O comentário que o cavalheiro inglês fez para a sua mulher, ontem, numa loja do aeroporto de Málaga, fez-me sorrir: "este cheiro lembra-me qualquer coisa!" O curioso é que eu estava a pensar precisamente o mesmo, embora, no meu caso, não tivesse a menor dúvida: era o da uma loja, em Greenwich Village, no fundo da 7a avenida, em Nova Iorque, em dezembro de 1972. Era um odor perfumado, com algo de oriental, que ia bem com algum ambiente da época. Não faço ideia do que é, mas tenho a certeza absoluta de me não enganar.
Uma vez, trocando impressões com António Pinto da França, um grande amigo que há pouco se foi, dei-me conta de que comungávamos o facto de mantermos uma memória olfativa muito aguda, ligada a certos momentos da vida que tinham ficado registados para sempre. E comentámos o facto de conhecermos outras pessoas com idêntica experiência.
Sucede-me de vez em quando, embora de forma não muito frequente: entro num local, tenho uma certa perceção olfativa e, às vezes, quase sem esforço de memória, regresso por um instante a um certo local e a um tempo, sempre longínquo, onde essa perceção já se produziu. O curioso é que isso não corresponde, necessariamente, a ocasiões ou locais marcantes do passado, mas a tempos banais. Ou, então, a minha memória não os considera tão banais como isso.
Algumas vezes me tenho encontrado com o cheiro típico da cera das escadas do Clube de Vila Real, nos anos 60. Há tempos, numa esquina não sei bem onde, surgiu-me o odor que emanava de uma mercearia da rua Alexandre Braga, no Porto, um misto de café e especiarias, no meu tempo de universidade. Lembro-me bem do aroma, acolhedor, da copa da cozinha das minhas tias, nas Pedras Salgadas, com um fundo inconfundível de marmelada. E, há uns meses, ao entrar num escritório, dei "de narinas" com o cheiro que emanava das madeiras da nova Biblioteca Nacional de Lisboa, no início dos anos 70. Guardo quase uma vintena, bem identificada e razoavelmente datada, desses locais e dessas impressões olfativas.
Este verão, em Viana do Castelo, decidi "ir à procura" do cheiro eterno do corredor que levava ao sótão (à "torre") da casa da minha avó. Pedi para visitar a casa, hoje uma bela escola de música. Sem grande surpresa, do cheiro dessa casa antiga, onde já não ia há quatro décadas, "nem o cheiro". Perguntei então se podia ir à cave, à "loja", como lhe chamávamos. E lá estava ele, entre arquivos, um outro confortante odor, feito de humidade, poeira e memória. Pronto, tinha ganho o meu dia!
Ficarei grato a quem me possa indicar um livro sobre cheiros e memórias. Havendo coisas escritas sobre tudo, estou certo que existirá algo sobre isso.