Há pouco, numa primeira página de jornal, sob o título “Tudo em família”, deparei com algo que, por muito que possa sugerir-se como jornalismo, não passa de uma mera insídia: a criação da ideia de que a carreira profissional dos filhos de gente conhecida, lá no fundo, tem sempre a ver com a notoriedade conseguida pelos pais. Um pouco adiante, dentro do jornal, a coisa aparece adociada com uma nota de chamada mais normal: “Já diz o provérbio popular: filho de peixe sabe nadar”. Porém, no cômputo geral do que ficou escrito, com o título da capa a marcar tudo, a “suspeitazinha” ficou instilada.
Nesse mundo doentio dos mitómanos das teorias da conspiração, do “não é por acaso que”, do “não há coincidências”, do “toda a gente sabe que”, da ideia recorrente de que a corrupção e o tráfico de influências andam hoje aí por todo o lado, de tanta gente frustrada com o quotidiano de si e dos seus, aberta ao despeito pelo sucesso alheio, o efeito ficou conseguido. E, claro, para um leitor, nada é mais cómodo do que deparar com uma notícia que conforta os seus preconceitos. Depois, no conjunto de casos citados, alguém virá pescar um ou outro tido como suspeito, como argumento generalizador para lançar lama sobre todos os restantes. E a nenhum foi dada a hipótese do contraditório para poderem dizer a sua parte da verdade.
Há sempre, neste tipo de artigos, uma inescapável componente de apelo à inveja, um dos mais medíocres sentimentos comuns da espécie humana. Por detrás da revelação escandalizada das ligações pais-filhos, tenta-se sempre sedimentar, de forma implícita, a sugestão de que, não fora o destaque dos pais, aos respetivos filhos a vida não teria corrido tão bem, que o sucesso destes se deve, essencialmente, à saliência pública dos primeiros.
É óbvio que não é possível negar que, algumas vezes, isso pode ter ocorrido. Por essa razão, sempre entendi importante que fosse denunciado, alto e bom som, quem usufruiu de “cunhas” ou de empurrões profissionais indevidos. Mas, atenção!, sempre devendo prová-lo, caso contrário ficamos no mero campo da difamação, que hoje tem pasto adubado na “cultura” das redes sociais. O “achismo” e a conversa de café, dos que “ouviram dizer que”, não passam disso. De intriguistas e difamadores.
O tipo de insinuações como o que decorre da notícia de que acima falei é profundamente injusto para filhos ou filhas de gente com algum nome público, mas que subiram na vida exclusivamente por mérito e pelo seu valor pessoal, que têm uma confirmada e reconhecida qualidade própria e que até, algumas vezes, chegaram mesmo a ver a sua afirmação pessoal prejudicada pelo “ruído” criado no seu percurso profissional pelo nome do seu progenitor ou progenitora.
Escrevi o que acabei de escrever sabendo bem que este texto não vai bem com o “trend” prevalecente nas redes sociais, que os “likes” hoje não abundarão. Mas é isto o que penso e, para mim, isso é o mais importante.
17 comentários:
Excelentes. É preciso denunciar este ambiente delatório de inveja e mesquinhez que domina as redes e a comunicação social e torna todos suspeitos.
Fernando Neves
100% de acordo!
Ė muito frequente a cunha, claro.
Agora, se funciona, ou são coincidências, os beneficiados nunca saberão e, os outros ficam bem vistos. Também acontece...
Sei de um concurso, já fechado, aguardemos a lista provisória dos candidatos, que, das duas ou três, uma:
- ou o parente já morreu
- ou não tem o apelido
- ou teve muita sorte, que, como sabemos dá muito trabalho
Pois eu não ponho um mas dois, três e mais likes
Neste posto concordo plenamente consigo em tudo o que escreveu. E se há sociedade onde o que aponta tem terreno adubado para prosperar é a Portuguesa, no seio da qual a inveja de cunho negativo é passatempo nacional.
Nem mais!
Por falar em inveja, esta foi considerada por Melanie Klein até algo mais que um sentimento, foi considerada uma especie de terceiro movimento, além dos protótipos do amor e do ódio (derivados da gratificação e frustração, respetivamente), que se entronca a partir da perceção da discrepância de poder entre a criança pequena que descobre o outro e o adulto, surgindo um "desejo" destrutivo face a esse poder cobiçado, mesmo quando gratifica. Tal movimento deverá sucubir à descoberta do que é ser amado, quando não sucumbe temos, então, uma pulsão de desqualificar ou mesmo de destruír arbitrariamente, independentemente da qualidade das coisas ou das pessoas.
Vou por "like"!
Sr. Embaixador,
Acredita que os filhos dos ditos em questão têm as mesmas oportunidades que os filhos dos canalizadores, sapateiros, professores, enfermeiros, estivadores,...partindo de uma base igual de formação? Eu não.
O Sr. Embaixador só pode estar a gozar com o pagode. Então parte dos empregos de consultoria, de assessoria, de secretariado etc. todos de confiança politica que pululam pelos ministérios, pelas secretarias de estado, pelo parlamento, pelas camaras municipais e até pelas juntas de freguesia são escolhidos como?. É preciso fazer uma lista com nomes?
O acesso do filho do amigo, ou do conhecido de um familiar, ou até de um nome de família sonante que conhece o primo da tia do vizinho da irmã da sogra, faz parte de uma cultura muito nossa de ajuda ao próximo e da cunhazinha, sem maldade.
Quem não o fez? Ou pelo menos pensou? E quem o não faria se tivesse na mesma situação?
É um conceito muito Português e não vai acabar assim tão facilmente.
Mais grave é a manutenção destes “tachos” quando comprovadamente se constata a incompetência e nada se faz. A manutenção de incapazes onde não pertencem ou não merecem potencia as desigualdades e condiciona o mérito dos que o têm.
O resto é inveja como diz. Mas ela existe dos dois lados da questão.
Um abraço
Se podemos dizer que o acesso à escola é hoje, nas sociedades democráticas, mais igualitário, sobretudo o acesso ao ensino superior, não podemos ignorar que ainda estamos longe da igualdade das « chances » para todos.
A igualdade de oportunidades é uma visão de igualdade que visa garantir que os indivíduos tenham as mesmas oportunidades, as mesmas oportunidades de desenvolvimento social, independentemente da sua origem social ou étnica, género, meios financeiros dos seus pais, seu local de nascimento, sua convicção religiosa.
Vivo numa sociedade, a sociedade francesa, que o Senhor Embaixador conhece bem, onde a mera igualdade dos direitos não corresponde sempre à equidade do tratamento. Implica que as diferenças ligadas ao meio de origem sejam neutralizadas.
Tendo dirigido uma empresa de 300 colaboradores, durante anos, constatei por vezes, que fui eu que, talvez ou certamente por causa das minhas convicções ideológicas da juventude, impunha aos responsáveis de serviços quando contratavam alguém, de dar uma “chance” igual àqueles candidatos que, com os mesmos diplomas e capacidades, tinham um nome ou cor de pele que os desfavorecia. Mesmo por vezes a nacionalidade!
Numa sociedade liberal como a nossa, se a igualdade das oportunidades não é acompanhada de medidas concretas, pode constituir um acelerador das injustiças sociais e fazer cair sobre o indivíduo só, a responsabilidade do seu destino.
Tendo dito isto, a “cunha” de classe e mesmo partidária ainda tem muito futuro na nossa sociedade.
Ora Sr. Embaixador não lance fumaça...
Temos casos interessantes de oportunidade e mudança com reconhecimento de mérito em Portugal como ser embaixador sem um nome familiar sonante. Mas atenção, são excepção ...
Portugal não tem uma cultura de promoção do mérito (sinal da sua pobreza crónica) e em períodos normais de carência as fileiras do poder organizam-se e controlam o elevador social. Primado do mérito , na maioria das vezes discutível.
É interessante constatar que o mesmo argumento da ¨inveja¨ que é utilizado pela clássica direita possa também ser utilizado pelos novos vencedores da vida
Ó Senhor Embaixador, deixe-se disso, tenha dó… a sua energia e indignação talvez ficassem melhor dirigidos para uma das características fundamentais da portugalidade: o nepotismo e a cunha, coisa muito escassa quando se trate do pedreiro e sua prole. Os filhos d’algo estão sempre melhor protegidos no seu futuro. Não confunda a regra com a exceção.
Sei de muitos, porque não se cansam de o repetir, que, as suas vidas foram uma série de circunstâncias felizes, nunca pensando muito no assunto, assobiando e rindo.
Sim falo de homens, as mulheres nunca dizem isto.
Há uns anos lembro-me que era mais ou menos proibido um aluno frequentar a turma onde o pai ou a mãe fossem professores !!! Para não se pensar que o aluno seria previligiado ( ou não ) ! Hoje não sei se ainda existe esta regra ...
Recomendar o filho ou filha para um determinado emprego só será indigno se o rebento em questão fôr um zero à esquerda e mesmo assim venha a obter o lugar . Mas se na verdade esse jovem fôr normal , brilhante , etc ? Qual é o mal ? O “avaliador “ é que deve ponderar
e decidir . E o pai ou mãe aceitarem essa decisão ...
É porque nos tempos que correm só os filhos dos boys estão na ribalta e isso também é pouco louvável . Serão esses jovens melhores que os outros ? Ou só serão mais oportunistas , como os seus progenitores !!!
Acredito que Jerónimo de Sousa não tivesse tido sequer a ideia de falar ao presidente da Cãmara comunista de Loures no seu genro, coitado, desempregado há três anos. Mas alguém duvida que esse facto não tivesse chegado aos ouvidos de Bernardino Soares?E que este tivesse dito lá na Junta: arranja aí qualquer coisa para o rapaz, nem que seja mudar lâmpadas?
E assim, a ser verdade o que vem em jornais e televisão, há alguém beneficiado por ser da família de uma pessoa conhecida. A ser verdade, nódoa ainda maior por ser originária de um partido tido por impoluto.Este é só um exemplo. É que nem é preciso que família ilustre fale ou peça.Basta o «nomezinho bendito». Luís de Camões apontava já esta pecha nos portugueses: [devem alcançar] « as honras imortais e graus maiores/ não encostados sempre nos antigos/ Troncos nobres de seus antecessores» Cant VI
Gostei de ler esta versão de um Rio de Janeiro pouco vivida na área turística. Excelente. Obrigado.
ó Embaixador, esse seu comentário é tipico de gente que embora se dizendo PS, sempre viveu em meio burguês, com gente que sempre olhou a esmagadora maioria das pessoas como numero. Até lhe fica mal vir defender os filhinhos dos coitados dos burgueses. As portas para eles já estão escancaradas mesmo antes de nascerem. Olhe como esta gente faz fortuna, com o dinheiro que nos roubam de empréstimos patrocinados por politicos e banqueiros criminosos que deviam estar como escravos do povo no GUlag.
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