Ao entrar hoje em Matignon, recordei-me que, há dias, ao sair do Eliseu, me esquecera de perguntar sobre um outro assunto que também não suscitara numa conversa no Quai.
Mas que é isto?, perguntará o leitor desprevenido. Esta é a linguagem críptica feita de locais com que os diplomatas se entretêm, já quase sem se darem conta que muito do restante mundo pode não conseguir segui-los.
Claro que, para alguns, é sabido que Matignon é o palácio onde fica o gabinete do Primeiro-Ministro francês, para muitos mais é óbvio que o Eliseu é a Presidência da República e, finalmente, outros suspeitarão que o Quai referido não é o Quai des Orfèvres, tornado famoso pelo inspector Maigret, mas sim o Quai d'Orsay, nome pelo qual é conhecido o Ministério francês dos Negócios Estrangeiros.
Lembro-me que, quando entrei para a carreira diplomática, ao ler telegramas da nossa embaixada em Tóquio, comecei a ficar intrigado com um interlocutor regular do nosso embaixador, fonte credível de interessantes informações. Assim, lia frequentemente nas comunicação do Japão coisas como "apurei junto de Gaimusho", "a opinião de Gaimusho é", etc. Com a patetice de um caloiro que hesita em perguntar o que teme que deva ser óbvio, terei andado umas semanas até descobrir quem era o tal Gaimusho - nome pelo qual é conhecido o ministério dos Estrangeiros japonês.
De certo modo, há a tendência de pensar que uma diplomacia que é conhecida pelo nome da sede da sua chancelaria assume, aos olhos das outras carreiras externas, uma dignificação especial, pelo peso histórico que o nome representa. O que não significa menor prestígio para aquelas que são conhecidas por siglas (AA para a Alemanha, FO para o Reino Unido, MID para a Rússia, etc.).
A verdadeira consciência disso está reflectida no caso do Brasil: ao falar-se do Itamaraty, toda a gente sabe tratar-se do Ministério das Relações Exteriores brasileiro, em Brasília. Porém, alguns não saberão que, na realidade, o original Palácio do Itamaraty se situa no Rio de Janeiro e foi, de facto, a sede da diplomacia brasileira antes de se mudar para Brasília, levando consigo o nome para o novo e belíssimo edifício onde hoje se situa.
Também nós, portugueses, temos a tentação de assumir que os diplomatas estrangeiros em Lisboa devem dizer, nas suas comunicações, "apurei hoje nas Necessidades" e frases do género. A nossa esperança é que não traduzam o nome do palácio...
5 comentários:
Pronto! Agora ri-me!
Além de aprender (a vertiginosa viagem que agora fiz, ao escorregar por estes parágrafos), adorei a 'punch line'!
Uma revelação(para mim) esta veia literária, excelência...
Impagável essa da "não tradução" do palácio...
PR
Essa do Gaimusho é boa!
Fez-me lembrar a expressão dos "cousins in Langley across the pond" do célebre John Le Carré quando se referia aos agentes da CIA...
Delicioso!!!
Francisco,envio uma cronica do genial poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade que ele escreveu para homenagear o Cartola,poeta e compositor que brilhava no morro, na Mangueira e no Itamaraty, que como voce bem o disse,toda a gente sabe do que se trata.
Cartola, no moinho do mundo
Você vai pela rua, distraído ou preocupado, não importa. Vai a determinado lugar para fazer qualquer coisa que está escrita em sua agenda. Nem é preciso que tenha agenda. Você tem um destino qualquer, e a rua é só a passagem entre sua casa e a pessoa que vai procurar. De repente estaca. Estaca e fica ouvindo.
Eu fiz o ninho.
Te ensinei o bom caminho.
Mas quando a mulher não tem brio,
é malhar em ferro frio.
Aí você fica parado, escutando até o fim o som que vem da loja de discos, onde alguém se lembrou de reviver o velho samba de Cartola; Na Floresta (música de Sílvio Caldas).
Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e zangado, mas em geral a atitude dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei Sentir. Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: “Tenho um novo amor”, é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera.
A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como dizem os descuidados) é patente quer na composição, quer na execução. Como bem me observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois convivem civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza.
Em Tempos Idos, o divino Cartola, como o qualificou Lúcio Rangel, faz o histórico poético da evolução do samba, que se processou, aliás, com a sua participação eficiente:
Com a mesma roupagem
que saiu daqui
exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamaraty.
Pode-se dizer que esta foi também a caminhada de Cartola. Nascido no Catete, sua grande experiência humana se desenvolveu no Morro da Mangueira, mas hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro, representativo do que há de melhor e mais autêntico na música popular. Ao gravar o seu samba Quem Me Vê Sorrir (com Carlos Cachaça), o maestro Leopold Stockowski não lhe fez nenhum favor: reconheceu, apenas, o que há de inventividade musical nas camadas mais humildes de nossa população. Coisa que contagiou a ilustre Duquesa.
* * *
Mas então eu fiquei parado, ouvindo a filosofia céptica do Mestre Cartola, na voz de Sílvio Caldas. Já não me lembrava o compromisso que tinha de cumprir, que compromisso? Na floresta, o homem fizera um ninho de amor, e a mulher não soubera corresponder à sua dedicação. Inutilmente ele a amara e orientara, mulher sem brio não tem jeito não. Cartola devia estar muito ferido para dizer coisas tão amargas. Hoje não está. Forma um par feliz com Zica, e às vezes a televisão vai até a casa deles, mostra o casal tranqüilo, Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre coisas da vida. “O mundo é um moinho...” O moleiro não é ele, Angenor, nem eu, nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda, trigo ou milho que se deixa pulverizar. Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se, e “fui à vida”, como ele gosta de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação.
Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002 Carlos Drummond de Andrade
In Jornal do Brasil
27/11/1980
© Graña Drummond
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