terça-feira, agosto 30, 2016

Um chá na Lapa



"Quatro e meia dá ou a essa hora ainda estarás a fazer um folhetim para amanhã?" Na gargalhada do David Damião estava toda a nervoseira que, nesse último dia de um pouco querido mês de agosto, atravessava S. Bento. O Forum TSF não correra bem, com os falsos "reformados & pensionistas" das centrais de comunicação a zurzirem o IMI das residências paroquiais. Fogos, governantes a voar com "vouchers" da Galp, a saga da Caixa, um presidente cada vez mais ubíquo e exigente, as contas europeias a rasarem a trave - tudo isso arruinara o Verão a António Costa.

"Agora cheira a setembro", escreveu o poeta, mas, para Costa, o mês que aí vinha não prometia ir ser flor que se cheirasse. A ameaça do corte dos fundos comunitários e as ambições dos parceiros da "geringonça" para o orçamento de 2017, com Catarina a levantar a grimpa e Jerónimo a ir subir a parada no fim de semana, lá na Atalaia, ameaçavam mesmo irritar-lhe de vez o otimismo.

Restava-lhe, claro, a imprescindível ajuda de Passos Coelho, que quando abria a boca oferecia um sopro oxigenado de ventura ao governo. A tirada de Boticas, a desestimular os investidores em Portugal, só não era grave porque estava absolvida pela inimputabilidade política que já se lhe colara à pele.

Ferreira Fernandes estava perplexo. O convite que acabara de receber para ir nessa tarde a S. Bento, para falar, "com urgência", com Costa, não deixava de ter algo de estranho. Logo ele que, neste agosto, se dedicara apenas ao Folhetim, uma crónica política ficcionada, às vezes não tão inóqua como isso, que parece que divertira os toldos algarvios, a começar pelo do patrão, Proença de Carvalho. O David mostrara-se jovial na conversa, mas quase tão críptico quanto ao assunto como o teria sido a Maria Rui, em tempos idos.

Conhecia Costa, ou julgava conhecê-lo. O primeiro-ministro era-lhe simpático, mas a agenda de um jornalista nem sempre coincide com a de um político e, pior do que isso, tem rapidamente de ser retificada quando há sinais disso poder estar prestes a acontecer. Costa era um sedutor pouco óbvio, nada "pushy", apelando à empatia de forma discreta, como quem não quer a coisa...

Apanhou o táxi no Marquês, mas a tarde começou logo a estragar-se quando percebeu que o motorista era um "lagarto" assanhado, que santificava o árbitro do Sporting-Porto e achava que o Adrian Silva merecia "um par de lambadas" por teimar sair de Alvalade. Ora aí estava um ponto comum do jornalista com o político: ambos eram indefectíveis do "glorioso". Ainda pensou mandar uma boca definitiva ao taxista, quando este, ao ver o destino exato da corrida, lhe deu o troco com um "quem faz cá falta é o que viveu aqui até os comunas chegarem!". Mas conteve-se. A sua alma de antigo discípulo do velho Leon Davidovich renascia sempre que era forçado a entrar por aquela casinhota de esquina da Calçada da Estrela, onde, por décadas, se amolhavam os pides de serviço por ali e que, agora, entre outras funções misteriosas, tinha um "bunker" onde os estagiários escalados para as conferências de imprensa das quintas-feiras ouviam os governantes que, num cenário de horror, competiam na falta de telegenia.

No pátio cruzou um beijo com a Clara Azevedo, eternamente de Nikon ao tiracolo, com quem, nos idos de 96, retratara em livro, a texto e imagem, a bela primeira campanha de Sampaio. "Vens para a festa?", lançou-lhe esta, fugidia, a aumentar o mistério. Subiu a escadaria exterior no topo da qual o David o aguardava, junto à sala dos polícias à paisana. Lembrou-se do grande romance que daria a vida do senhor Ferreira (Ferreira, como ele!), o porteiro que permanecera naquele cubículo desde os tempos de Salazar aos idos de Sócrates. Aquele que tudo olhara e, no final, nada vira que se visse para a História.

A Sãozinha, no primeiro andar, introduziu-o logo no gabinete, onde o esperava um Costa de sorriso aberto. Entretido a cumprimentar o primeiro-ministro, demorou uma fração de segundo até recortar o perfil de alguém que se mantinha, ao fundo, voltado para a janela. Não era possível! Era o Marcelo! Que fazia o presidente por ali? Que diabo se passava? Que "festa" era aquela, para utilizar o termo da Clara?

Costa saboreava com deleite o momento, à medida que o presidente, que se voltara, gargalhante, envolvia o jornalista num dos seus inconfundíveis abraços. Marcelo, noblesse oblige, perdera já há uns anos aquele hábito adolescente de puxar pelo braço de quem cumprimentava. Agora, envolvia o ombro de Ferreira Fernandes, conduzindo-o, como se estivesse em casa (quantas vezes fora ali com o pai Baltazar ver o seu homónimo presidente do Conselho), para os sinistros sofás verdes.

Ferreira Fernandes gostava de Marcelo. Não o escondia. Aquele jeito traquina de estar na vida, a autoconfiança feita destino, sempre lhe agradara. E o agora presidente retribuía-lhe. O jornalista não esquecia as palavras que o então, ainda e só, quase-candidato lhe dedicara, na apresentação do livro em que compilara as crónicas do folhetim do ano passado, naquela sala abençoada pelo imenso painel de Almada, agora passada a patacos pela nova "lei de imprensa" - vender o possível, contratar pouco, pagar o mínimo.

Marcelo, claro, tomara conta do instante, estava mesmo imparável, gozando com a época de "transferências" jornalísticas: "Então o Baldaia entra amanhã lá no Notícias, não é? Boa malha! E o André Macedo, ein? Aquela RTP é um "albergue espanhol", um mistério, tem sempre lugar para mais um... E amanhã também vamos ter o David Dinis no Público! Excelente! Bom, conhecendo-o, lá para o fim do ano, já deve estar noutra!" E, com uma sonora gargalhada: "O senhor primeiro-ministro não tem por acaso intenções de mudar o diretor do Diário da República, não?"

Costa rebolava-se de gozo, no sofá pequeno mais próximo da entrada, pouso permanente de Guterres, quando este ironizava que governar era "telefonar e engordar". Já tinham chegado cafés e Marcelo, que ameaçava tomar conta da conversa, percebeu que tinha de passar a bola ao dono da casa. E adiantou, mais sério: "O senhor primeiro-ministro vai explicar porque é que lhe pediu para vir aqui. E também perceberá por que é que eu também aqui estou".

De facto, Ferreira Fernandes ainda não parara de se interrogar sobre a razão do presidente se ter deslocado a S. Bento, para aquela inusitada reunião, quebrando todo o protocolo. Mas Marcelo, como demostrara na antevéspera nas Desertas, era de "premières", dava-lhe prazer fazer um "vêzinho" naquilo que outros não haviam concluído antes de si. Mas como diabo teria Marcelo ali chegado, sem ninguém notar? Quantos saberiam deste encontro? Afinal, pelo menos, dois dos jornalistas na Residência Oficial estavam a par. Mais cedo ou mais tarde isso constaria. E ele também era, acima de tudo, jornalista...

"Caro Ferreira Fernandes, o senhor presidente e eu queríamos fazer-lhe uma proposta." Mau, pensou o jornalista, isto começa a complicar-se. Mas Costa nem deixou cair a bola. "Quero dizer-lhe que apreciámos muito o seu Folhetim de Verão. Mesmo mais do que pode imaginar..."

Ferreira Fernandes olhou de soslaio Marcelo, mas este afivelara já aquele esgar de Estado que soubera criar nos últimos meses, um misto de levíssimo sorriso, quase episcopal, típico do gestor cívico de afetos em que se queria consagrar na História, e um rictus formal de função, que tinha em Cavaco o anti-modelo.

"O que você fez neste mês, meu caro, foi notável: descrispou o país, provando que a política pode conviver com o bem-estar, que não temos de andar sempre "às turras" uns aos outros, que é possível falarmos todos, para além das nossas diferenças".

Marcelo completou, enfático: "Você foi genial, homem! E criativo até dizer chega! Já no ano passado tinha inventado o encontro do dr. Paulo Portas com o dr. António Costa, através de uma porta entre as traseiras da Capela do Rato e a sede do PS. Sabe que eu telefonei ao pároco da capela para saber se a porta realmente existia?" Ferreira Fernandes sabia, mas era um cioso respeitador do segredo de confissão de todos os priores do Rato.

"Ora bem, o que lhe queríamos propor é muito simples: que passe a trabalhar para nós!", rematou Costa. O jornalista teve um baque interior: o que é que aquele "nós" significava? Seria majestático ou a sério - trabalhar para o primeiro-ministro e para o presidente? E "trabalhar" em quê? Ele era um escriba a soldo exclusivo da sua própria liberdade, não vendia a pena a interesses, era conhecido por não passar "recados". O que é que, afinal, "aqueles dois" queriam?

"Você já percebeu, Ferreira Fernandes, que eu e o senhor primeiro-ministro, apesar das nossas diferenças, temos vindo a tentar que o ambiente político do país se distenda. Nem toda a gente ajuda, como já percebeu, mas, pela nossa parte, faremos o que for possível. Ora os seus textos caíram como sopa no mel naquilo que estamos a procurar fazer. Mais: você tem uma capacidade criativa extraordinária, é capaz de desenhar cenários de entendimento insuspeitados, ver muito adiante, onde nós não vemos."

A tirada de Marcelo fora dita com evidente sinceridade. E óbvia simpatia. Mas o jornalista continuava sem perceber onde é que a conversa podia levar.

Foi então a vez de Costa: "O que nós gostávamos de lhe propor é que o meu amigo tirasse uma sabática do jornal ("eu falo com o Daniel", ouviu-se de Marcelo) e se dispusesse a dar-nos, em 'full-time", ideias para entendimentos possíveis, dicas sobre temáticas em que pudéssemos pôr em diálogo setores até agora antagónicos. Coisas criativas, inesperadas! Um banco de ideias, enfim!" (Ouviu-se a risada de Marcelo: "Mais um banco!")

"Claro que ninguém lhe vai pedir para pôr os colégios privados aos beijos ao Mário Nogueira, ou o dr. Manuel Monteiro aos abraços ao dr. Portas", acrescentou o presidente, jovial, franzindo o sobrolho, por um milésimo de segundo, quando Costa fez o aparte jocoso: "Já se viu pior!".

"Pense nisso, meu caro Ferreira Fernandes, pense nisso! Depois se combinarão os aspetos logísticos, com o David e o Paulo Magalhães", concluiu o primeiro-ministro, levantando-se do sofá, simultaneamente, com o presidente.

Ferreira Fernandes saiu atordoado do encontro. Num velho reflexo de clandestinidade, voltou à esquerda e viu-se a subir a Borges Carneiro, remoendo uma imensa perplexidade e com uma vontade imperiosa de tomar, sei lá!, um chá. No topo da rua, entrou nas "Tias" e ali encontrou um amigo, que vive por perto, a quem contou a odisseia que acabara de atravessar. Só que esse amigo não estava ajuramentado para não revelar segredos, como é o caso dos confidentes dos priores do Rato.

8 comentários:

Anónimo disse...

E lá vamos nós...
(pode ser divertido)

Majo Dutra disse...

Não gosto de Ferreira Fernandes.
Esta trapalhada custa a crer...
Será que não conhecem a víbora?!!
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Francisco Seixas da Costa disse...

Ó Majo Dutra! Não me diga que acreditou na minha "inventona"...

Anónimo disse...

Senhor Embaixador

Uma ficção que não deixa de ser uma homenagem ao grande jornalista que é Ferreira Fernandes

José Neto

Majo Dutra disse...

Desta vez, digo que custa a crer que tudo
seja produzido pela sua criatividade, porém, acredito
na sua palavra, pelo que, dou-lhe os meus parabéns pelo dom.
Dias muito aprazíveis, FSC.
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Jose Martins disse...

Senhor Embaixador,
Conheço os dois o David Damião e o Ferreira Fernandes.
Ajudei, em Bangkok, o Ferreira Fernandes em Maio de 1992.
O jornalista telefonou-me do aeroporto de Don Muang que já estava em Bangkok. Ferreira Fernandes tinha a recomendação do director da Tribuna de Macau José Rocha Dinis que eu era um "gajo porreiro" e que o ajudaria na capital tailandesa.
A resposta, pelo telefone, que dei a Ferreira Fernandes: "olhe que a guerra já acabou!"
De facto era assim.
O jornalista produziu trabalho relevante porque além de o levar ao local dos acontecimentos onde morreu muita gente no chamado "Maio Negro", leveio-o a Ayuthaya e ao local onde viveu uma comunidade portuguesa por 256 anos.
Encheu uma página do Diário de Notícias com o título: "O Nosso Homem em Bangkok", que era eu!
Mais tarde voltou a Bangkok com a esposa, perdeu o meu número do telefone e foi em procura dele ao Hotel Tower Inn e aí lho forneceram.
De facto eu era mesmo o homem de Bangkok.
Fomos almoçar a um restaurante cuja varanda dava para o grande rio Chao Prya.
Uma infeliz notícia fê-lo regressar a Portugal.
Seu pai, enfermo, estava hospitalizado.
Bom amigo e aprendi algo com Ferreira Fernandes.
Saudalões de Bangkok
José Martins

OdeonMusico disse...

Extraordinário!

o Jaime S

JS disse...

Hipnótica realidade ficcionada. Um dom.
Escrever.
Obssesiva catarse ?.

25 de novembro