segunda-feira, julho 08, 2013

Em boas mãos

Era já tarde. O meu encontro com o ministro Vitor Gaspar estava aprazado para minutos depois. Na rádio, eu ouvira que o governante tinha terminado, há pouco, um debate importante no parlamento. Mas uma certeza eu tinha: o ministro não chegaria atrasado à conversa que tinha combinado com o embaixador em França que eu então era, nesse ano de 2012. Vitor Gaspar não chega atrasado aos encontros.

Entrei com o meu carro no pátio interior do Ministério. Um GNR levou-me por um corredor até à base de uma grande escadaria.

Nesse instante, dei-me conta de que nunca tinha ido ao Ministério das Finanças, nem nos cinco anos e tal que passara no governo, nem em qualquer outra ocasião, numa visita de uma personalidade estrangeira ou a uma posse.

Olhei aquela escada larga diante de mim e interroguei-me se seria por ela que Salazar subia. Provavelmente não. As portas dos ministros são quase sempre outras.

Na base da escada estava uma secretária, com uma senhora sentada. No topo da mesa, uma criança, seguramente filha da senhora, fazia os seus "deveres". Expliquei ao que vinha. Eram 19.25. Ela tinha anotado que o senhor ministro me receberia às 19.30. Gentilmente, disse-me que me acompanharia, escada acima, para me encaminhar ao gabinete, onde uma adjunta me aguardava. Foi então que, voltando-se para a criança, que teria aí uns 11 ou 12 anos, lhe disse:

- Olha! Tu ficas aqui, a guardar isto, enquanto eu vou lá em cima levar este senhor, está bem?

A criança disse que sim com a cabeça. As Finanças ficavam em boas mãos.  

21 comentários:

Anónimo disse...

Delicioso.

Anónimo disse...

E não ficam? Pelo menos, ou pelo máximo, são inocentes!

Anónimo disse...

Pelos vistos, as nossas Finanças vão continuar em mãos infantis, mas talvez menos inocentes

Anónimo disse...

Quando recordo a minha "meninice" e vejo o que vejo hoje, até estou convencido que muitas crianças de Doze anos poderiam assumir com mais responsabilidade o que certes adultos não são capazes de assumir...
José Barros

Joaquim de Freitas disse...

Existem várias espécies de miséria . E não quero falar da "tradescantia", a crescimento rápido, da família das" commélinacées"! Que tenho no meu jardim.

Penso antes nas outras ! Por exemplo, a condição ou estado daquele, homem ou Nação, que inspira piedade. Que pode ser material ou moral.
Ou ainda a que denota uma grande insuficiência, uma grande carência no campo social, psicológico e espiritual.
Mas a pior das misérias é talvez quando ela é a expressão da fraqueza e impotência do homem e do nada da sua condição. Os homens políticos são freqüentemente vitimas desta miséria! Por vezes, o orgulho é a paixao dominante, afectando a grandeza até à mais triste miséria, vitimas dum narcisismo 'irrevogável"!
E mesmo se todas as ambições são legítimas, as que se elevam sobre as misérias dum povo crédulo são abjectas. A política, então, não é mais que a política do medo, da fome , da miséria diluída ao nível das massas que dela sofrem.

Ao ver, de longe, o espectáculo deprimente da política e dos políticos portugueses ao nível do Estado, não posso deixar de pensar nas palavras dum candidato às eleições legislativas, em França, há mais de um século, Jules Vallès :" Fui sempre o advogado dos pobres, sou o candidato do trabalho, serei o deputado da miséria! A miséria! Enquanto houver um soldado, um carrasco, um padre, um funcionário da alfândega, um rato de cave, um funcionário irresponsável, um funcionário inamovível, um policia credível sob juramento, enquanto houver tudo isso a pagar, povo tu serás miserável" !

Se as grandes revoluções nascem das pequenas misérias, como os grandes rios nascem dos pequenos riachos, é pena que em Portugal hajam tão poucos riachos!

Joaquim de Freitas disse...

Ao chegar ao gabinete do ministro, Sr.Embaixador, devia cantar ao Sr. Gaspar a canção dos Talking Heads, "we are on the road to nowhere", " caminho onde não se vai a lado nenhum. Ele conhece-a!

Gaspar, o mais diligente, zeloso, dedicado carrasco da estratégia europeia da austeridade. Claro que a "Troika" deve chorà-lo! E também o Schauble , a Merkel e o Oli Rehn !

Gaspar, o homem do "ajustamento" rápido, intenso e profundo, com muita austeridade. Remédio de cavalo que leva às portas da morte, mas rapidamente traz uma saúde de rebentar ! Isto é o que se chama "morrer em boa saúde" ! Remédio que falhou no tratamento de todos os doentes que com ele foram tratados! E que só agora um dos médicos, o FMI, reconheceu o erro da receita médica. E que deixou os "doentes" mais doentes que antes !

Gaspar, para quem só os devedores é que devem fazer esforços! Fazer esforços quando se produz menos, investe menos, que por conseguinte se criam menos empregos, que se consome menos porque há mais desempregados, portanto menos dinheiro, e que, sobretudo, há mais medo do futuro! Um medo terrível do amanhã que não cantará! Porque quando se está doente, não se canta; sobrevive-se!
Os esforços, para Gaspar, é continuar a empobrecer os Portugueses até à medula! Proibido viver! Emigrar sim, para baixar as despesas do Estado. Mas sobretudo, não tocar nos acionistas das grandes empresas, nem nos salários e reformas chorudas dos felizardos!

Gaspar, que só agora compreendeu que face ao desastre na frente económica, onde tudo vai de mal a pior, do desemprego à dívida, do déficit ao crescimento, era talvez preciso mudar de receita. Mas o servidor dedicado da linha dura , depois de tanta austeridade inútil, deixou o lugar à secretária! Uma espécie de promoção para esta, mas muitos acessos de febre previsíveis para o doente . Porque , ao deixar o testamento no qual escreve que " a sua "credibilidade" foi destruída pela realidade dos resultados económicos", pergunto a mim mesmo se a secretária vai ter a varinha mágica que permitirá de mudar a "realidade", ela !

Isabel Seixas disse...

Curiosamente e sei bem porquê, o facto relevante da substituição por género diferente não me anima, pelo contrário irrita-me solenemente...

O perfil psicológico do GasparZinho "nunca" me enganou...
Subscrevo o post e os comentadores.

Anónimo disse...

As Finanças, digo secretarias, lá estariam sob o "olhar" vigilante dos GNR!s, Quanto ao "quadro" curiosamente observado pelo Sr, Embaixador, e que nem todos tem essa faculdade do pormenor, é deveras muito enternecedor... Entre outras coisas até é simbólico...

Anónimo disse...

Há já alguns anos fui eu as “mãos inocentes” duma situação idêntica.

Num corredor, que a vida não conseguiu fazer perder toda a magnitude que tinha aos meus olhos de petiz, cruzei-me com aquele que era então o vice-primeiro-ministro de um "governo FMI". Ao vê-lo, imponente fisicamente, aproximar-se no estreito corredor, decidi, dando-lhe acesso, fazer uma ligeira vénia como via fazer, perante a realeza, nas telas dos cinemas. Ao reparar no pequeno que curvado lhe dava passagem o vice-primeiro-ministro riu-se a bandeiras despregadas e, segundo o que me contam, disse ao afagar-me a cabeça: obrigado para a próxima desvio-me eu. Não houve próxima, morreu passados uns curtos meses.

N371111

Alcipe disse...

Magnífico texto.

(ainda não estamos na "escola do elogio mútuo", que não sou nenhum Castilho!)

Anónimo disse...

Todos feitos uns com os outros, a dizerem bem uns dos outros... Eu topo-os!


a) Feliciano da Mata, independente do Sul






Anónimo disse...

Terá sido o Ministro Gaspar que tenha permitido que o seu ministério pudesse ficar à guarda de uma criança ou..... a nomeação já seria mais antiga.... o poder dos antigos contiínuos ou contínuas vem de longe. É o desenrasque-se tipicamente português.

Anónimo disse...

Entretanto na China...

Exoresso online:


"O Tribunal Distrital de Beijing condenou à morte o ex-ministro chinês das Ferrovias, Liu Zhijun, com pena suspensa por dois anos, por corrupção e abuso de poder.

Segundo o juiz, ficou provado que durante 25 anos, entre 1986 e 2011, o governante chinês recebeu subornos no valor de 8,2 milhões de euros e ajudou 11 pessoas a conseguirem lucrativos contratos e promoções.

"Liu Zhijun infligiu perdas colossais ao património público e violou os direitos e interesses do Estado e do povo. O tribunal retira o seu direito à vida e confisca todas as suas propriedades ", afirmou o juiz, durante a leitura da sentença, altura em que o ex-ministro se desfez em lágrimas.

A pena será comutada em prisão, devendo o ex-governante ficar pelo menos 10 anos detido, de acordo com a BBC. Liu Zhijun tem 60 anos.

Segundo o "The Beijing Times", todos os bens pessoais de Liu Zhijun, que incluem 16 carros e mais de 350 apartamentos, serão confiscados.

Liu Zhijun dirigiu o processo da modernização do sector, que inclui a construção de mais de 16.000 mil quilómetros de linha de alta velocidade ferroviária até 2020.

Em 2011, o governante foi também acusado de negligência, após o acidente de comboio na cidade de Wenzhou, que causou 40 mortos e centenas de feridos."

Estes não têm os nossos códigos penais...e seria interessante perceber como investigaram os factos e que garantias de defesa teve o acusado...
Uma coisa parece certa: não ia a conduzir o comboio sinistrado. Mesmo assim, foi acusado pelo acidente.
Por outro lado, por cá, estou a ver, assim de repente um ou dois indivíduos que se tivessem feito na China o que por cá terão feito, com os sinais exteriores de riqueza que ostentam, tinham a mesma sorte.

Alexandre

Guilherme Sanches disse...

Caro Embaixador, ao contrário do que é habitual, não me parece pertinente nem oportuno este texto.
Às tantas, ainda vai chegar-se à conclusão que foi essa criança que deixou as portas abertas.
Ou então, numa visão mais futurista e otimista, quem sabe se com esta ministerial ou ministeriosa experiência, não virá no futuro a ter o benefício de alguma qualquer equivalência ministeriável.
Sabe-se lá!
Um abraço

Unknown disse...

Muito bom...

Anónimo disse...

Eu acho que a criança é que era efectivamente a empregada. Uma mãe é muito cara neste clima de austeridade. Mãe e Filha terão combinado fingirem o contrário perante os visitantes, por ordem da troika, via Gaspar-ou inversamente. Já ninguém fala do trabalho infantil porque, com a crise, todos não são demais para ganharem algum...Aliás, consta que a mãe frequenta a Universidade da terceira idade, lá aguardando por um ministro saído há algum tempo e que prometeu não morrer sem obter um canudo.

patricio branco disse...

bonita historia com menina que termina, e bem, à entrada da posta do ministro

Carlos Fonseca disse...

Ao contrário do comentador Patrício Branco, parece-me que a menina não ficou à porta do gabinete: entrou mesmo.

EGR disse...

Senhor Embaixador: a avaliar pelo que nos é diariamente oferecido parece-me que, tal como sucedeu naquele momento com as Finanças, hoje é toda a governação que está em boas mãos.
E, permita-me acrescentar: o Senhor Embaixador está em invejável forma.

Anónimo disse...

Caro Francisco,
De facto, o seu post deu azo a pitorescas e não ingénuas insinuações, entre meninas, crianças e portas... do Ministério das Finanças. Servi naquela casa por 2 vezes, em anos do século passado (sinto-me muito antigo...) e visitei-a outras tantas, na década de 70 desse século, para falar com professores ou um Ministro com quem colaborei profissionalmente. De facto, pelo menos já naquela época, era uma casa especial, em termos de ambiente. O Ministro das Finanças Salazar penso que nunca lá trabalhou, pois a escadaria e arranjo arquitectónico datam dos anos 50, sendo então Ministros Cosa Leite (Lumbralles) e, depois, Pinto Barbosa. As alterações mais recentes, nalgumas salas e portas de acesso, processaram-se na década de 90, sem grandes modificações nas estruturas básicas. Naturalmente, a meio da escadaria principal não estava o busto da República, mas sim o de um antigo Ministro das Finanças, retirado, o busto, na década de 70…
Para quando o seu primeiro livro de “cenas” da vida de um diplomata?...
Abraço amigo
José Honorato Ferreira

Anónimo disse...

Ah!...Delicioso...
Se bem percebi, a mãe da criança é que foi lá acima levá-lo?
Não a reconheceu? Era Maria Luís Albuquerque!

Hoje lembrei-me do padre Domingos

Das traseiras da igreja de São Martinho de Bornes tem-se esta vista. Lá em baixo, ficam as Pedras Salgadas, com as Romanas, Sabroso e algum ...