(Na noite/manhã do Brexit, publiquei no Observador, a convite desse site, o texto que se segue. Dei-me agora conta de que, por lapso, não o reproduzi, como sempre faço, quanto mais não seja "for the record", neste blogue.)
David Cameron vai ficar na História do Reino Unido e da Europa. É mais do que um pé-de-página. É o titular de um dos mais tristes capítulos que um país com a responsabilidade global do Reino Unido inscreve no curso dos factos europeus.
O primeiro-ministro cessante, que os últimos meses consagraram como um irresponsável bombeiro pirómano, brincou com o futuro do seu país para tentar sarar uma ferida partidária que só acabou por agravar. Fez emergir, com uma evidência sem par, uma detalhada agenda eurocrítica que vai agora ser apropriada por setores em todos os Estados membros. Só partilho com ele a sua derrota.
O anúncio da saída britânica da União vai estimular pulsões referendárias noutros Estados membros e, em alguns outros, suscitar “condições” para a permanência no projeto comum, que passarão por alguma maior “flexibilidade”, isto é, pela aproximação e aproveitamento de alguns aspetos da integração diferenciada de que o Reino Unido já dispunha. As eleições presidenciais francesas estão à porta e o dia de ontem não podia ter corrido melhor a Marine Le Pen.
Alguns dirão: se mais de metade dos eleitores britânicos votaram contra a permanência do seu país na União é que, pela certa, alguma razão terão.
Claro que sim! Nenhum eleitorado fica insensível a uma campanha demagógica que colocou a União Europeia como a fonte de todos os males, como o bode expiatório de tudo quanto não funciona, dos migrantes à burocracia, da insegurança das ruas à do emprego.
E, particularmente, nenhum eleitorado consegue reagir a esta demagogia organizada se, ao seu lado, não tiver uma pedagogia assumida oficialmente em favor da Europa, da causa europeia, dos valores do projeto integracionista, dessa soma de vontades que trouxe décadas de paz, de estabilidade e de bem-estar a centenas de milhões de pessoas. E de esperança a muita gente, como os cidadãos das antigas “democracias populares”, que perceberam que era a este projeto de sucesso que queriam aliar-se, para a defesa da democracia conquistada, do desenvolvimento desejado, da segurança coletiva que nele vislumbram.
Cameron, ao invés, fez uma campanha através do medo, instilando a angústia do salto para o desconhecido, a isso juntando o sublinhar egoísta daquilo que supostamente tinha conseguido para o Reino Unido – aquilo que os outros não tinham! Até explicou, sob o silêncio vergonhoso mas não envergonhado dos líderes europeus que a isso o autorizaram, que podia vangloriar-se de ter limitado os direitos sociais ligados a essa imensa conquista (passada) que era a livre circulação de pessoas no espaço comunitário, complemento indispensável do mercado interno de que Londres é um dos maiores beneficiários.
O Reino Unido, contudo, já tinha quase tudo. Não estava na moeda única, pelo que detém autonomia monetária, isenta os seus bancos da supervisão do BCE, gere a seu bel-prazer a política de rendimentos e preços, não se preocupava com o Pacto de Estabilidade do senhor Theo Weigel nem com os limites do Tratado Orçamental. No orçamento, beneficiava do seu indiscutido “rebate” (ou cheque compensatório de volta), obtido por Margareth Thatcher. Pela City londrina passam 40% dos títulos emitidos em euros. Etc, etc., porque a lista das “exceções” britânicas é bem mais longa e, espante-se que não souber, nem a Carta dos Direitos Fundamentais lhe tinha escapado.
Em relação à Europa, os primeiros-ministros britânicos foram formatados num “template” tipo Alberto João Jardim, que empochava as conquistas obtidas, “taken for granted”, e, no minuto seguinte, logo reclamava novas vantagens e concessões. Ser ilha terá alguma coisa a ver com essa similitude?
A União Europeia nunca soube, desde sempre, lidar com o Reino Unido. Pressentia a importância de não perder a 5ª economia do mundo (e a 2ª no seu seio), com lugar na foto de família sorridente do G8, o seu poder militar mais significativo, uma voz internacional (com assento permanente e veto no Conselho de Segurança da ONU), com uma rainha que ciclicamente encena o sucedâneo coreográfico do império que é a Commonwealth.
Desde o dia 1 da sua entrada no clube europeu, o Reino Unido consagrou-se como um parceiro relutante, difícil, cioso da diferença. Estava, diga-se, no seu pleno direito, como estava no direito dos restantes parceiros terem resistido a esse tropismo endémico, em busca galopante do regime de “exceção”. Se, em tempo oportuno, lhes tivesse sido dito “se estão mal, mudem-se!”, talvez não tivéssemos entrado por este plano inclinado, politicamente obsceno, de “opt out” sistemáticos. Esse movimento descendente, erigido como política oficial, apontava, a prazo, para o destino deste “opt out” final.
O Brexit passou. Mas, volto atrás, a mais de metade da opinião pública britânica, que agora se revoltou contra a União Europeia, vai, com toda a certeza, pressionar – porque a democracia parlamentar no Reino Unido funciona – os seus deputados e governos por resultados concretos, exigindo tudo aqui que, afinal, não tinham por “culpa de Bruxelas”. E a outra quase metade, derrotada na sua aposta em ficar, vai exigir ao poder que sobrar em Londres que lhe garanta o que, com o tempo, se tornará mais evidente serem as vantagens que, afinal, advinham da pertença ao clube com sede em Bruxelas. Não vai ser fácil ser governo em Londres na próxima década.
No imediato, confesso que não posso esperar para ver a prosápia de Cameron, naquele “perpwalk” que vai ser a sua entrada – encenada, apressada, vigorosa – no Justus Lipsius, daqui a dias, lá por Bruxelas. Estou interessado em perceber como vai ele, como os britânicos quase sempre fazem, fazer da derrota uma imensa vitória. A menos que tenha a decência de “step out”, o que está longe de ser certo.
A questão britânica importa-me, naturalmente, mas interessa-me muito mais, confesso, o futuro europeu. E aqui, como dizem os ingleses, estamos em “unchartered waters”, isto é, no nosso poético dizer, “por águas nunca antes navegadas”. Até pode acontecer que, passada uma turbulência inicial, mais ou menos controlada politicamente, este “Lehman Brothers” europeu acabe por amainar, na ciclotimia dos mercados. E até há quem diga que, daqui a semanas, todos concluiremos que, afinal, este traumatismo tido por cataclismo não passou de um susto, como o “millenium bug”.
Mas não, não vai ser assim, quaisquer que seja o percurso dos primeiros tempos. O Reino Unido vai ter de votar, no plano parlamentar, o “leave” – e nós sabemos que a democracia britânica tem uma linearidade que, neste domínio, nos não trará surpresas. Antes ou depois disso, Londres vai ser forçado a invocar o Artigo 50º do Tratado de Lisboa e uma longa negociação de “divórcio” (litigioso, podem crer) vai iniciar-se.
Não é fácil lidar com os britânicos em terreno de negócios. Como alguém dizia, “os ingleses não têm amigos, têm interesses”. Às vezes, contudo, têm interesse em ter amigos, mas agora alienaram-nos. Vamos, a Europa que resta, ter grandes dificuldades pela frente, desde logo desmantelar todo o arsenal de acordos externos que a União (com os britânicos dentro) tem. São “só” 54 países! Londres tem os direitos dos nossos trabalhadores como reféns, pelo que isso será moeda de troca valiosa para o que viermos a exigir deles.
Este passo britânico vai ter efeitos muito deletérios no ambiente europeu. No passado, sempre falámos de “construção europeia”, agora iniciámos um tempo novo, o da “desconstrução”. Como disse, o tropismo em favor da generalização de “exceções” pode começar a “cogumelizar” (os ingleses têm para isso a bela expressão “mushrooming”, faça-se-lhes essa justiça!) por aí adiante. E isso, ao contrário do que alguns pretendentes caseiros à recuperação de soberania possam pensar, pode virar-se contra nós, contra Portugal.
Eu explico: no estado caótico em que o projeto europeu se encontra, sem lideranças nem visões de futuro, esta decisão britânica, por muito que demore a concretizar-se, abre um ambiente favorável a que germinem algumas ideias em torno de uma espécie de “refundação”, assente nesse saudoso núcleo duro que viveu as “trente glorieuses” (os trinta anos de sucesso económico), com mão-de-obra barata, protecionismo aduaneiro e outras delícias. Foi um tempo que permitiu estruturar o modelo social europeu, agora em risco por um endémico crescimento sofrível, fruto da perda de competitividade europeia, por uma má gestão da globalização, a que se soma uma crise demográfica que não é compensada, por razões políticas que este referendo deixou bem evidentes, por uma política racional de imigração.
E tenho para mim muito claro que qualquer modelo centrípeto dessa natureza implicará a formação de um “núcleo duro”, para a entrada no qual será preciso mais do que vontade, isto é, será essencial ter capacidade económica e sustentabilidade financeira, nos termos que a Alemanha vier a ditar. Nesse modelo, dificilmente Portugal estará presente. Esta é a minha convicção, mas adoraria estar enganado.