Ontem, ao receber a visita do meu novo colega cipriota, recordei-me de uma história passada em 1999, que se liga à existência das duas entidades que dividem, de facto, a ilha de Chipre.
A República de Chipre é hoje um Estado membro da União Europeia. Cerca de 40% do seu território está sob controlo da chamada "República Turca de Chipre Norte", uma entidade criada em 1983, que só é reconhecida pela Turquia e que resultou de um conflito armado, em 1974, que opôs as comunidades cipriotas grega e turca. Nesse ano, uma invasão por tropas da Turquia, após uma tentativa de golpe de Estado para forçar uma anexação à Grécia, provocou a divisão forçada da ilha. Um complexo e não conclusivo diálogo entre as duas partes tem vindo a prolongar-se, desde então. A "linha verde" que divide ambos os espaços tem uma "buffer zone" controlada pela ONU, o que justifica a presença no terreno da sua mais antiga operação de manutenção de paz.
Nesse ano de 1999, fiz uma visita de trabalho a Nicósia, a fim de preparar a nossa presidência da União Europeia, no primeiro semestre do ano seguinte. Lembro-me de ter falado longamente com o então presidente da República, Glafcos Clerides, e com ministro dos Negócios Estrangeiros, George Kasoulides, sobre o processo de adesão do país à UE, muito apoiado pela Grécia, mas que, à época, tinha à sua frente alguns sérios escolhos, colocados por alguns parceiros. Desses interlocutores recolhi também a sua perspetiva sobre os problemas intra-comunidades na ilha.
Meses mais tarde, já no exercício da nossa presidência da União Europeia, visitei Ancara. Os turcos são a verdadeira e indisfarçada tutela de "Chipre Norte", pelo que o assunto faz parte integrante de qualquer diálogo seu com a UE. Para além da questão da sua própria adesão à UE, a Turquia deu sempre uma grande importância à questão cipriota e eu não me pude nem quis furtar-me a debater o assunto, quer com o meu homólogo, Mehmet İrtemçelik, quer com İsmail Cem, o ministro dos Negócios Estrangeiros. Cem, que já desapareceu, era um homem muito simpático e bem preparado, e conservo um livro com fotografias suas que então me ofereceu, várias da quais tiradas nos bairros populares de Lisboa. A visão de ambos esses políticos turcos era, como é óbvio, oposta à que eu recolhera em Nicósia.
Mas eu iria ter uma surpresa, nesta minha visita a Ancara. O primeiro-ministro turco, Bülent Ecevit, teve a a simpatia de me receber em audiência. Ecevit era um homem pequeno, com um ar antigo e um bigode proeminente.
Era uma figura histórica da política turca, que alternou no poder
executivo de Ancara com o seu grande rival conservador, Süleyman
Demirel. Após as amabilidades introdutórias da praxe, colocou-me a seguinte questão: "Soube que esteve em Chipre há alguns meses. Por que razão não atravessou a "linha verde"?" Dito isto, ficou a olhar-me nos olhos, com um ar inquisitivo e profundo. Pelos vistos, estava bem informado sobre os passos dados em Chipre por alguém que mais não era do que um mero secretário de Estado de um país algo distante - um país que, no entanto, então como agora, defendia a presença plena da Turquia e de Chipre nas instituições europeias, sem que, contudo, deixasse de recusar abertamente o reconhecimento de "Chipre Norte".
"Decidi não atravessar a "linha verde", senhor primeiro-ministro, porque estava em Nicósia a convite do governo da República de Chipre. Naturalmente, só visitei a parte da ilha que está sob o seu controlo".
Ecevit tinha, porém, uma hábil réplica preparada: "Mas o seu homólogo espanhol, poucas semanas depois da sua ida a Chipre, atravessou a "linha verde" e falou com as autoridades de "Chipre Norte"! Porque não fez o mesmo?"
Por um segundo, hesitei, mas respondi-lhe: "É verdade, mas o meu colega espanhol estava na ilha na sua capacidade de representante da presidência da União Europeia e, por essa razão, era natural que procurasse falar com todas as partes. No meu caso, estava numa visita de natureza bilateral à República de Chipre, com a qual assinei mesmo um acordo em Nicósia, pelo que não considerei que fosse esse o contexto adequado para atravessar a "linha verde"".
Ecevit não deu mostras de ter ficado muito convencido da racionalidade imbatível da minha resposta. E eu, confesso hoje, também não...