sábado, setembro 15, 2018

Europa em dois tempos


Foi num verão, logo no início dos anos 70. Eu andava à boleia pela Europa. Vinha de uma semana em Amesterdão. O Dam era então uma espécie de Meca em forma de praça, onde, ao fim do dia, encontrávamos quase todo o mundo que queríamos conhecer e as vidas que, sem o saber, queríamos cruzar. Na véspera, tinha dormido numa pousada da juventude em Bouillon, no sul da Bélgica, perto de Namur. Agora, estava noutro meu objetivo, bem perto, o Luxemburgo.

Depois de me instalar no “auberge de jeunesse”, bem lá no fundo da cidade (passei lá há pouco tempo e ainda existe), fiz o reconhecimento turístico habitual e jantei, muito cedo, na pousada. 

Ia a começar o caminho de subida de Pfaffenthal para a cidade alta (o útil elevador só surgiu bem mais tarde), para por lá testar a noite, quando passei num largo, junto a um café e ouvi falar português. Parei, dei boa tarde (ainda não era noite) e entrei na conversa dos quatro ou cinco compatriotas, sentados num muro, com cervejas na mão. Eram operários da construção civil. Viviam, disseram-me, numas camaratas ali perto. Deitavam-se muito cedo, porque a jornada abria na alvorada, e por lá se alojavam também italianos, que eram muitos mais e de quem se queixavam, pelo barulho e falta de higiene. (A certa altura, porém, passou um italiano e entraram todos numa algaraviada amigável de gestos e palavras soltas). 

Notei que começaram a revelar-se menos abertos quando, por mera curiosidade e para alimentar conversa, lhes perguntei de onde eram, como tinham vindo, há quanto tempo, coisas assim. Distraído, não percebi logo que, muito provavelmente, todos tinham vindo “a salto”, alguns fugidos à tropa e com situações complicadas. Eu, diletante, ao responder à questão de como ali chegara, disse-lhes que andava à boleia. Olharam para mim de soslaio. “Veio de Portugal à boleia?”, interrogou-me um deles. Manifestamente não acreditaram, quando contei que já andava naquilo há umas semanas, que tinha estado em Paris, tinha ido à Dinamarca e à Alemanha, etc. “Mas você vem à procura de trabalho?”. Disse-lhes que não, que só andava a passear. “Sem carro?” A certo ponto, notei que se olhavam entre si, já desconfiados de quem eu afinal era e o que pretendia ao tê-los abordado. Percebi o incómodo, arrumámos cordialmente a conversa e eu fui à vida, imaginando o que teriam ficado a magicar sobre aquele português, que usava pêra, a dar-se ares de intelectual e com uma conversa estranha. Aprendi bastante nessa curta troca de palavras, que, como vêem, me ficou na memória por este meio século.

Voltei a lembrar-me, há pouco, do episódio no Luxemburgo com esses portugueses, mas em especial dos seus parceiros italianos das camaratas, ao ver, na net, a altercação entre o filo-fascista ministro italiano do interior e o ministro dos Negócios Estrangeiros luxemburguês. Este último, farto de ouvir o discurso anti-imigrantes que punha em causa a política de abertura do seu país, não se conteve e, com rudeza justificável, lembrou, interrompendo a litania de Salvini, que o Luxemburgo recebeu no passado muitos italianos que para lá iam à procura das condições de vida que a Itália lhes não dava para alimentar os seus filhos. E terminou com um sonoro: “Merde, alors!”. E, minutos depois, saiu da sala e não compareceu à “foto de família”. 

Grande Luxemburgo!

(Vejam o episódio aqui)

15 comentários:

Anónimo disse...

Será sensato comparar as à altura migrações -o "acolher, empregar e assimilar"- tudo a ocorrer adentro de Países europeus com povos da mesma raíz cultural, religiosa e étnica, ... com o que se passa agora, com estes migrantes cultural, religiosa e etnicamente díspares, clara e reconhecidamente inassimiláveis?.
Óbviamente tudo com claros travos de uma invasão exoprogramada, metodicamente executada que nada tem do tipico servil, espontâneo migrante ?.
Simplesmente, alguém está interessado em destruir a cultura e o espaço europeu. E está a conseguir.

Joaquim de Freitas disse...

Conheço muito bem o « espírito » da história que conta, Senhor Embaixador. A região de França onde resido, foi um pouco como o Luxemburgo noutros tempos; aqui os franceses receberam milhares de italianos antes e após o fim da guerra. A maioria por cá ficou e constituem a mais importante colónia italiana de França. A proximidade da Sabóia e da Itália ajudou.
Não impediu que durante uns anos esta presença maciça de italianos desencadeou uma reacção violenta na região, indo até aos atentados. Claro que muitos franceses não tinham esquecido a “ocupação” italiana da região pelos soldados do Duce, substituídos mais tarde pelos alemães. Substituição na qual os franceses perderam, porque as coisas passaram a ser muito mais violentas com os boches…O que deu origem à resistência do Vercors e algures…

O problema que se põe a Salvini é o número crescente de imigrantes que desaguam na Itália, e a “qualidade” destes! Os migrantes do Médio Oriente, Afegãos, Iraquianos, Sírios, Líbios, Somalis, e outros africanos, não são os italianos do Luxemburgo. Como não são aliás os Portugueses, que não criam os mesmos problemas. Estas migrações não são comparáveis.

Sou pela abertura das fronteiras a todos estes desgraçados que o Ocidente, com as suas guerras estratégicas lançou para os caminhos da Europa. Mas quando o nível de saturação dum povo é atingido, mesmo independentemente da mentalidade dos migrantes, da sua religião e da sua estrutura cívica, posso compreender que o “ras le bol” possa agir no subconsciente dos povos que vêm com preocupação mudanças significativas ao nível da segurança nas ruas, mesmo quando as condições de acolhimento estão reunidas. Este é o caso da Suécia, onde tenho familiares que confessam agora uma certa ansiedade quando saem de casa à noite nas grandes cidades. Hà muitos anos, o primeiro-ministro Oläf Palm tinha sido assassinado nas ruas de Estocolmo, por um imigrante.

Aqui em Grenoble, onde vivo, houve uma degradação constante da segurança nas ruas desde a chegada dos primeiros imigrantes do Médio Oriente, com a excepção dos cristãos iraquianos que fugiram a Daesch, que se mantêm ordeiros, sob a protecção das organizações religiosas que os acolheram.

Imagino o que vai acontecer no dia em que Erdogan abrirá as portas dos campos onde mantém alguns milhões de refugiados do Médio Oriente, que ele guarda, em troca de alguns milhares de milhões de euros recebidos da EU.

O problema dos migrantes é e será explorado pelos fascistas de toda a Europa, e não somente da Alemanha, da Itália e da Hungria, para atingir outros objectivos. E as próximas eleições europeias vão dar o sinal. Mas é certo que o problema está longe de ser resolvido enquanto as fontes que alimentam este êxodo não forem estancadas pelo Ocidente. Mas nem os EUA nem Israel se consideram parte do problema.

Anónimo disse...

Grande Salvini!

O "filo-fascista" que mais não fez do que expressar bom senso e... senso comum.
Chamou a atenção para a exploração de que os imigrantes são alvo ("escravos") e chamou a atenção para o problema demográfico da Itália.

Mas a Esquerda, a humanista Esquerda sempre adorou um bom bairro de lata cheio de oprimidos. Afinal de contas, é muito aí que tem o seu mercado. Imigrantes desejados e integrados não interessa.

Já o hipócrita do Luxemburgo (que lá teve os seus 15 minutos de fama), não referiu que os imigrantes italianos eram europeus, brancos, cristãos, vizinhos e... desejados por um micro-país necessitado da sua mão de obra para crescer, enquanto que os imigrantes/invasores que "atacam" a Itália são autênticos alienígenas, indesejados e desnecessários!

Portou-se como um cavalheiro, o Salvini. E se o italiano tem expressões para pôr na ordem o grosseirão luxemburguês!

Anónimo disse...

O camarada das 10:49 pode justificar a frase

"que "atacam" a Itália são autênticos alienígenas, indesejados e desnecessários!"?

Quais são os elementos que tem que o levam a fazer tal afitmação?

Grazie mille




Anónimo disse...

Resta saber se os italianos luxemburgueses consideram os seus vizinhos luxemburgueses-turcos como seus concidadãos e vice-versa.

E também se eles proprios se consideram luxemburgueses.

Ha não muito tempo a comunidade portuguesa luxemburguesa foi acusada de nada fazer para se integrar; se bem me lembro havera um artigo de FF sobre o assunto.

Dos meus contactos fiquei sempre com a ideia que parte do revivalismo lusitano das comunidades portuguesas é muito salazarento, muito mais ao género da exposição de 40, que das recolhas do Giacometti. Como se para muitos Salazar tivesse sido uma grande pessoa, ainda que por cause dele ( e de outros) se tivessem que se por a andar. Nunca percebi isso muito bem.
Talvez a falta de politicos sérios.


"Des Portugais en Europe du Nord: une comparaison France, Belgique, Luxembourg."


Link desta tese

Anónimo disse...

Lido.
Despacho:

AS migrações como se diz hoje sempre as houve.
As invasões barbaras do Império Romano foram mais migrações para procurar o estilo de vida dos romanos do que guerra de conquista.
Estas migrações de agora são um caso muito sério por trazerem gentes com alguma ideologia e disciplina diferente da europeia. Vejam-se as fotos da ordem com que se deslocavam nas primeiras invasões.
Um dia que se organizem melhor, no loal onde vivem, poderão querer aplicar o seu estilo de vida em toda a parte.

AV disse...

Resposta adequada e bem merecida!

Joaquim de Freitas disse...

Podemos e devemos focar o problema da insegurança, ressentido por milhões de cidadãos nas nossas cidades.

Podemos e devemos ter em atenção as razoes de tais êxodos de populações, isto é, as guerras geo estratégicas do Ocidente, decretadas por uma potência que nem é europeia, mas que os interesses económicos e militares levam a interferir nas nossas nações. O facto mesmo de dirigir unilateralmente a aliança militar que nos impôs desde o fim da última guerra mundial, é uma explicação da sua maneira de agir.

Mas há mais.

Ao longo do século XX a pobreza passou de focos locais e circunscritos a algumas nações a um fenómeno de escalas globais, sobretudo, a partir do último século, revelando um desencanto radical do mundo.

As sociedades que conhecemos e que ajudamos a consolidar foram erigidas pelo trabalho humano alienado, no bojo da prática de denominação sobre os que vivem do trabalho (dominação, sujeição, coisificação) das relações sociais, onde se consolidou um modo de produção no qual o processo de trabalho passou a ser um veículo do processo de valorização do capital, exclusivamente.

Temos de admitir que o capitalismo se orienta para o crescimento, segundo que a acumulação é independente de consequências sociais, como a proliferação massiva da pobreza e da miséria, e, as políticas públicas que se confirmam mais como paliativas do que emancipadoras.

Quando leio o ultimo Plano Contra a Pobreza de Macron, desta semana, trata-se bem de paliativos e não de soluções.

A globalização é mais do que o fluxo de dinheiro e mercadorias - é a crescente interdependência das pessoas em todo o mundo. Os migrantes que batem às nossas portas são também um resultado da globalização. Vindo acrescentar-se à nossa própria miséria, a insegurança é exponencial.

A caixa de Pandora está aberta, e o inferno de cada dia sendo reinventado em cada nação que fica mais empobrecida, no alargamento da miséria e da pobreza.

Assistimos à brutal inexistência de respeito, à constante injustiça social, à desigualdade social, que geram o medo e a insegurança.

manuel m. disse...

O MNE do Luxemburgo é um humanista, procurou recordar ao italiano um pouco de história. Como os itlºs foram acolhidos e integrados no Lux.em tempos difíceis a seguir à 2ª Gª.

Foi uma justa intervenção do Asselborn

Mas o itº não ouve, só faz demagogia.

Temos de lutar por uma vitória das forças democráticas nas eleições europeias.

Anónimo disse...

Caro de Freitas ore pro nobis, homem!

parece tão animado como os benfiquistas que vão defrontas o Bayern!...

Anónimo disse...

Note-se que o assunto envolvia um italiano e um luxemburguês, por causa de uma coisa envolvendo africanos e os americanos e os israelitas já foram metidos ao barulho...

Joaquim de Freitas disse...

Manuel M.15 de Setembro de 2018 às 21:59


"Temos de lutar por uma vitória das forças democráticas nas eleições europeias."


As forças democráticas ? Quais forças democráticas ? As que criaram o caos no Afeganistão? No Iraque, na Líbia, na Síria? E que provocaram o êxodo de milhões de homens, mulheres e crianças para o Ocidente? Que não sabemos hoje como acolher, alimentar, educar, alojar e pôr a trabalhar?

Se Portugal se situasse onde se situa a Sicília ou a Andaluzia? Que faríamos destes desgraçados? Acolheríamos toda a gente? Ou chamaríamos a Europa ao socorro? Chamamos a Europa por menos que isso…Chamamos a Europa para colmatar as brechas da corrupção, dos desvios de toda a espécie, das evasões fiscais, das despesas inconsideradas, para as quais não tínhamos um cêntimo na caixa…

Anónimo disse...

Para quem consiga ler:

http://www.agoravox.fr/actualites/europe/article/migrants-207685

Anónimo disse...

Pensemos na necessidade e desespero dos romanos ao construirem o muro de Adriano, que ainda existe.
A muralha da China etc. etc.
Não somos os únicos na História que fomos invadidos em grande escala.
Será areia de mais para as nossas caminhetas.
Se for tamos lixados.

Anónimo disse...

Em Portugal existem milhares de cidadãos que tiveram que "retornar" de África porque "África é para os africanos". Tudo bem. Fez escola. Basta ver o que hoje em dia ocorre (oficialmente) na multicolorida África do Sul.

Entretanto um interessado Dalai Lama afirma claramente que "I think Europe belongs to the Europeans...". Claro que o budisto tibetano vigora poucochinho na Europa, mas.

Ora aí está, uma bota difícil de descalçar por muito boa gente que segue, religiosamente, alguém que decorou, desde pequenina, uma das versões de Marx. A versão que lhe puseram diante do arrebitado nariz.
Somos todos iguais, não é?.

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