quarta-feira, setembro 25, 2013

Memória

O comentário que o cavalheiro inglês fez para a sua mulher, ontem, numa loja do aeroporto de Málaga, fez-me sorrir: "este cheiro lembra-me qualquer coisa!" O curioso é que eu estava a pensar precisamente o mesmo, embora, no meu caso, não tivesse a menor dúvida: era o da uma loja, em Greenwich Village, no fundo da 7a avenida, em Nova Iorque, em dezembro de 1972. Era um odor perfumado, com algo de oriental, que ia bem com algum ambiente da época. Não faço ideia do que é, mas tenho a certeza absoluta de me não enganar.

Uma vez, trocando impressões com António Pinto da França, um grande amigo que há pouco se foi, dei-me conta de que comungávamos o facto de mantermos uma memória olfativa muito aguda, ligada a certos momentos da vida que tinham ficado registados para sempre. E comentámos o facto de conhecermos outras pessoas com idêntica experiência.

Sucede-me de vez em quando, embora de forma não muito frequente: entro num local, tenho uma certa perceção olfativa e, às vezes, quase sem esforço de memória, regresso por um instante a um certo local e a um tempo, sempre longínquo, onde essa perceção já se produziu. O curioso é que isso não corresponde, necessariamente, a ocasiões ou locais marcantes do passado, mas a tempos banais. Ou, então, a minha memória não os considera tão banais como isso.

Algumas vezes me tenho encontrado com o cheiro típico da cera das escadas do Clube de Vila Real, nos anos 60. Há tempos, numa esquina não sei bem onde, surgiu-me o odor que emanava de uma mercearia da rua Alexandre Braga, no Porto, um misto de café e especiarias, no meu tempo de universidade. Lembro-me bem do aroma, acolhedor, da copa da cozinha das minhas tias, nas Pedras Salgadas, com um fundo inconfundível de marmelada. E, há uns meses, ao entrar num escritório, dei "de narinas" com o cheiro que emanava das madeiras da nova Biblioteca Nacional de Lisboa, no início dos anos 70. Guardo quase uma vintena, bem identificada e razoavelmente datada, desses locais e dessas impressões olfativas. 

Este verão, em Viana do Castelo, decidi "ir à procura" do cheiro eterno do corredor que levava ao sótão (à "torre") da casa da minha avó. Pedi para visitar a casa, hoje uma bela escola de música. Sem grande surpresa, do cheiro dessa casa antiga, onde já não ia há quatro décadas, "nem o cheiro". Perguntei então se podia ir à cave, à "loja", como lhe chamávamos. E lá estava ele, entre arquivos, um outro confortante odor, feito de humidade, poeira e memória. Pronto, tinha ganho o meu dia!

Ficarei grato a quem me possa indicar um livro sobre cheiros e memórias. Havendo coisas escritas sobre tudo, estou certo que existirá algo sobre isso.

18 comentários:

Fernando Correia de Oliveira disse...

http://science.howstuffworks.com/life/human-biology/smell3.htm ou http://en.wikipedia.org/wiki/Olfactory_memory ou ainda http://faculty-staff.ou.edu/W/Donald.A.Wilson-1/TINS.pdf. E, claro, O Perfume, do Süskind(http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Perfume)

Fernando Correia de Oliveira disse...

parece que este estudo é o mais importante recentemente publicado: http://www.amazon.com/Scent-Desire-Discovering-Enigmatic-Sense/dp/0060825383

Anónimo disse...

Um odor fácilmente reconhecido em certas Lojas:

"Os componentes do incenso são o Benjoim e o Líbano.O Benjoim é um potente purificador e tende a dissolver os pensamentos sensuais. O Líbano estabelece calma no ambiente e estimula o Corpo Astral às emoções que capacitam as pessoas a responderem às influências superiores."

Alexandre

Fernando Correia de Oliveira disse...

mas, o melhor artigo de divulgação parece-me ser este: http://www.nytimes.com/2008/08/05/science/05angier.html?_r=0

Rui Franco disse...

A mim, passar no túnel do Rossio fazia-me sempre lembrar de umas férias em Macau :)

Helena Sacadura Cabral disse...

A alfazema ficará para sempre ligada à primavera e à minha avó Joana que, nessa altura do ano, punha ao sol as roupas de cama e depois as guardava envoltas em saquinhos de alfazema.
Também a essa saudosa avó ligo o cheiro da canela que emanava do seu bolo de maçã, que semanalmente faço na minha casa.
Bons cheiros aqueles que lembram os que amamos!

Anónimo disse...

Caro dr Seixas.

Nas polarizações do nosso cérebro há uma que tem por nome "rinencéfalo".

Eis o órgão responsável pelas memórias afetivas, que estão na génese de infindáveis comportamentos.

Guilherme.

Unknown disse...

Só aqui venho para homenagear um bom Amigo, o Embaixador Pinto da França. Andámos ambos pelas mesmas carteiras da mesma escola.

Mas não pude ir ao funeral e à missa do sétimo dia, porque convalescia dessa estranha coisa que me aconteceu.

Mas fui ao aeroporto esperar outro Amigo excelente, o Embaixador Andras Gullyas, que até dormiu em minha casa para no dia seguinte ir à missa do sétimo dia. Hellas...

Quanto aos cheiros, creio que a sugestão do Fernando Correia de Campos é magnífica.

Anónimo disse...

Não conheço nenhum artigo científico sobre a questão, mas, numa perspectiva literária, há a referência incontornável da madalena de Proust, em À la Recherche du temps perdu : é sem dúvida a grande abordagem literária das reminiscências olfactivas.

Cumprimentos,

Pedro Santos

Carlos de Jesus disse...

Um outro livro que me ocorre, nada a ver com a divulgação científica, é "Le parfum" de Patrick Suskind.

Anónimo disse...

Uma vez a caminho da Puc no Rio de Janeiro passei por uma casa com um jardim donde vinha o cheiro inconfundivel do perfume da minhas queridas tias e de repente senti o efeito da Madalena do Proust estava outra vez com 10 anos . Saudades do António que tinha sempre tão boas historias para contar.

ARD disse...

A "Recherche", claro, sempre.
Michela Pollak, "Memória e Identidade social";
António Damásio, "O Livro da Consciência";
Espinoza, "Tratado da Correcção do Intelecto".
Borges, quase todo o Borges.
Mas talvez não valha a pena perceber tudo:
"“A memória é como o homem atingido
pela flecha envenenada: antes que curem
a ferida ele pergunta quem o atingiu,
como se chama, onde está, o seu aspecto.
Então talvez saiba mais sobre a flecha
e o archeiro, mas é demasiado tarde
para ser salvo”

Pedro Mexia, "A Flecha Envenenada", in "Em Memória", 2000

Anónimo disse...

Boa tarde,

Parece que a muitos chegou o cheiro das madeleines de Proust. Foi o primeiro que me ocorreu mas depois, ainda na literatura Francdesa, recordei M. Yourcenar, "Memorias de Adriano":

"Agradava-me o odor das carnes assadas e o ruido das marmitas nas festas do exercito.

Tolerava bastante bem o odor das frituras nas pracas publicas no tempo das Saturnais"

Passei depois a recordar outro autor preferido, R. Musil e seus odores:

"I recollect vividly a second memory attached to smell: that of the chinchilla fur that belonged to my mother. A smell like snow in the air mingled with a little camphor."

E ha tanto mais...Nem ainda enfiei na literatura Portuguesa, ou Inglesa, Elliot(lilases, jacintos..)

Bom fim de semana com bons odores...

Saudades de Londres

F. Crabtree

patricio branco disse...

pois não sei, deve haver muita obra sobre o cheiro ou olfacto e a memória olfactiva, talvez perguntar a um otorrino, há uns anos estava de moda escrever histórias de tudo, talvez haja uma historia do olfacto, confundindo-se com o cheiro há o sentido gustativo, são como as duas faces da mesma moeda, etc

ARD disse...

Como disse Proust, "a melhor parte da nossa memória está (...) fora de nós. Está num ar de chuva, num cheiro a quarto fechado ou no de um primeiro fogaréu, seja onde for que de nós mesmos encontremos aquilo que a nossa inteligência pusera de parte, a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando se esgotam todas as outras, sabe ainda fazer-nos chorar".

Anónimo disse...


Também me acontece, de quando em vez, ficar a "matutar" de onde conheço determinados cheiros.
São esses da casa das tias das Pedras Salgadas, são os do parque (estes a terra molhada), são os das groselhas no quintal dos meus pais, são os da cera em soalhos acabados de encerar em todas as casas antigas da família.

Depois, há o Perfume, de Suskind, um dos livros meus favoritos.

Anónimo disse...

E o filme?! Aquele filme "Perfume de mulher"...

Teresa Júdice da Costa disse...

Para além de muitas e muitas outras coisas, do meu Tio António fica o cheiro/a memória das suas cigarrilhas (noutros tempos idos cachimbo) ora pensativas ora frenéticas!...
Obrigada pela partilha
Teresa Júdice da Costa

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