Achei que tinha mesmo de ajudá-lo. Aquele meu colega de liceu, que já não via há anos, sabendo que eu estava colocado na Embaixada em Luanda, nesses idos de 80, procurou-me, nas férias de Natal, para me pedir para tentar encontrar o seu pai, que há algumas décadas migrara para Angola, antes da independência do país, e que, há cerca de cinco anos, deixara de dar notícias. A sua mãe tinha-se desligado afectivamente do antigo marido e não queria saber dele. Mas ele, como filho, não. A última localidade onde vivera era a milhares de quilómetros da capital angolana, só acessível por estrada, a partir de uma outra cidade, esta com ligação aérea a Luanda. Teria morrido? Estaria em dificuldades? Desde essas férias de Natal, impus a mim mesmo a obrigação de procurar o paradeiro do sr. Matias, de Vila Real.
Convém lembrar que esse era um tempo de guerra civil em Angola, com muitas localidades isoladas e frequentemente sob tensão militar. A zona onde o Sr. Matias vivia (vivia?) situava-se em áreas onde os conflitos eram mais intensos. Mas sabia-se que, em Angola, havia sempre portugueses em todo o lado, por mais inóspitas que fossem as paragens.
Chegado a Luanda, fui ao Consulado e lá estava a ficha do sr. Orlando Matias. Tinha nascido há 74 anos. O último acto consular praticado datava de há já quase seis anos. Falei com os funcionários e pedi-lhes que, se e quando aparecesse alguém da cidade onde se supunha que o sr. Matias vivia, lhe pedissem para ir falar comigo, dois andares acima, naquele imenso e desagradável prédio onde eu trabalhava e vivia, na Rua Karl Marx, antiga Rua Vasco da Gama.
Semanas depois, apareceu alguém da referida localidade. Chamei-o e confirmei - boa notícia! - que o sr. Matias estava de boa saúde e ainda trabalhava. Quando referi à pessoa a razão pela qual queria encontrar o sr. Matias, pedindo-lhe para passar a minha mensagem, retorquiu-me: "Está bem, mas, por ora, não diga ainda nada à família dele. Vou tentar que ele fale consigo". Estranhei um pouco, mas as vidas africanas têm razões que a lógica desconhece. E respeitei o que o homem me pediu.
Os meses passaram, mesmo muitos. Até que um dia, da portaria, me chega o recado que um tal Orlando Matias estava ali, para me ver. Rejubilei. Mandei-o subir e recebi um homem tisnado, pequeno, magro mas com ar saudável, olho vivo e cara seca, sem sorrisos. Expliquei-lhe o encontro tido com o filho, meu antigo colega, tentei aligeirar a conversa, que sentia não fluir, num esforço para suscitar memórias comuns de Vila Real. Mas rapidamente comecei a perceber que, para ele, o passado era mesmo o passado.
A certo passo, disse-me: "Sabe, senhor doutor, se calhar é melhor não dizer ao meu filho que me encontrou". Fiquei perplexo e, de certo modo, desiludido. Depois de meses de espera, quando eu pensava ter resolvido o mistério e me preparava para dar a boa nova ao meu antigo colega, tudo se desvanecia. Porquê?
"Eu não vou regressar nunca a Vila Real. A minha vida é em Angola. Esta agora é a minha terra. Tenho aqui mulher e já cinco filhos, tenho um negócio que vai bem, mesmo com a guerra. A mulher e o filho que deixei em Portugal já não esperam ver-me, se calhar acham que eu morri. É melhor assim. Nem eu tenho dinheiro para lhes mandar, nem era capaz de abandonar a família que fiz por aqui. Diga ao meu filho que não me encontrou, faça-me esse favor".
Num segundo, percebi o drama do homem. Dei-lhe todos os meus contactos para o caso de precisar da minha ajuda e levei-o ao elevador. À despedida, não resistiu e, de dentro daquela secura que os trópicos e as dificuldades da vida haviam incutido no seu carácter trasmontano, disse uma coisa bonita: "Quando encontrar o meu filho, dê-lhe um abraço forte, por mim. Mas não lhe diga nada, está bem?". Nunca disse.
Convém lembrar que esse era um tempo de guerra civil em Angola, com muitas localidades isoladas e frequentemente sob tensão militar. A zona onde o Sr. Matias vivia (vivia?) situava-se em áreas onde os conflitos eram mais intensos. Mas sabia-se que, em Angola, havia sempre portugueses em todo o lado, por mais inóspitas que fossem as paragens.
Chegado a Luanda, fui ao Consulado e lá estava a ficha do sr. Orlando Matias. Tinha nascido há 74 anos. O último acto consular praticado datava de há já quase seis anos. Falei com os funcionários e pedi-lhes que, se e quando aparecesse alguém da cidade onde se supunha que o sr. Matias vivia, lhe pedissem para ir falar comigo, dois andares acima, naquele imenso e desagradável prédio onde eu trabalhava e vivia, na Rua Karl Marx, antiga Rua Vasco da Gama.
Semanas depois, apareceu alguém da referida localidade. Chamei-o e confirmei - boa notícia! - que o sr. Matias estava de boa saúde e ainda trabalhava. Quando referi à pessoa a razão pela qual queria encontrar o sr. Matias, pedindo-lhe para passar a minha mensagem, retorquiu-me: "Está bem, mas, por ora, não diga ainda nada à família dele. Vou tentar que ele fale consigo". Estranhei um pouco, mas as vidas africanas têm razões que a lógica desconhece. E respeitei o que o homem me pediu.
Os meses passaram, mesmo muitos. Até que um dia, da portaria, me chega o recado que um tal Orlando Matias estava ali, para me ver. Rejubilei. Mandei-o subir e recebi um homem tisnado, pequeno, magro mas com ar saudável, olho vivo e cara seca, sem sorrisos. Expliquei-lhe o encontro tido com o filho, meu antigo colega, tentei aligeirar a conversa, que sentia não fluir, num esforço para suscitar memórias comuns de Vila Real. Mas rapidamente comecei a perceber que, para ele, o passado era mesmo o passado.
A certo passo, disse-me: "Sabe, senhor doutor, se calhar é melhor não dizer ao meu filho que me encontrou". Fiquei perplexo e, de certo modo, desiludido. Depois de meses de espera, quando eu pensava ter resolvido o mistério e me preparava para dar a boa nova ao meu antigo colega, tudo se desvanecia. Porquê?
"Eu não vou regressar nunca a Vila Real. A minha vida é em Angola. Esta agora é a minha terra. Tenho aqui mulher e já cinco filhos, tenho um negócio que vai bem, mesmo com a guerra. A mulher e o filho que deixei em Portugal já não esperam ver-me, se calhar acham que eu morri. É melhor assim. Nem eu tenho dinheiro para lhes mandar, nem era capaz de abandonar a família que fiz por aqui. Diga ao meu filho que não me encontrou, faça-me esse favor".
Num segundo, percebi o drama do homem. Dei-lhe todos os meus contactos para o caso de precisar da minha ajuda e levei-o ao elevador. À despedida, não resistiu e, de dentro daquela secura que os trópicos e as dificuldades da vida haviam incutido no seu carácter trasmontano, disse uma coisa bonita: "Quando encontrar o meu filho, dê-lhe um abraço forte, por mim. Mas não lhe diga nada, está bem?". Nunca disse.
14 comentários:
Há já algum tempo que sigo o seu blog, que descobri por acaso, como quando se tropeça nalguma coisa, que neste caso me prendeu o olhar, mas desta vez não resisti em deixar um comentário, pela beleza duma história verídica, e no dilema em que a vida por vezes se pode tornar. Espero que continue a encantar-nos com outras histórias do seu percurso!
Obrigada/Teresa
Caramba há mais espécies de dramas do que se possa imaginar.
Falhei Brasília. Em parte porque a Maria Machado opõe sempre resistência ao avião.
Qualquer dia, mais para o verão, ainda te visito. Já tenho saudades da cidade Luz. Se bem que as luzes se tenham mudado em grande medida para NY.
Grande Abraço
Sem palavras...
Cem palavras
Todas na dimensão
Do eco do Amor
Revestido num icebergue
De águas amargas
Em subtipos de Dor
Refém de uma saudade
Que não morre
No esconderijo do ardor
O colo do regaço
Uma carícia sem espaço
Era um Amor em Abraço...
Isabel Seixas
Há silêncios que a razão nem sempre compreende. Ainda menos quando a razão é plural. Hoje, o filho, se tiver acesso à densidade do texto, quem sabe se não vai encontrar razões para ficar alegre e triste...
A leitura de textos desta natureza deveria ser obrigatória nos livros da escola primária por onde todos passamos.
Notável. É por causa disto, daquilo e daqueloutro que o embaixador Seixas da Costa nos deve a todos uma compilação, em livro, de todas estas pequenas historinhas que fazem a tremenda História que nos pariu a todos em e a partir deste país.
Não conheço o embaixador Seixas da Costa, mas, vá-se lá saber porquê, sinto-me no direito de lhe exigir esse livro...
Rita
Um verdadeiro colono português. Um "Oliveira da Figueira".
Histórias da Rua ex-Vasco da Gama... Nessa mesma altura emergiu do mato, se bem me lembro em Saurimo (antiga Henrique de Carvalho), um senhor portugues extremamente surpreendido pelo que encontrou pois desconhecia (e tinha grande dificuldade em compreender e acreditar) ter sido declarada a Independência em Angola, quase dez anos antes. As autoridades locais, sem saber bem o que fazer trouxeram-no para Luanda. Resumindo uma historia instrutiva, o referido senhor, ao fim de alguns dias de choque com a Civilização luandense, munido da documentação que foi possível arranjar, pediu para ser levado de volta e de novo mergulhou no mato onde tinha uma vida que compreendia e a sua familia (muito alargada...).
Vizinho ex-marxista
Meu Caro Amigo,
Belíssimo relato!
Lembrei-me do livro do Tiago Rebelo (O Último Ano em Luanda), que retrata muito bem esse períido tão complicado aos portugueses e angolanos.
Esperança de tempos melhores em Angola!
Abraços do Brasil.
Fábio Ferreira Durço
Que extraordinária história! Isto há casos que nos fazem pensar e apesar de muito um tipo ir conhecendo ao longo da vida, há sempre coisas que nos continuam a surpreender.
Não tendo a bota a ver com a perdigota, permita-me aqui o Embaixador que relate uma outra pequena história, esta passada numa aldeia na Beira-Alta. Há uma dúzia de anos atrás, visitando uns amigos na Beira-Alta (ou “Beira Ialta”, como pronunciam por lá), ali entre Mangualde e Gouveia, que tinham lá casa de família, decidi-me ir ao barbeiro. Cortar o cabelo ali era um “must”, pelo tempo incrivel que o velho homem (quase 90 anos) levava a fazer a tarefa, como pelas histórias que contava (quase todas com cerca de meio-século, mas divertidas). A certa altura, relatou: “e um irmão meu, que já não vejo há anos...”assim contando mais uma história. No final da mesma, perguntei-lhe onde vivia o tal irmão, em que país. Quando esperava ouvir algo como, o “Congo Belga”, Angola, Brasil, França, etc, responde-me: “nah senhor, vive ali para Alfrazim!” – “Como”? Indaguei, perplexo! “Mas isso é já ali, a 4 km!”, continuei. “Pois é!, Mas é assim, nah me tem ficado em mão de lá ir! E, sabe, já lá vão 40 anos! Eu não saio daqui, da aldeia!” Espantoso! Aquele homem e seu irmão, vivendo a pouco mais de 4 km não se viam há cerca de 40 anos! Não queria acreditar, mas quando a filha de 60 me disse que já lhe tinha enviado cartas pelo correio, ou trazido em mão do dito irmão, então acreditei! E sai dali a coçar a cabeça, ainda icrédulo. Há gente inacreditável nesta vida!
P.Rufino
«Quando encontrar o meu filho, dê-lhe um abraço forte, por mim. Mas não lhe diga nada, está bem? ».
Contraditório certo, mas sem "consequências" negativas neste caso... «Nunca disse».
Esta sua "temoignage" revela uma vez mais diferentes facetas do oficio de Diplomata que exige, entre outros, do meu ponto de vista, a paciência e a escuta activa dum confessor, a bonomia dum padre da aldeia, e a obstinação de um sábio.
Permita-me de comentar também que, como sabe, não é só na África... O coração e a razão estão intimamente ligados... Mas o coração tem suas próprias razões.
Compreende-se a posição existencial do Sr. Matias, em assumir a responsabilidade de se desfazer, "de lacher prise" daquele passado.
C. Falcão
Senhor Embaixador o seu relato deixou-me um nó na garganta que, em mim, é sinal físico de emoção profunda.
Saída de família numerosa de um lado e do outro dos meus progenitores, sou uma arreigada defensora dos meus a quem tudo devo. Ascendentes, pelo património cultural e afectivo que me deixaram. Descendentes, porque me ensinaram a tolerância e o amor.
Finalmente, e também, uma imensa dívida que tenho para com todos os que passaram na minha vida e me ajudaram a ser quem sou. E a incluir na família mesmo aqueles que já deixaram de o ser...
Talvez tivesse valido a pena ao senhor Matias ter sido capaz de dizer ao filho, por uma única vez que fosse, o que lhe disse a si. E dar a esse filho, o único abraço que ele não recebeu!
belíssimo senhor embaixador, como sempre. só um acrescento: a vasco da gama passou a karl marx e, mais recentemente, a "avenida de portugal". angola vai mexendo, devagar, mas vai mexendo...
Gostei mesmo deste post. A sério.
Uma belissima historia.(...) Este e um blog pedagogico que o MNE deveria fazer leitura obrigatoria nas Embaixadas a fim de ensinar a escrever portugues...Muito bem haja!
JALVARES
(*Por razões que o autor deste comentário entenderá, o autor do blogue teve de "censurar-lhe" algumas palavras, que, no entanto, agradece)
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