segunda-feira, maio 11, 2015

E se a História acontece?


A retórica da História está cheia de momentos “históricos”, passe o pleonasmo. Alguns acabam por sê-lo, outros desaparecem na espuma dos dias seguintes.

No Dia da Europa, alguém me perguntava se, na data em que foi assinado o Tratado da adesão às instituições europeias, em 1985, eu havia tido a consciência desse dia ser o marco fundamental que acabou por ser, no percurso da nossa modernidade como país. Nunca me tinha colocado a questão. E, olhando-me à época, tive modestamente que admitir que não: com certeza que achei muito importante o momento, mas não tive a presciência para aquilatar do profundo impacto que a adesão iria ter no futuro de todos nós. O que também se justifica pelo facto das Comunidades Europeias de então estarem a “anos-luz” da densidade de políticas da atual União, em cuja construção, convém lembrar, nem sempre fomos os atores de somenos que hoje somos.

Vem isto a propósito das recentes eleições no Reino Unido. Da surpresa e da magnitude do resultado todos falaram. Sobre as incógnitas que dele podem vir a resultar vários já elaboraram. E, no entanto, pode vir a dar-se o caso da data de 7 de maio de 2015 acabar por ficar marcada como “histórica” nos anais europeus. E não necessariamente pelas melhores razões.

Há já algum tempo, David Cameron, o reconfirmado chefe do governo britânico, anunciou que, se fosse reeleito, organizaria, em 2017, um referendo nacional sobre a permanência do seu país na União Europeia. Foi um “truque” para apaziguar o endémico euroceticismo, e mesmo anti-europeísmo, que sempre pairou sobre o Reino Unido, que tinha dado alento à criação do eurofóbico UKIP.

O Reino Unido não é membro do euro, não faz parte da zona Schengen e auto-exclui-se recorrentemente de várias políticas da UE. No Conselho de Segurança da ONU (tal como a França) recusa-se a aplicar a solidariedade europeia no concerto antecipado das decisões. Sem a menor dúvida, é, desde sempre, um dos maiores beneficiários do Mercado Interno europeu, recebe fatias importantes das ajudas comunitárias, quer em fundos estruturais (para as suas regiões mais pobres), quer através da Política Agrícola Comum. Graças à genialidade negocial de Margareth Thatcher, continua a usufruir de um anacrónico “rebate” – um cheque dado pela União, a pretexto de uma mais do que duvidosa compensação financeira, que os restantes Estados são obrigados ciclicamente a aceitar, para comprar a “pax britannica” nos corredores de Bruxelas.

Preparemo-nos agora para assistir a uma espécie de pouco subtil chantagem. Cameron já deixou claro que, para “vender” internamente o “sim” – que não duvido ser do interesse objetivo do resto da Europa -, vai ter de obter cedências em termos de “devolution”, isto é, vai querer repatriar para a Câmara dos Comuns alguns dos poderes com que em Bruxelas se tem construído a unidade europeia. Com esta atitude, alguns outros países, onde o euroceticismo faz hoje também o seu curso, procurarão aproveitar o “comboio” para incluir outras reivindicações idênticas. Não nos deveremos espantar se, nos próximos tempos, vier a gerar-se uma tentativa de desmantelamento de algum do acervo que fez o sucesso do projeto europeu. A começar pela livre circulação no espaço europeu, questão da maior importância para um país como Portugal, que tem cada vez mais uma parte de si próprio espalhado pela Europa.

Mas não é tudo. Para tornar o 7 de maio numa data histórica, poderá estar aí, ao virar da esquina, a independência da Escócia. E então, bom dia, Catalunha!

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

2 comentários:

Anónimo disse...

Só haverá retrocesso se houver guerra (entre os estados europeus, diga-se) e esta só aconteceria com líderes timoratos, o que não é o caso de Angela Merkel como ontem se viu.
Mas reconheço que não vejo mais ninguém para já!

Unknown disse...

Mas a independecia da Catalunha e da Escocia não me parece nada de negativo para UE como eu a vejo. Alias até poderá ser benéfica para travar a tradicional "chantagem" como que os bons negicoadores ingleses retiram muitas vantagens para os cofres nacionais.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...