terça-feira, julho 16, 2013

Os pretos

Na minha infância, em Vila Real, praticamente só havia brancos. O primeiro preto que recordo ter aparecido na cidade foi o Ângelo, um jogador de futebol, depois reconvertido em massagista, que por lá ilustrava a "diferença". Era um homem encantador e educado, que conquistava pelo seu trato humano. Casou com uma senhora branca e, lembro-me bem, isso provocou localmente alguns comentários de desaprovação.

(Por que razão ele escreve "preto" e não "negro"?)

A imagem que, à época, a minha geração cultivava dos pretos era mais de estranheza do que hostilidade. Verdade seja que os livros e as coleções de cromos sobre as raças humanas, então muito populares, mostravam-nos esses outros mundos bizarros e apenas estimulavam uma certa curiosidade antropológica. Os pretos do "Tintin no Congo" não eram muito diferentes, no seu exotismo, do "preto da Casa Africana", que fazia sorrir os passantes. O preto que nos era dado por essas imagens era uma espécie de criança grande, parada no seu tempo mental. Não havia racismo em Portugal? Pois, pois...

(E ele insiste! Escreve "pretos"...)

Depois de 1961, no nosso imaginário juvenil, fomos estimulados  a identificar os pretos com os "terroristas". Para quem hoje não saiba ou possa ter esquecido, lembro que os "terroristas" eram os pretos que "atentavam contra a soberania portuguesa no Ultramar". O facto dos primeiros ataques da UPA (União dos Povos Angolanos), antecessora da FNLA, terem dizimado, de forma particularmente bárbara, muitos civis angolanos (e, para nossa surpresa, também muitos pretos, ditos "fiéis" aos portugueses, isto é, aos brancos), tornou vulgar na comunicação social de então o conceito de "terroristas", logo, de forma simplificada, apodados de "turras". No ambiente jingoísta da época, um preto era um "turra".

(Pior! Agora fala de "pretos" e de "turras"...)

Para dar mostras de abertura, o regime ditatorial português promovia os seus pretos de estimação. Para além do futebol, onde o "4-2-4" era um espaço de convivência inter-étnica que mostrava ao mundo como sabíamos integrar com sucesso o pé-de-obra colonial, a ditadura mostrava alguns dos "seus" pretos, que apresentava ao mundo como a prova provada da abertura do Portugal-do-Minho-a-Timor e da nossa ímpar capacidade de convivência inter-étnica.

Uma dessas caras foi Pinheiro da Silva, que, creio, foi secretário provincial de Educação de Angola e morreu há muito pouco tempo. O que o regime não permitiu que se soubesse através da imprensa, porque não ia bem com a história que pretendia propagar, é o episódio em que o deputado salazarista Júlio Evangelista insultou publicamente Pinheiro da Silva e, perante a reação deste, que se preparava para vingar fisicamente a humilhação, lhe atirou à cara: "Alto aí! Preto não bate em branco!"

(Que história sórdida! Mas, se calhar, é verdadeira!)

Mas a que propósito vem isto hoje, perguntará o leitor? É muito simples: surge a propósito da afirmação de um senador italiano que ontem decidiu qualificar de "orangotango" uma ministra do seu país.

O mundo evoluiu muito. A mesma América que, há escassas décadas, impedia a entrada de pretos em certos autocarros, elegeu Obama. A África do Sul, que não permitia senão a brancos que se sentassem em certos bancos de jardim, revelou Mandela como uma figura ímpar no seu humanismo. E, no entanto, neste século XXI, continuam a subsistir e a ser eleitos atrasados mentais como o tal senador italiano. E a revelarem-se diariamente, no anonimato cobarde dos comentaristas nos "sites", um racismo e uma xenofobia larvares, que mostram que há um Portugal desconhecido (ou menos conhecido) que espera por nós, ao virar da esquina do populismo.

Porque razão utilizei a palavra "preto" e não "negro"? Porque há muito que me convenci que uma postura anti-racista não se demonstra pelo léxico que se utiliza, por muito que alguns puristas nos queiram convencer do contrário. Eu digo, indiferentemente, preto ou negro e desafio quem quer que seja a inculpar-me do menor racismo nas minhas ações. Tenho amigos pretos, ou negros, se quiserem, e a sua cor é uma coisa que só os outros me lembram. A tolerância e a capacidade de convivência com a diferença é uma atitude de vida, de respeito pelos outros e, muito em especial, de orgulho em fazermos parte de um país que, no plano internacional, é hoje distinguido pelas suas políticas de integração das comunidades imigrantes (sabiam?). E onde, contrariamente a outras sociedades mais desenvolvidas, nunca se ouviu um eleito nacional assumir publicamente palavras tão torpes como as do triste senador italiano.

Termino com uma nota menos pesada.  

Sobre a questão do "preto" e do "politicamente correto" (para além do que um dia já referi aqui), recordo uma pessoa que, nos seus primeiros tempos do Brasil, foi um dia apanhada a dizer "Ouro Negro", porque temia que, ao falar em Ouro Preto, estivesse a pisar alguma linha vermelha (ou "encarnada", como o salazarismo subtilmente recomendava e um certo ridículo social lisboeta teima em querer impor).

22 comentários:

Helena Oneto disse...

Estou inteiramente de acordo consigo, Senhor Embaixador.

Anónimo disse...

E, ainda por cima, os orangotangos são asiáticos. O italiano, para além de não ter a noção do que se deve dizer no espaço público (o que ele pensa é lá com ele), também não percebe nada de zoologia e geografia.

Joaquim de Freitas disse...

Se Aimé Césaire e Leopold Sédar Senghor, que escreveram sobre a "Négritude", fossem Portugueses , utilizando o termo "preto" daria "Pretitude" !
Como em Francês, os termos "Nègre" e "Noir", conservam uma certa ambiguidade.
Mas o que é interessante, é de pensar que Darwin não sabia com precisão ,como os seus futuros intérpretes eugénistas ,e que a igreja ignorava na época da" Controvérsia de Valladolid em 1550" que todos os homens que povoam o nosso planeta são da mesma natureza e têm a mesma origem.

Mas imaginemos dizer a Hitler que Jess Owens, que o "indispôs" nos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936 , que no inicio da humanidade era o homem negro ou mais precisamente : o Africano! E que os nossos antepassados nasceram na Africa negra há alguns milhões de anos!

E se os Beatles fossem do seu tempo, de Hitler, ele teria proibido de se exibirem no Grand Reich, só porque o nosso mais antigo antepassado conhecido recebeu o nome de Lucy, porque no momento da sua descoberta os paleontologos escutavam "Lucy in the sky with diamonds"!
E que sem o fenômeno da tectonica das placas, ele mesmo, Hitler, seria um negro!

Negro ou Preto, o homem africano está "chez lui" na Africa! Mas desde há séculos que os Brancos não estão "chez eux" em Africa! Impuseram-se pela força e impuseram o seu modelo, o modelo branco.
Hoje, a Africa continua a ser o filao que se explora e nada mais.

E se hoje na Europa vemos mulheres africanas procurar "desfazer-se" da "negritude" não é só a estética que procuram mas talvez o facto que não se libertaram do passado colonial que os marcou para sempre.

Isabel Seixas disse...

Que Bem Sr. Embaixador...
Há estigmas que a Bem dizer só são desmistificados por pessoas a quem possamos atribuir idoneidade, como é o Seu caso, dada a Sua vivência.

O post é de uma ternura velada ...
Além de que adoro orango tangos.

Anónimo disse...

Sobre o tema, o Senhor Embaixador ganharia em ler o volume, "Pretos de Portugal e do Brasil", escrito pelo seu colega Jorge Preto, uma notável obra de genealogia.

Anónimo disse...

Pretos ou negros são sempre a liberdade dos horizontes da vida de todas as gentes em áfrica, diferentes da "pequenez" dos horizonters mentais e fisicos deste pequeno país!

Alexandre

Anónimo disse...

Nos últimos anos vivi em Angola, na África do Sul e em Moçambique. Trabalhei diretamente com muitos pretos, e essa designação sempre foi utilizada tanto por mim como por eles. Em Angola e Moçambique nunca ouvi um preto dizer que é negro. Nunca.

CF

Anónimo disse...

Jorge Preto ou Jorge Negro?

Anónimo disse...

Joaquim de Freitas ou as consequências do excesso de...
Lucy in the Sky with Diamonds

Anónimo disse...

O racismo é uma aprendizagem da estupidez. Sim, certas vertentes da estupidez também se aprendem. Como a maldade. Numa espécie de cultura do obscurantismo que não é inata.
A diferença entre Preto e Negro, entre "Noire et Nègre", com certeza que existe porque as palavras têm a força que as épocas lhes dão. O vocabulário tem a importancia do politicamente correto ou não... Mas o racismo está antes de mais no sentimento que se sente e transparece por detrás das palavras.
Um dia, um amigo marroquino que vivera na Holanda, na Belgica, na Itália e depois em França comparava as diferenças de racismo nos diversos países e atribuía-lhes degraus de intensidade. Era de opinião que o racismo era mais "raffiné" nos países ditos "desenvolvidos" e mais "pobre" nos outros.
Em Portugal, daquilo que me era possivel observar, parecia-me que o racismo não era muito desenvolvido... Já os portugueses de França, comparativamente, muitos de entre eles "aprenderam" com muita facilidade aqueles sentimentos do racismo "pobre" que não lhes fica nada bem como expressão.
José Barros

Anónimo disse...

Senhor Embaixador este belíssimo post faz- me lembrar aquele diálogo entre uma criança preta/negra e uma outra branca. A branca diz para a preta: "ficou tempo demais e queimou?" Ao que a preta respondeu: " o normal são 9 meses. Tiraram você cru?" Quem é superior a quem?...

Anónimo disse...

o Brasil tem hoje uma população de negros e pardos maior que dos brancos.
93,2 de negros
16,0 de pardos
84,0 de brancos
1,8 outros

Anónimo disse...

O Brasil é tão grande que consegue ter mais do que 100% de população.

arg disse...

pardos.

patricio branco disse...

por vezes criam se medos sociais, politicos, profissionaisa das palavras, cego não diga, diga invisual, manicómio não, hospital psiquiatrico sim, coxo não etc

Anónimo disse...

Há aqui um certo exagero, tendencioso, na caracterização da qualidade racista dos Portugueses, antes e depois do 25 de Abril. Parece-me.

A Srª italiana, que foi insultada, provavelmente, por educação, ou porque percebeu logo que não seria compreendida, não terá respondido desta maneira:

…E o sr. italiano é mentecapto. Eu pertenço aos que evoluem há milhares de anos e vamos continuar a evoluir cada vez mais rapidamente, enquanto que o sr. italiano, azar na natureza, nasceu mentecapto e vai continuar mentecapto para a eternidade…

Anónimo disse...

Porque não por a raça no BI?

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Anónimo das 21.38: Boa!

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Anónimo das 10.46: olhe que não! Olhe que não!

Anónimo disse...

“(…)” há muito que me convenci que uma postura anti-racista não se demonstra pelo léxico que se utiliza, por muito que alguns puristas nos queiram convencer do contrário.

Senhor Embaixador,
Falando apenas sobre esse trecho, os excessos de escrúpulos do politicamente incorreto, não devem ter como contrapartida acharmos que as palavras não têm peso. Por exemplo, “nigger”, nos Estados unidos, é só, e não é só, uma palavra. O cuidado com que utilizamos as palavras, apesar de por vezes excessivo, é apenas um sinal de civilização e antes excesso de civilização que falta dela.
Quanto a "preto" e "negro", já dei por mim a corrigir o meu filho pequeno numa ocasião em que disse "o preto", referindo-se a um colega. Disse-lhe que identificasse o colega pelo nome ou, se quisesse caracterizá-lo pela forma física, que dissesse "aquele menino preto", em vez de só preto. Não faço absoluta questão que substitua por "negro". Mas deu-me que pensar sobre qual a forma correcta e continuo com dúvidas.

António

Anónimo disse...

Destesto esta tendência do politicamente correcto.... eu sou racista e apresento-me junto de todos como racista científico.

Distancio-me, assim, desses pretos, brancos, vermelhos e amarelos que são racistas sem a validação da ciência (só uma razão válida poder-me-ia permitir concluir que um ser humano é superior a outro).

Depois de ter chegado ao meu conhecimento que a distinção genética (ADN) entre um branco e um preto é menor que entre indivíduos da mesma côr mas com tipos de sangue diferentes ... decidi que a minha raiva em relação a um grupo genérico de seres humanos teria de contar com tal validação cientifica.

Pelo que, pertencendo àquele grupo de indivíduos que pode dar sangue a todos mas só receber dos nossos (vulgo, o povo escolhido, raça superior, comummente conhecidos como os gajos dos anúncios do Instituto do Sangue) foi fácil concluir que poderia passar a "odiar" ("não gostar" seria mais correcto porque defendemos a não violência) a maioria dos outros indivíduos com tipo de sangue diferente do meu.

Com tal desiderato criei a Associação “O- (menos) não é negativo, associação interpartidária de Portugal” e aproveito para informar que se encontram abertas as inscrições.

Assim, irmão se quiseres pertencer a uma organização onde o ódio é gratuito mas a explicação é científica, visita-nos em www.“osanguedosnossosinimigosnaoserveparanós.com”….

(Temporariamente estão abertas inscrições a outros tipos sanguíneos, dependente de pagamento de joía e mensalidade).

Poe fim, gostaria de deixar aqui o meu testemunho e agradecer ao Senhor Embaixador Seixas da Costa (desconfio que não seja um dos nossos mas há que abrir excepções) a disponibilidade do seu espaço para dar a conhecer ao grande público a nossa associação …

Como é do conhecimento geral os grandes grupos de comunicação social mundial pertencem a indivíduos AB+ e há largos anos que nos boicotam o acesso aos seus jornais, rádios e estações de televisão.

N371111

PS. Isto sim é a 3ª do Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band

ana v. disse...

Absolutamente de acordo, Senhor Embaixador: o racismo está nas atitudes e não no léxico. A propósito, não resisto a contar um episódio que se passou comigo há poucos dias, exactamente por causa dessa mania do politicamente correcto que às vezes faz as pessoas fazerem figuras ridículas. Uma senhora abordou-me na rua (vivo em Sintra) e perguntou-me onde ficava a "Casa dos Negros". Como eu não conhecia, lá me explicou que lhe tinham dito que era uma casa muito antiga onde se compravam as melhores queijadas de Sintra. Desatei a rir quando percebi que ela se referia, naturalmente, à "Casa do Preto". Ele há coisas, como diz o povo na sua infinita sabedoria. :-)

Só para lembrar

Porque estas coisas têm de ser ditas, irritem quem irritarem, quero destacar a serenidade construtiva demonstrada por Pedro Nuno Santos e pe...