quinta-feira, dezembro 09, 2021

O Maltez



Só tinha uma pessoa à minha frente, na fila para a compra de bilhetes da TAP, no edifício que então existia na esquina do Marquês para a Braamcamp, de que há pouco descobri esta deliciosa imagem.

Estávamos precisamente em 1976, que coincide ser o ano da fotografia. O cavalheiro que estava a ser atendido, e para quem eu, até então, mal tinha olhado, disse o nome para a senhora do balcão: “Américo Maltez Soares”.

Há campainhas de memória que soam, face a certos estímulos. Olhei de lado o homem. Era ele, o Maltez. O capitão Maltez. Ali estava a figura que, tantas vezes, de pingalim na mão, eu tinha visto a atiçar a polícia de choque, com um zelo sádico e odiento.

De cabelo curto, olhar penetrante, o Maltez era um mestre da repressão. Devo-lhe umas boas corridas pelas ruas, em diferentes contextos, em manifestações oposicionistas, nos tempos da ditadura que ele serviu com dedicação e empenho. 

Foi ele quem, pessoalmente, agrediu à bastonada Fernando Lopes Graça, num 1° de Maio no Rossio. Foi ele quem invadiu a Capela do Rato. Foi ele quem desencadeou a violenta repressão no funeral de Ribeiro Santos e em tantas e tantas outras ocasiões. O Maltez, homem do Exército destacado na PSP, era unha com carne com a Pide, como vim a saber quando, como militar, estive na Comissão de Extinção da dita.

Nos idos de 1969, no hall do ISCSPU (o “U” ainda existia nesse tempo…), tinha-o visto parlamentar com Adriano Moreira e Narana Coissoró, que tentavam evitar que as forças de choque, por ele chefiadas, colocadas em frente ao Palácio Burnay, levassem a cabo a missão de encerrar e selar as instalações da Associação Académica.

Alguns de nós, membros dos corpos gerentes da dita Associação, nessa cena que não terá durado mais de 10 minutos, íamos avançando dilatórios argumentos para atrasar a ocupação, por forma a dar tempo à operação de retirada do precioso equipamento de reprografia, que era transportado em braços que saíam pelo portão que dava para a Travessa do Conde da Ribeira. Tratava-se de material para edição de panfletos e coisas análogas, pelo que era importante evitar que o malta do Maltez lhe deitasse a mão. Não deitou!

E agora, na TAP, ali estava ele, parecia-me que um tanto debilitado fisicamente, com uma senhora jovem ao lado, no anonimato confortável da democracia que ele tanto se esforçara para que não acontecesse.

Pensei cá para mim: “Digo alguma coisa ao homem?” Apetecia-me. Eu estava sozinho, nem sequer podia altear uma conversa num tom que pudesse atazanar verbalmente quem tanto mal e pancada tinha espalhado por Lisboa.

Decidi arriscar. Sem o olhar, fingindo estar a pensar alto, disse, de forma a ser ouvido por ele: “Quem havia de dizer! O capitão Maltez por aqui!” E continuei a olhar para o lado. 

O Maltez virou-se, olhou-me com aquele olhar que milhares de democratas recordam, sem dizer uma palavra. Mirei-o então bem de frente, direto nos olhos, algo desafiante (mas nervoso, confesso, porque “old habits die hard”), sem dizer mais nada. Ele voltou-se de novo para o balcão, tratou das suas coisas e saiu, sem me olhar. A senhora da TAP nem se chegou a aperceber do (não) incidente. Mas, satisfazendo a minha curiosidade, disse-me que “aquele senhor ia a Londres, por razões médicas”.

Não sei quando é que o Maltez morreu. Em 2002, pelo que apanhei na net, viu a sua carreira “reconstituída” postumamente por um governo da democracia. Foi promovido a coronel e ressarcido financeiramente dos “injustos” incómodos e percalços que a sua estimável carreira possa ter sofrido pela inoportuna sublevação levada a cabo pelos seus camaradas de armas. 

O Maltez pode ser coronel à luz da lógica da Caixa Geral de Aposentações. Para a minha geração será sempre o odioso “capitão Maltez”. E faz parte daqueles capitães de quem só nos lembramos por más razões.

O que uma fotografia antiga nos pode trazer à memória!

10 comentários:

Flor disse...

Lembro-me dessa esquina.Algumas vezes utilizei os serviços da bilheteira da TAP.

Luís Lavoura disse...

Os carrinhos pequeninos que se vêem na fotografia. E o hábito tão lisboeta de estacionar sobre os passeios.

Lúcio Ferro disse...

Esse sujeito e outros da sua laia trazem-me à memória o título de um livro de Boris Vian. No seu lugar, não sei como teria agido, possivelmente de forma mais hostil, nem julgo a sua atitude, pelo contrário, é um testemunho histórico precioso (mais um) que aqui nos traz.

Dulce Oliveira disse...

Devia ter-lhe cuspido num olho

José disse...

Se os camaradas de Abril se tivessem lançado - a sério -, aos algozes da ditadura, em vez de andarem preocupados a destruir os grupos económicos e a sanear quadros, hoje teríamos um país bem melhor. Assim, erraram duas vezes.

Já agora, porquê a insistência em escrever "Pide" em vez de "PIDE"?

Francisco Seixas da Costa disse...

José. Porque, apesar de tudo, não escrevo “pide” como deveria fazer.

JFM disse...

Vi o sujeito, com mais tempo, uma manhã que nos idos de 73 foi de morris oxford ao técnico. Talvez visita de estudo, acompanhado por uns trinta maltrapinhos em três carrinhas.
Seriam 10h porque estávamos na rotação entre salas das teoricas para as práticas, grande momento de encontro em os estudantes nos espacos exteriores.
Entrou pelo portão da estatística e estacionou na praça frente ao oavilhao central.
Foi recebido pelo "diretor" Sales Luis com um abraço para aluno ver, uma cena a rocar o grotesco.
Na falta de outra oportunidade para o do pingalim, foi o Sales que saiu, a pé, pelo mesmo portão, a 26 de Abril, até onde foi escoltado por centenas de "reais alunos"

JFM disse...

Vi o sujeito, com mais tempo, uma manhã que nos idos de 73 foi de morris oxford ao técnico. Talvez visita de estudo, acompanhado por uns trinta maltrapinhos em três carrinhas.
Seriam 10h porque estávamos na rotação entre salas das teoricas para as práticas, grande momento de encontro em os estudantes nos espacos exteriores.
Entrou pelo portão da estatística e estacionou na praça frente ao oavilhao central.
Foi recebido pelo "diretor" Sales Luis com um abraço para aluno ver, uma cena a rocar o grotesco.
Na falta de outra oportunidade para o do pingalim, foi o Sales que saiu, a pé, pelo mesmo portão, a 26 de Abril, até onde foi escoltado por centenas de "reais alunos"

JFM disse...

Vi o sujeito, com mais tempo, uma manhã que nos idos de 73 foi de morris oxford ao técnico. Talvez visita de estudo, acompanhado por uns trinta maltrapinhos em três carrinhas.
Seriam 10h porque estávamos na rotação entre salas das teoricas para as práticas, grande momento de encontro em os estudantes nos espacos exteriores.
Entrou pelo portão da estatística e estacionou na praça frente ao oavilhao central.
Foi recebido pelo "diretor" Sales Luis com um abraço para aluno ver, uma cena a rocar o grotesco.
Na falta de outra oportunidade para o do pingalim, foi o Sales que saiu, a pé, pelo mesmo portão, a 26 de Abril, até onde foi escoltado por centenas de "reais alunos"

Fernando Ramos disse...


Alguém aqui do Blog pode p.f. indicar uma foto deste Sr. Capitão.

A maior parte do meu serviço militar obrigatório passei-o com um Tenente-Coronel Maltez Soares no Regimento de Infantaria de Angra do Heroísmo.

Fiquei curioso ao ler o seu artigo, particularmente se o anterior e o capitão Maltez são a mesma pessoa.

Procurei bastante por uma foto dele na net, mas não vi nada que me pudesse ajudar a comparar.

O meu obrigado desde já.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...