Só quem é de Vila Real de outro tempo sabe quem era o Ramalheda. O nome é "bom" e sonoro. Um dia, andava eu na escola primária, o meu pai disse-me: "Aquele é o senhor Ramalheda". (Faço parte de uma geração em que os nossos pais, referindo-se a terceiros, nos habituavam a anteceder o seu nome de família por "senhor"). Recordo vagamente a figura. O Ramalheda (o senhor Ramalheda) era um industrial de fogos de artifício, sedeado algures próximo de Vila Real. Não havia "fogo" nas festas da cidade ou redondezas que não fosse fornecido pelo Ramalheda.
(Em Viana do Castelo, recordo-me bem, as coisas, durante anos, eram bem mais complexas e o "mercado" funcionava: os Silvas e os Castros competiam pelo fornecimento do produto, numa rivalidade feroz, de que a qualidade do "fogo" só ganhava. Eram três ocasiões. Começava pelo fogo "do jardim", o "fogo preso", no primeiro dia. Quem se lembra ainda do eterno" ciclista", que pedalava "lá em cima"? No segundo dia, tínhamos o fogo "da santa" ou "fogo do meio", saído da ribeira. E, finalmente, no último dia, a "serenata", com "fogo" de barcos no Lima, com a "cachoeira" da ponte a fechar as Festas. Há que ter uma piedade cristã por quem sofre dessa trágica lacuna de nunca ter ido a Viana, às Festas, ver o "fogo". Quem vos diz isto, com toda a independência, é o presidente da "comissão de honra" das Festas da Senhora da Agonia 2016...)
Voltemos ao "vilarrealense" Ramalheda. Um dia do final dos anos 50, um acidente ocorreu nos arredores da cidade, durante as festas de Nossa Senhora da Pena (a "Sedapâna", na linguagem oral comum; era o tempo em que, se alguém colocava muitos faróis "extra" no carro, recebia a graça irónica, na esquina da Gomes: "pareces o arraial da Sedapâna!"). Houve uma explosão na área dos fogos do Ramalheda e uma família inteira morreu, entre os quais um colega meu de escola primária. Eu tinha, creio, 6 anos, e lembro-me do lugar vago que, estupidamente, o professor Pena (mais Pena!) deixou por semanas na cadeiras da escola "do Trem".
Ontem, precisamenfe às seis da manhã, lembrei-me, para mal dos meus pecados, do Ramalheda: uns atrasados mentais de uma qualquer Junta de Freguesia perto de Abambres, decidiram lançar uma série de cerca de trinta morteiros. Às seis da manhã?! Verdade seja que só me acordaram porque eu estava já acordado (não é contraditório, podem crer). 18 horas mais tarde, do mesmo local, pela meia-noite de ontem, veio finalmente, o "fogo". Foram cerca de dez minutos. Que tal? "Tant bien que mal", porque, por mais que me esforce em complacência, os meus "benchmark" continuam fixados nas passagens de ano em Sidney, Rio e no Funchal, no 14 juillet em Paris, no 4th of July em Nova Iorque e, claro, na "serenata" da Senhora da Agonia, em Viana. Mas o "fogo" nos arredores de Abambres lá terminou, como mandam as regras, com uma vistosa "girândola final", seguida dos derradeiros três morteiros da praxe. Como é que eu sei estas coisas? Ora essa! Eu li cedo, do Cortazar, a propósito de coisas bem diferentes, o "todos os fogos o fogo"!
Ainda trabalhará no "fogo", a família do Ramalheda?
6 comentários:
Devo dizer, e bem me custa, que durante muitos anos pensava que o melhor, o mais vistoso, o mais espectacular, o mais longo fogo de artifício de Portugal era o das Festas Gualterianas, « tirado » ali da Penha , em Guimarães! Até ao dia em que fui, para ser completamente “civilizado”, às Festas da Agonia, em Viana do Castelo! Bons tempos da juventude em que o mais “rico” do bando, que tinha um carro, lá nos levava …Um ano, lá para os lados de Barroselas, o carro deu um longo suspiro, e fomos obrigados a dormir (!) no carro. Mas parece que foram “os platinados “, mas como nenhum percebia patavina de mecânica ….
Comeco por "confessar" que sou fanatica admiradora de fogos de artificio excluindo morteiros!Tenho medo, pronto.
Recordo o concurso de fogo de artificio em Macau (1990? 91?) nao sei bem. Portugal concorreu com o material produzido no Norte (Lanhelas? Caminha?)a minha memoria esta algo nublada. Nao me recordo se ganhamos o concurso ou ficamos em segundo lugar mas tenho a certeza que assisti mais que uma noite na baia; nao arredei pe ate ao ultimo foguete.
Infelizmente nunca assisti aos igualmente famosos na Madeira, 14 de Julho, 4 do mesmo e tenho pena.
Ja ganhei o dia. Vou reler Cortazar. Dessa colectanea o primeiro conto "Autopista del sur" e um achado que me deslumbrou nos meus 20 anos. Ja nao releio ha uns 10. E tempo de me voltar a essa autoestrada.
Bom dia com mortdeiros a horas convenientes
F. Crabtree
Eu não ouvi os foguetes às seis da manhã, mas ouvi-os ontem, já noite de descanso. Aliás, tudo justifica, aparentemente, um alegre foguetório, seja a vitória do Benfica no campeonato, a passagem de mais uma eliminatória da seleção de futebol, o Tiago Monteiro... Não temos pistolas, mas temos foguetes.
Um abraço
Do Cortázar só li o Rayuela, essa obra enorme... vou virar-me de novo para aí, de certeza!
Estou a lembrar-me de umas hilariantes "Instruções para Subir uma Escada".
O Ramalheda era no Bairro de São Mamede. Foi algumas vezes pelos ares, que eu tenha recordação foram duas,uma em 78 e a ultima em 84. Mas penso que já tinha ido noutra altura ao ar.
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