A transição espanhola, a saída da ditadura para um modelo democrático, foi considerada, ao seu tempo, uma mostra de sabedoria. Juan Carlos legitimou nela o seu reinado, em especial depois da hábil gestão da tentativa de levantamento militar, em 1981. A nova constituição parecia ter já incorporado, com alguma arte, as diversidades autonómicas. O modo como o novo regime soube lidar com o terrorismo, extremista ou independentista, deu do país a imagem sólida, impressão que a integracão europeia e o sucesso económico confirmariam. A Espanha foi uma imagem de sucesso.
O desenho do espetro partidário parecia acompanhar a normalização. À esquerda, os socialistas do PSOE haviam, com realismo, abandonado as bandeiras mais radicais, convertendo-se à NATO e projetando no país uma agenda “business friendly”. À direita, gerindo a herança, mais ou menos ambígua, do seu passado franquista, Fraga Iribarne, o galego que fora ministro de Franco, criou um Partido Popular que, não se afastando de uma matriz bem conservadora, parecia cultivar uma modernidade que era muito mais do que um “aggiornamento” oportunista do lado vencedor das “duas Espanhas”.
O PSOE, fruto de erros próprios e de incapacidade de leitura da muito rápida dinâmica da sociedade, pareceu, a certa altura, prestes a cair no destino do PASOK grego ou dos socialistas franceses. O radicalismo geracional deu mostras, por algum tempo, de poder vir a condenar a esquerda a um destino extremado e, por essa via, a assegurar ao polo conservador uma sustentação prolongada no poder.
Afinal, nada disso se passou. Tendo como inescapável pano de fundo a aventura independentista catalã, a sociedade espanhola reagiu num sobressalto identitário de centralismo, que a lógica apontaria como devendo resultar num refúgio eleitoral na direita. Só que o Partido Popular, com um comportamento rígido, incapaz de comportar os sinais de mudança, enquistou-se numa postura que alienou, simultaneamente, alguns dos seus setores mais centristas e, no polo oposto, favoreceu a emergência de um núcleo de extrema-direita que, ao receituário dos saudosos da Espanha dos “señoritos”, soma hoje o fator novidade e a agenda populista e caricatural dos medos xenófobos. A direita partiu-se, nela o PP parece ter deixado de ser o seu polo de referência e Fraga perde, postumamente, a sua aposta histórica.
A Espanha, com um sistema político esfrangalhado, mostrou que é ainda nos socialistas que mais confia. Ao fundo, continua, contudo, a ver-se a sombra da Catalunha.
(Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 1 de maio de 2019)
3 comentários:
A Espanha, com um sistema político esfrangalhado
Não está nada esfrangalhado. Tem um sistema político corretíssimo:
- 1 partido comunista / de esquerda radical (Unidos Podemos)
- 1 partido social-democrata (PSOE)
- 1 partido liberal (Cidadãos)
- 1 partido conservados (PP)
- 1 partido de direita nacionalista / radical (Vox)
Ou seja, 1 partido para cada uma das principais tendências políticas normalmente existentes numa sociedade.
Portugal é que tem um sistema político maluco, com dois partidos comunistas (BE e PCP) e dois partidos que não se sabe se são conservadores se liberais (PSD e CDS).
Esanha está perfeitamente bem. Qualquer espanhol, de qualquer tendência política, tem um partido no qual se pode rever.
Desde que não vire Frente Popular como aconteceu em 1936!
"Aventura independentista". Ah! Esse coração amigo da Espanha nunca desarma. E não é só o coração: a memória também é amiga do Estado espanhol já que se esqueceu de referir - no capítulo dos terrorismos -, os GAL, grupo terrorista organizado pelo Estado para matar os membros da ETA.
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