O estatuto familiar tinha, no passado, um imenso peso na profissão diplomática. Várias carreiras se fizeram, imerecidamente, à sua sombra. Com a democracia, essa influência, longe de ter desaparecido por completo, atenuou-se bastante e a meritocracia tende hoje a prevalecer na gestão da casa.
Alguns funcionários mais antigos e conservadores eram, contudo, muito condicionados pela sonoridade de certos apelidos, em especial se a eles tivessem associadas conotações aristocráticas, a que certos setores da casa sempre manifestaram uma patética reverência.
Conta-se uma história passada no pátio de entrada das Necessidades. Numa certa manhã, o embaixador secretário-geral do ministério, ”chefe da carreira”, foi surpreendido, ao sair do carro e preparar-se para se dirigir ao seu gabinete, por um canto lírico, bem alto, que saía de uma das janelas das repartições que davam para o pátio. A cena era, pelo menos, insólita. As Necessidades não eram propriamente S. Carlos e não era curial que uma ária se soltasse do lado dos serviços.
O embaixador, que tinha um ar antipático e carrancudo, que se pretendia intimidatório, perguntou ao Matos, o porteiro que, por décadas, geriu a entrada no MNE, se sabia quem era o “cantor”.
Conhecendo o Matos, creio que terá respondido, com a formalidade que lhe era própria: “Saiba V. Exª, senhor secretário-geral, que se trata do senhor doutor (...)” e disse o nome de um colega, que julgo era detentor de um título nobiliárquico, com um nome de família relativamente sonante.
O embaixador, cuja vontade, no instante, talvez fosse de mandar dar uma “rabecada” ao inconveniente intérprete lírico, rendeu-se aos “powers that be” da sociedade e terá comentado, à medida que se afastava, naquele andar enrolado que era o seu: “Bela voz! Tem uma bela voz!”. E saiu para o claustro.
Nunca ouvi cantar aquele nosso colega, pessoa aliás bem estimável. Mas a menos que seja pela graça do trocadilho, posso presumir que a sua qualidade lírica não deveria ser assaz notável, porque, com a crueldade típica da casa, era conhecido nas Necessidades pelo “tenor maligno”...
5 comentários:
Não tinha título nobiliárquico
Ainda hoje lembro o grande tenor Álvaro Malta, no auge da sua carreira, a entrar, cantando áreas fantásticas, na clínica onde era obstetra e onde eu aguardava, muito impaciente, o nascimento da minha primeira filha. Talvez o secretário geral quisesse apenas conhecer quem, na casa, gostava de ópera, para mim o máximo no campo musical. Custa-me muito a querer que quisesse "dar uma rabecada" embora não faça a menor ideia sobre a identidade dos intervenientes.
João Vieira
Como todos nós esse nosso colega, mais velho (e ainda vivo), tinha defeitos - e qualidades. E são estas últimas que convém hoje recordar. Era (e é) um tipo sério. E competente, embora burocrático. Culto, educado e bastante reservado. Um pouco arrogante, mas talvez devido a uma certa timidez. E escrevia bem. Foi alvo (ele e a mulher), em determinado Posto, enquanto Chefe de Missão, de uma atitude inqualificável de má criação por parte do Ministro (MNE) de então, que por ali estava de passagem, no aeroporto, um petulante, com imensos rabos-de-palha, preguiçoso, mas que o à época Poder Político mesmo assim decidiu premiar (falo do Ministro, claro) com um Alto tacho em Bruxelas. E era capaz de dar a cara para defender um seu colega, o que nem sempre, muito pelo contrário, sucede na Carreira. Tinha bom gosto nas escolhas de Ópera, para quem é apreciador. Não foi tenor, mas foi Embaixador. E embora monárquico, ao contrário de outros, não era reaccionário. Hoje goza sossegadamente a sua descansada reforma.
Ao Anónimo das 16.34. De nada do que escrevi se pode depreender que me afasto da avaliação profissional e pessoal sobre o colega em causa. Não lhe apontei o menor defeito, não disse que era reacionário (leu bem o post ou quis ler o que lá não estava?), nem produzi o menor comentário sobre a sua personalidade. Trata-se, como disse, de um colega estimável, que aliás conheci pessoalmente e que me merece toda a consideração. Ele foi apenas o pretexto para uma pequena história, uma “anedocte”. O que quis sublinhar no texto, para além da graça do epíteto (que é do conhecimento das pessoas dessa geração), é o tropismo, à época comum em certos setores da casa, de uma certa reverência ao estatuto social dos funcionários. Aliás, a historieta não tem nomes, nem sequer do sinistro secretário-geral que, esse sim!, merecia ser devidamente qualificado. Mas ainda é Natal...
Nessa a casa o estatuto familiar terá ainda o mesmo peso que o recente estatuto de um anti-fascista certificado, na actualidade?
Se for assim, o que se tem de arranjar em Portugal, é um qualquer estatuto para se viver tranquilamente a sua vidinha e anular-se a incompetência possível.
Já nada me espanta.
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