido justamente porque se tem conseguido manter como Partido Popular (Volkspartei) e Inter-classista... Esperemos que Pedro Nuno Santos entenda isso se um dia chegar a SG...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...