Há dias, o ministro dos Negócios Estrangeiros português referia que o desafio do Brexit conduziu a um reforço de posições entre os restantes 27 e que isso funcionou como fator de unidade da própria Europa. Sublinhou ainda que não houve “trânsfugas” entre os parceiros, nenhum deles se terá sentido tentado a quebrar a unidade e que isso terá sido essencial para o bom resultado da negociação conduzida por Michel Barnier.
Augusto Santos Silva tem razão. Foi isso mesmo que aconteceu, mas que podia não ter acontecido se os poderes nacionais mais importantes na Europa a 27 não tivessem cuidado de manter, desde muito cedo, as fileiras cerradas. Lembremo-nos apenas que Londres deu sinais, no início de toda esta novela, do seu interesse em “bilateralizar” certas questões. Em alguns dos 27, setores relevantes chegaram a movimentar-se junto dos respetivos governos, receosos daquilo que poderia resultar do Brexit, fazendo aberto lóbi sobre certos dossiês, nalguns casos, ao que se sabe, por discreta sugestão de Londres. De uma forma mais estruturada, isso também se processou junto da Comissão Europeia. Sem resultados, que não fosse ajudar a construir a narrativa comum que Bruxelas levou para a mesa negocial. O que foi excelente.
Devo confessar que esta atitude firme dos 27 me surpreendeu, que não estava à espera de uma posição tão unida. Tendo testemunhado e participado em alguns outros processos negociais europeus, raramente vi coisa similar. Ainda bem que a Europa começa a trabalhar “a sério”. Isso confere-lhe credibilidade e respeito. E revela que o seu braço executivo, a Comissão Europeia, tem uma qualidade técnica que permite, quando suportada por uma vontade política clara do “backseat driver”, o Conselho, garantir uma boa defesa dos interesses comuns. Num ambiente internacional tão imprevisível, com os EUA numa deriva na sua cultura externa em matéria de comércio e serviços, e que não deixará de influenciar outros atores, essa segurança é hoje um inestimável valor. A procissão ainda vai no adro, mas podemos prever que o executivo bruxelense terá condições para vir a recordar este exemplo e fazer notar que as insuficiências que a Europa integrada mostrou no passado devem-se menos à Comissão e muito mais às conjunturais divisões entre os Estados membros.
A negociação do Brexit teve um outro interessante efeito na Europa a 27. Recordar-se-ão de que, nos primeiros tempos, se instalou algum desespero pelo facto de estarmos em “mares nunca dantes navegados”. Sendo uma “première”, alguns efeitos do divórcio britânico eram basicamente imponderáveis. O curso da negociação, contudo, veio criar um progressivo ambiente de acalmia. Houve tempo para segmentar e refletir sobre as reais consequências da cisão, alguns exageros iniciais, em matéria de impactos potenciais, foram redimensionados e assistiu-se à serenidade a instalar-se progressivamente. Ora isto não deixou de ter consequências moderadoras no ambiente dramático que inicialmente se estabelecera. A Europa foi-se preparando, progressivamente, para todos os cenários. E, ao dar disso mostras aos mercados, como que atenuou, por antecipação, um excesso de reação destes, mesmo face aos prognósticos mais adversos.
O Brexit está longe de ter acabado. Eventualmente, mesmo muito longe. Não obstante a sua obstinação, Theresa May vai ter uma imensa dificuldade em “vender”, na Câmara dos Comuns, o pacote que negociou. Uma conjugação impressionante de vozes críticas, oriundas das suas próprias fileiras, por razões muito diversas, somando-se às da oposição trabalhista, pode tornar impossível que obtenha um voto favorável no dia 11 de dezembro. Nesse cenário, muito plausível, o que a seguir virá está muito pouco claro.
A bola está agora do outro lado da Mancha. Aqui ou ali, não é de excluir que possa haver um retoque no que foi negociado. Mas nada de essencial. Se há poucas esperanças de que o Brexit venha a ser um sucesso para ambos os lados, é justo que o lado que tem mais hipótese de sair menos prejudicado sejam os 27. É que não foram eles quem criou o problema.