Basta olhar um simples mapa para se perceber a importância geopolítica da Turquia. Ao tempo da Guerra Fria, a NATO tinha por lá a sua principal fronteira com o Oriente (a outra era a Noruega), frente à antiga União Soviética. A Aliança Atlântica havia cooptado o país para um “mundo livre” onde as liberdades internas não constituíam uma preocupação essencial, como já acontecera com a integração do Portugal ditatorial de Salazar. Da mesma forma, também não foi impedimento o seu pendor agressivo no caso de Chipre, contra o direito internacional, prolongando uma conflitualidade “congelada” com a Grécia, ironicamente seu parceiro na organização.
A evolução interna da Turquia, onde as Forças Armadas eram o “backseat driver” da vida política, apontou por muito tempo numa direção que parecia aproximar-se dos princípios europeus. A laicidade imposta pelo poder militar, vinda dos tempos de Ataturk, favorecia a consolidação daquilo que parecia ser a progressiva institucionalização de uma democracia sem viés religioso. Na sociedade turca, fazia-se entretanto ouvir um setor favorável ao projeto europeu, no seio uma modernização social e de mentalidades que, por décadas, parecia imparável.
Alguma Europa, contudo, olhou sempre com sobranceria para as ambições europeias da Turquia. No íntimo, muitos responsáveis políticos entendiam que o mais importante era manter o “movimento” de aproximação, para sustentar a ligação do país ao “lado de cá”, deixando para as calendas a formalização de um processo de (improvável) adesão.
A Turquia seguramente que percebia isto e um “faz-de-conta” instalou-se a partir de 1999, com o país a dispensar a pena de morte na sua legislação, para agradar a uma Europa que, à escala global, se assumia como promotora do fim da pena capital (muito embora olhasse para o lado quando alguém se referia aos EUA e, depois, à China). E as negociações para a adesão iniciaram-se.
Erdogan surgiu entretanto no horizonte político, fingindo aceitar a laicização de Ataturk mas abrindo caminho à islamização crescente das instituições. O tropismo autoritário do regime acentuou-se e as negociações de adesão foram “patinando”. Até que surgiu a crise dos refugiados (já agora, que será feito deles, nestes dias trágicos da Turquia?). A Europa, sem cerimónias nem preconceitos, “subcontratou” a Turquia para travar os fluxos que a incomodavam. Com cheques e promessas, Bruxelas (em especial Berlim) mostrou que estava conjunturalmente nas mãos de Erdogan.
E chegamos aos dias de hoje. Que fará a Europa perante a emergência desta “democratura” – uma democracia apenas eleitoral, com contornos evidentes de ditadura? E volto ao início do texto: a importância geopolítica da Turquia sobrelevará os valores europeus?
(Artigo publicado hoje no "Jornal de Notícias")
5 comentários:
Se aceitamos a tese que Erdogan e os oficiais superiores que tinha nomeado manipularam oficiais subalternos para criar um « golpe de Estado »(o Reichstag de Erdogan), que podia ser facilmente esmagado, com o fim de consolidar o seu poder, eliminando todos os seus oponentes, a resposta é SIM, à última frase do texto do Senhor Embaixador, isto é, a importância geopolítica da Turquia sobrelevará os valores europeus.
E qualquer dos dois candidatos à presidência americana estará de acordo com Erdogan.
Isto será melhor para o Ocidente que o risco que as purgas de Erdogan, lhe dê ideias de proclamar a sua independência em matéria de política estrangeira e lhe permita de sair da esfera EUA/NATO para se aproximar da Rússia, a China e o Irão. Esta opção existe.
o seu pendor agressivo no caso de Chipre, contra o direito internacional
Que eu saiba, foi o governo cipriota, dominado por cipriotas gregos (a maioria da população), quem a certa altura decidiu juntar Chipre à Grécia. Foi isso que levou a que a Turquia invadisse o norte da ilha.
Ou seja, quem começou com o desrespeito dos direitos dos restantes foram os cipriotas gregos. A Turquia alteriormente a isso não tinha ambições expansionistas sobre Chipre.
Que eu saiba, claro, mas o Francisco pode saber melhor.
Infelizmente a Turquia já não pode ser considerada uma democracia plena.
Desde o início do seu mandato que Erdogan planeava reverter a laicização do país imposta por Ataturk com o apoio das forças armadas.
A Europa tem um papel importante nessa reversão, pois contribuiu de forma decisiva para que os militares deixassem de ser o garante desses valores laicos, hoje temos o que temos.
Se se for à Turquia verifica-se que as mulheres estão a ser afastadas da vida activa e relegadas para casa. Todos os anos milhares estão a deixar de trabalhar, a fim de seguir as sugestões de Erdogan e do seu partido que acha que as mulheres devem ficar em casa a cuidar da família...
Erdogan tem sonhos de reconstituir a influência do império otomano, mas não creio que tenha a capacidade e os recursos para atingir esse desiderato. A economia turca está a entrar numa fase muito complicada.
Só os néscios não acreditarão que com a Turquia de Edorgan o Ocidente não continuará o “business as usual”. Pois se foi o próprio Reino Unido a nomear a Arábia Saudita, (por favor não se riam), para o Concelho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, preparando-se agora para renovar a nomeação nestes últimos dias, nada há que não se venda, começando pelos “valores da civilização Ocidental”.
Creio bem que a importância geopolítica da Turquia fará a Europa aceitar a autocracia islâmica do Presidente Erdogan, respondendo à sua questão. Escrevi no meu blogue um artigo sobre o tema intitulado "A Turquia do passado ao presente (1919-2016), a União Europeia e a pena de morte", inspirado num comentário que um texto seu, anterior, sobre a pena de morte me suscitou. Cordialmente, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt
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