terça-feira, agosto 21, 2018

O video de Centeno


Acho ridícula, embora talvez inevitável, a polémica em torno do video de Mário Centeno. 

O presidente do Eurogrupo é o porta-voz dos ministros das Finanças da zona euro, fala em nome de todos e, naturalmente, repercute, naquilo que diz, o sentimento maioritário aí prevalecente. E o que Centeno disso foi exatamente aquilo que é a perspetiva dominante nos governos da Europa do euro, coisa de que ninguém tem a menor dúvida - a haver, teriam já surgido colegas de Centeno a reclamarem do que ele disse. E, ao que parece, ninguém se pronunciou.

Estranho seria que Centeno, falando em nome de um Eurogrupo que o elegeu como presidente, viesse a repercutir uma orientação desviante desse sentimento comum. Repito: não foi o ministro das Finanças do governo português que ali se pronunciou, foi o presidente do Eurogrupo.

Mas não haverá alguma contradição entre ser-se ministro das Finanças de um governo que contestou a austeridade e ser-se, simultaneamente, presidente de um Eurogrupo que a tem por doutrina? Semanticamente, e não só, claro que sim. Foi aliás a mesma contradição que esteve subjacente à própria candidatura de Centeno ao cargo.

Mas se Centeno iria ser obrigado a cair nessa inevitável contradição, por que razão o governo português o candidatou? Porque era importante ter alguém no topo do processo decisório do Eurogrupo que pudesse ser a cara de uma “outra” forma de levar à prática, com êxito por todos reconhecido, o cumprimento dos compromissos que o Estado português, através da sua classe política, tinha assumido na Europa - decorrentes dos “leftovers” do memorando com a “troika” (assinado pelo PS, com acordo do PSD e do CDS) e, depois, do Tratado Orçamental (aprovado na AR pelo PSD, PS e CDS). A menos que alguém duvide que o governo de António Costa conseguiu cumprir as regras de Bruxelas “de outro modo”, de uma forma bem diversa daquela que o executivo anterior vinha a fazer! E quem, no desenho e implementação dessa nova política, foi substancialmente diferente de Vitor Gaspar e Maria Luís Albuquerque, ao ponto de conseguir ajudar António Costa a assegurar o apoio parlamentar de partidos que olham a Europa de viés? O nome, recordo, é Mário Centeno.

E vale ainda a pena notar que, com Centeno, mas também com Moscovici, o diálogo do Eurogrupo e da Comissão Europeia com a Grécia assumiu uma forma bem diferente, quanto mais não fosse no próprio modo de dialogar, daquele que estava a decorrer com Dijsselbloem e com Dombrovskis. Se tiverem alguma dúvida, perguntem ao governo grego!

Ainda uma última nota para o video de Centeno, para sublinhar que ele começa por referir as “lições aprendidas” por todos no processo de resgate da Grécia. Por todos, não apenas pela Grécia. Ora não se aprendem “lições” quando tudo foi bem feito: as lições retiram-se, em especial, das correções assumidas, em face dos erros de percurso cometidos. E Centeno lembrou-o. Schäuble teria gostado? Aposto que não.

Por tudo isso, “kalimera”, Grécia! E parabéns, Mário Centeno.

5 comentários:

Anónimo disse...

Tudo bem. Mas é cada vez mais evidente que o EUro -e toda a filosofia teória e decorrente prática que o sustentam- sobrevive gaças a louvores, ou inuedos, de contorcida lógica.

Centeno na prática apenas -como qualquer outro funcionário devidamente arregimentado em determinado posto- cumpre e desempenha de acordo com os chapéus que assume no momento, qualquer que seja a falta de coerência e contradição exibida. Afinal até é gritantemente duvidosa a própria sustentação teórica em que se apoia.

josé ricardo disse...

Oh, caro embaixador,
ainda bem que o temos a si para decifrar as mensagens do nosso Mário Centeno. Anoto o seu encurvado e anódino esforço. Parabéns.

Anónimo disse...


Sou "cobarde" e não-politizado mas reconheço um belo texto neste post.

É assim, quando se conhece bem os mecanismos de Bruxelas, que se escreve o que se passa neste caso.
A esquerda extrema está cada vez mais a distanciar-se de uma via europeia. QUEREM a revolução a todo o custo e como agora até fazem parte de um governo eeuropeu teem audiência.
Querem ter um Varufakis como ministro das finanças em Bruxelas sem perguntar nada aos parceiros.
Seria o assalto ao palácio de inverno cem anos depois.
É o efeito da geringonça que vamos pagar caro.

Parabéns por este seu post.

António Pedro Pereira disse...

Senhor Embaixador:
Parabéns e obrigado pelo seu magnífico e esclarecedor texto.
Até que enfim que leio uma análise que vale a pena, nesta gritaria patética que por aí ecoa.
Cumprimentos.

Jose disse...

Num país em que o corretês esquerdalho domina, dizer o óbvio é a excepção.

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