quarta-feira, dezembro 21, 2011

Coreias

Em 2003, quando representava Portugal na OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), em Viena, fui convidado pelo governo coreano para pronunciar, em Seul, uma conferência sobre um tema que pode parecer algo etéreo para os leitores deste blogue: "OSCE's confidence and security bulding measures". 

Essa era uma especialidade que eu entretanto desenvolvera na minha involuntária "osceosidade" vienense, que levara aquela organização, sem o menor encargo para o Estado português, a "oferecer-me" como palestrante especializado por vários seminários internacionais sobre questões de defesa e segurança, da Polónia ao Casaquistão, do Egito ao Japão, da Itália à Jordânia. 

Tratava-se de transmitir a experiência ganha pela OSCE no seu quadro de cooperação euroasiática, em matéria de diálogos políticos "geradores de confiança", em situações pós-conflito (ou, mais raramente, de mera prevenção de conflitos), com vista a operações de "learning lessons", neste caso para tentar aplicar essa experiência no quadro da tensão "sul-norte", que prevalece nas Coreias desde o confito dos anos 50. Estava-se então no tempo de alguma esperança nos esforços feitos no âmbito dos "six-party talks" (conversações entre as duas Coreias, com inclusão da China, da Rússia, do Japão e dos EUA), para tratar o sensível problema nuclear norte-coreano.

O debate em Seul foi extremamente interessante e instrutivo, em especial para melhor perceber a peculiar atitude chinesa (e também russa) no processo, bem como para definir as distâncias estratégicas, muitas vezes pouco percebidas mas bem presentes, entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos, assunto de que já falei aqui.

À parte o seminário, houve a possibilidade de uma deslocação, entre o turístico e o político, ao histórico "paralelo 38", a linha divisória do trágico conflito entre as duas Coreias. Sendo a fronteira mais tensa do mundo, há em seu torno uma espécie de grande "teatro", alimentado pelos sul-coreanos e pelas tropas norte-americanas presentes no local, com óbvia cumplicidade dos coreanos do norte. Visitaram-se túneis e postos de observação, de onde se podia ver uma gigantesca bandeira norte-coreana e, através de binóculos, se detetavam, como figuras raras, militares das tropas do outro lado. Foi-se até à sala das históricas conversações norte-sul, bem como ao limite de uma linha de comboio interrompida há muitos anos, pela Coreia do Norte, sendo-nos mostrada uma moderna e completamente deserta estação de onde, como nos foi dito, se um dia houver paz e tiver acabado o bloqueio da fronteira, um comboio poderá partir numa longa viagem euro-asiática que irá acabar em... Paris, tido num grande mapa como o extremo ferroviário ocidental da Europa. A uma simples observação minha, sobre a razão pela qual essa linha mirífica não prosseguiria até Lisboa, desencadeei nos meus interlocutores sul-coreanos um imediato e preocupado nervosismo, com imediata promessa (!) de irem rever o mapa. A extrema lógica asiática tem destas coisas...

Mas, no local, há outras "lógicas", tão ou mais complexas do que esta. Um dos pontos da agenda incluía um "briefing", feito pelas tropas americanas aí estacionadas, sobre a situação na linha de fronteira. Convém que se diga que, para a Coreia do Norte, a situação de guerra com os EUA mantém-se, formalmente. O oficial americano parecia uma caricatura cinematográfica, com um típico corte de cabelo paralelipipédico, que lhe dava um ar involuntariamente divertido. O seu discurso estava recheado de "clichés" da vulgata da "guerra fria" revisitada (ao tempo da minha visita preponderava em Washington o senhor George W. Bush), que divertiram imenso o pequeno auditório, recheado de especialistas internacionais que tinham das coisas do mundo alguma sofisticação mais. Recordo-me de nos ter sido explicado, com detalhes biográficos e curiosidades pormenorizadas, muito orientadas para um auditório turístico, quem era o lider norte-coreano Kim Jong-Il (que há dias morreu). As restantes informações relevavam de uma espécie de versão para atrasados mentais da série editorial "The complete Idiot's guide", ideologicamente revista pelas Seleções do Reader's Digest nos anos 50.

A certa altura da palestra, o militar contou que, todas as manhãs, grandes altifalantes emitiam, em direção ao sul, hinos e canções patrióticas norte-coreanas, que faziam já parte da rotina dos dias no local. Porque o "briefing" estava a ser uma maçada de que todos pareciam querer ver-se livres, quando, no fim da preleção, nos interrogou sobre "any questions?", registou-se um silêncio esmagador e de alívio. Foi então que decidi, para espairecer o ambiente, "quebrar a loiça" e, com uma falsa ingenuidade, perguntei: "Os hinos e as canções patrióticas são, como nos disse, a regra dessas emissões matinais. Gostava que me respondesse a uma questão: qual seria a sua reação se, numa dessas manhãs, em lugar desse tipo de músicas, os altifalantes norte-coreanos transmitissem uma canção de Britney Spears?". O homem bloqueou e olhou-me siderado. Acrescentei: "Que tipo de conclusões políticas retiraria desse facto?". O militar americano ficou muito sério, fixou-me de uma forma pouco simpática, pousou a varinha com que apontara o "power-point" e disse: "The briefing is over". Uma onda de gargalhadas, mas apenas dos visitantes estrangeiros, ecoou na sala.

Decididamente, o humor não é a atitude mais apreciada nas zonas tensas de conflito.

10 comentários:

Anónimo disse...

"Casaquistão" ou "Cazaquistão"?

Isabel Seixas disse...

É o humor para ser apreciado beneficia de um recetor com fair play, mas nem sempre coincidem(...)

Helena Oneto disse...

Genial!

César disse...

Nessa mesma algura tive oportunidade de conviver com o digníssimo embaixador de Portugal em Seul, o carismático diplomada e poeta Carlos Frota.
Revisitei na minha memória a ida ao túnel três e à Zona Desmilitarizada (DMZ).

Anualmente cumpro a minha "peregrinação" à Coreia do Sul, a minha alma de Taekwondoca assim o obriga. Quando deixo o conforto de Viena e as ridiculas condutas de segurança que se vivem na Áustria, para conviver com os meus amigos Coreanos e assistir de perto às patetices dos que estão do lado norte do famigerado paralelo, regresso a apreciando a estabilidade política e militar que a Europa Ocidental vive. Despreocupado e em segurança é fácil falar de união e fraternidade, visitando de perto, é difícil visualizar uma união daquela província fabulosa que é a Coreia.

Obrigado Sr. Embaixador por me fazer viajar nas suas memórias. Votos de um Santo Natal e de um Próspero Ano Novo.

Anónimo disse...

Uma abordagem quase idêntica à do Senhor Embaixador feita por um dos mais interessantes blogues de direita:
http://combustoes.blogspot.com/2011/12/um-kim-jong-il-quase-pacato.html

Manuel Sousa Telles

Anónimo disse...

Retirado do The Guardian:

The two faces of Rumsfeld

2000: director of a company which wins $200m contract to sell nuclear reactors to North Korea
2002: declares North Korea a terrorist state, part of the axis of evil and a target for regime change

Donald Rumsfeld, the US defence secretary, sat on the board of a company which three years ago sold two light water nuclear reactors to North Korea - a country he now regards as part of the "axis of evil" and which has been targeted for regime change by Washington because of its efforts to build nuclear weapons.
Mr Rumsfeld was a non-executive director of ABB, a European engineering giant based in Zurich, when it won a $200m (£125m) contract to provide the design and key components for the reactors. The current defence secretary sat on the board from 1990 to 2001, earning $190,000 a year. He left to join the Bush administration.


Portanto dá para ver que se a Corea tem armas nuclear, elas foram fornecidas pelo Ocidente, nomeadamente , atravez da Holding Carlye da familia Bush, que tem os seus boys espalhados pelo mundo!!!

Mas isto não se pode dizer, porque é conspiração ! Temos que ser lineares , assim como os Norte Coreanos, que choram a morte de seu lider porque se não chorarem também não respiram, como disse a Zita Seabra , na excelente entrevista na SIC, ontem !

Caro Sr Embaixador , deve ser preciso muito gingseng para aturar os "affaires" politicos!

OGman

Anónimo disse...

Singularmente também lá estive; aliás ainda no Check-Point Charlie e na Linha Verde de Nicósia; três fronteiras farpadas, das quais apenas subsiste a cipriota.

Mas, no paralelo 38, o que mais me impressionou - sou um tanto parvalhão e sentimentalão - foi, na sala de conferência com a enorme mesa ao meio, ter registado um pormenor inquietante.

A linha da fronteira, marcada a branco no chão, «subia» ao tampo da mesa, por ele continuava sempre a branco, «descia» e retomava serenamente o traçado no solo.

Os túneis, os altifalantes (também tinha um do lado do Sul) os militares de armas em punho (também de ambos os lados) a nossa guia - a Raquel também ia - a major (negra) Nancy Roger e outras minudências eram peças de... teatro.

Boas (???) Festas

Anónimo disse...

Ah! Eu bem me queria parecer que este blog no fundo era de direita! Obrigado, Manuel Sousa Telles!

a) Haroldo de Menezes Vasconcellos (Vinhais)

Anónimo disse...

Há muito tempo que aprendi que não devemos desperdiçar a ironia com pessoas que não a merecem. As vítimas de lavagem cerebral, prática não invasiva muito em voga nas academias militares, de West Point ao Alto de Benfica, são incapazes de sintonizar nesse comprimento de onda...

DL

Anónimo disse...

Minhas as palavras de Helena Oneto: Genial!!

Ass. o anónimo das 22.04 do outro dia

25 de novembro