A iniciativa insere-se no âmbito da Trienal de Arquitetura de Lisboa. O projeto chama-se Gargantua Collective e, em síntese, tem por objetivo refletir sobre as perdas, para o património humano e cultural das cidades, que pode representar a desaparição de alguns locais públicos de convívio lúdico e de restauração, que estão hoje sob forte ameaça, em grande parte pela crise económica, mas, noutros casos, pela mera inadequação da sua oferta, algo estática, face aos desafios do consumo contemporâneo.
O olissipógrafo José Sarmento de Matos e eu próprio, fomos anteontem convidados a falar, perante um público jovem, atento e interessado, que se juntou no restaurante "Pessoa" - uma casa com 164 anos, por onde o homónimo poeta também passou, na clássica rua dos Douradores - sobre a importância desses locais, como plataformas de sociabilização e, em alguns casos, como espaços de criatividade e diálogo cultural, com dimensão histórica significativa.
Dediquei a Lisboa grande parte daquilo que disse, nessas quase duas horas e meia de convívio, onde também se leu poesia e se avaliou a evolução do usufruto da "rua" e da noite pelas gerações, chamando à conversa as redes sociais e a globalização da cultura do imediato, que hoje atravessa as camadas mais jovens, que olham preferencialmente para outros suportes, muito para além dos livros, dos jornais ou da televisão.
Sem a menor nostalgia mas com o carinho devido, falei de cafés, bares e restaurantes perdidos ao longo dos anos, realçando sempre, contudo, que nunca como hoje a cidade de Lisboa esteve tão "gloriosa" e diversa em termos de oferta gastronómica e de locais de convívio, não apenas para os jovens, mas para todas as gerações e gostos. E abordei, com alguma atenção, a evolução da vida urbana fora da capital, no Porto e em outras cidades de província que conheço bem, notando as mutações nos hábitos e, com elas, a perda inevitável e irreversível do lugar social de certos espaços, como, aliás, acontece um pouco por todo o mundo que se nos assemelha.
Houve ocasião para abordar o tempo da vaga avassaladora dos bancos sobre muitos cafés, explicando o papel que estes tinham desempenhado, durante muitos anos, na atenuação da solidão de quem, vindo da província - e, à época, "quase não havia lisboetas..."- caía desamparado numa cidade que parecia imensa, fosse ele estudante ou trabalhador. Falámos das tertúlias políticas, intelectuais e literárias, desportivas ou simplesmente lúdicas, da noite "que era predominantemente masculina", salvo num seu certo lado... Falámos muito, de facto, dessa noite, da boémia, pobre e rica, dos bares, dos cabarés, até do fado, dos escritores e dos seus lugares preferidos, dos locais operários e estudantis. E da cultura, dos suplementos literários, das revistas que marcavam um tempo que era muito mais lento e menos perecível, agora apagado de imediato pelo dia seguinte.
Sarmento de Matos, com o seu conhecimento histórico ímpar da capital, deu-nos notas curiosíssimas sobre a evolução espacial de Lisboa, dos círculos de identidade em que a capital se desdobrou, das dinâmicas sociais urbanas e no modo como a cidade se foi construindo.
Sarmento de Matos, com o seu conhecimento histórico ímpar da capital, deu-nos notas curiosíssimas sobre a evolução espacial de Lisboa, dos círculos de identidade em que a capital se desdobrou, das dinâmicas sociais urbanas e no modo como a cidade se foi construindo.
Na sala estava uma das figuras a quem a divulgação da vida e obra de Eça de Queiroz mais deve, o arquiteto Campos Matos, que contribuiu com traços muito interessantes dessa Lisboa novecentista. Apelámos à audiência para que lesse "A Capital", onde está tudo: os cafés, as tertúlias, os lugares de restauração, a vida social e intelectual, visto sob um (falso) olhar provinciano. Olhar essa Lisboa é meio caminho andado para entender a Lisboa de hoje. E Portugal.