A retórica da História está cheia de momentos “históricos”,
passe o pleonasmo. Alguns acabam por sê-lo, outros desaparecem na espuma dos
dias seguintes.
No Dia da Europa, alguém me perguntava se, na data em que
foi assinado o Tratado da adesão às instituições europeias, em 1985, eu havia
tido a consciência desse dia ser o marco fundamental que acabou por ser, no
percurso da nossa modernidade como país. Nunca me tinha colocado a questão. E,
olhando-me à época, tive modestamente que admitir que não: com certeza que
achei muito importante o momento, mas não tive a presciência para aquilatar do
profundo impacto que a adesão iria ter no futuro de todos nós. O que também se
justifica pelo facto das Comunidades Europeias de então estarem a “anos-luz” da
densidade de políticas da atual União, em cuja construção, convém lembrar, nem
sempre fomos os atores de somenos que hoje somos.
Vem isto a propósito das recentes eleições no Reino Unido.
Da surpresa e da magnitude do resultado todos falaram. Sobre as incógnitas que
dele podem vir a resultar vários já elaboraram. E, no entanto, pode vir a
dar-se o caso da data de 7 de maio de 2015 acabar por ficar marcada como
“histórica” nos anais europeus. E não necessariamente pelas melhores razões.
Há já algum tempo, David Cameron, o reconfirmado chefe do
governo britânico, anunciou que, se fosse reeleito, organizaria, em 2017, um
referendo nacional sobre a permanência do seu país na União Europeia. Foi um
“truque” para apaziguar o endémico euroceticismo, e mesmo anti-europeísmo, que
sempre pairou sobre o Reino Unido, que tinha dado alento à criação do
eurofóbico UKIP.
O Reino Unido não é membro do euro, não faz parte da zona
Schengen e auto-exclui-se recorrentemente de várias políticas da UE. No Conselho
de Segurança da ONU (tal como a França) recusa-se a aplicar a solidariedade
europeia no concerto antecipado das decisões. Sem a menor dúvida, é, desde
sempre, um dos maiores beneficiários do Mercado Interno europeu, recebe fatias
importantes das ajudas comunitárias, quer em fundos estruturais (para as suas
regiões mais pobres), quer através da Política Agrícola Comum. Graças à genialidade
negocial de Margareth Thatcher, continua a usufruir de um anacrónico “rebate” –
um cheque dado pela União, a pretexto de uma mais do que duvidosa compensação
financeira, que os restantes Estados são obrigados ciclicamente a aceitar, para
comprar a “pax britannica” nos corredores de Bruxelas.
Preparemo-nos agora para assistir a uma espécie de pouco
subtil chantagem. Cameron já deixou claro que, para “vender” internamente o
“sim” – que não duvido ser do interesse objetivo do resto da Europa -, vai ter
de obter cedências em termos de “devolution”, isto é, vai querer repatriar para
a Câmara dos Comuns alguns dos poderes com que em Bruxelas se tem construído a
unidade europeia. Com esta atitude, alguns outros países, onde o euroceticismo
faz hoje também o seu curso, procurarão aproveitar o “comboio” para incluir
outras reivindicações idênticas. Não nos deveremos espantar se, nos próximos
tempos, vier a gerar-se uma tentativa de desmantelamento de algum do acervo que
fez o sucesso do projeto europeu. A começar pela livre circulação no espaço
europeu, questão da maior importância para um país como Portugal, que tem cada
vez mais uma parte de si próprio espalhado pela Europa.
Mas não é tudo. Para tornar o 7 de maio numa data histórica,
poderá estar aí, ao virar da esquina, a independência da Escócia. E então, bom
dia, Catalunha!
(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")