terça-feira, novembro 24, 2009

Montecarlo

Ao ler hoje um texto sobre os tempos sombrios do Estado Novo, no interessante e muito recomendável blogue que é o Caminhos da Memória, recordei-me de um episódio passado nessa "catedral" da conversa que foi o Montecarlo, um café-restaurante perto do Saldanha, em Lisboa, hoje transformado, pela globalização ibérica, numa loja espanhola.

No Montecarlo, como escrevi um dia, "coabitavam mundos muito diversos, da tertúlia neo-realista à marginalidade sexual, do vário jornalismo a um certo "bas-fond", confinado este à área do dominó, protegida pelos bilhares. O Montecarlo era um curioso espaço plural, uma espécie de permanentes "estados gerais" de uma esquerda em definição de projectos que, quando abonada, assomava ao bife nas "toalhas" e, na rotina da crise, se resumia à imperial do fim da tarde ou à bica da noite"*.

A história passa-se no início dos anos 70. Nos cafés portugueses de então, havia uma velha prática, que os telemóveis entretanto tornaram sem sentido, de permitir aos clientes atenderem chamadas feitas para os telefones dos estabelecimentos. Assim, era muito vulgar ouvir: "Chamam ao telefone o sr. ....". No Montecarlo, com uma sala de considerável dimensão, distribuída por ambientes diversos muito ruidosos, havia mesmo um altifalante para tornar as mensagens mais audíveis.

Uma noite, com o café cheio, alguém se lembrou de utilizar a cabine telefónica que existia à entrada para os bilhares, ligou para o número do próprio café e solicitou: "Podia fazer o favor de chamar ao telefone o sr. general Humberto Delgado?". No balcão, estava um miúdo para quem esse era um nome como qualquer outro, pelo que logo anunciou: "Chamam ao telefone o sr. general Humberto Delgado". Grande parte da sala entrou em divertido alvoroço e comentários. Viu-se um empregado mais maduro ir repreender o rapazote, ensinando-lhe quem era o "general sem medo", talvez lembrando que os cavalos da repressão quase que haviam entrado pelo café dentro, em 1958, aquando da manifestação em favor do candidato presidencial oposicionista, em frente ao vizinho Liceu Camões.

Dias mais tarde, a cena repetiu-se com o nome de Álvaro Cunhal. A gestão do café percebeu o risco e uma figura mais madura passou a atender ao telefone, para que ninguém se aproveitasse da fragilidade em matéria de cultura política do rapazote do balcão. Mas essa "vigilância" não podia continuar sempre e, se bem me lembro (e tenho boas razões para isso...), ainda foram chamados ao telefone, nas semanas seguintes, Henrique Galvão, Palma Inácio e Norton de Matos, sempre com galhofa pública garantida. Aparentemente, nunca ninguém se lembrou de olhar para a cabine telefónica do café...

*Do texto "Vésperas de Abril", publicado na revista "Camões", nº 5, 1999

segunda-feira, novembro 23, 2009

Pomar em Brasília

Júlio Pomar é hoje um dos mais importantes pintores portugueses. Vive entre Paris e Lisboa. Hoje, em Brasília, é inaugurado um seu painel de azulejos, que passa a figurar numa longa parede da Biblioteca, esse magnífico edifício desenhado por Oscar Niemeyer na Esplanada dos Ministérios. Assim se conclui a ideia, em que me envolvi há quatro anos, de recuperar este trabalho. A obra original de Júlio Pomar, com mais de duas décadas, havia sido desmontada do local onde estivera colocada e jazia armazenada em caixotes.

Graças à persistência da Secretaria da Cultura do governo do Distrito Federal, com a ajuda financeira da Caixa Geral de Depósitos, o projecto de recuperação foi levado avante, como o Correio Braziliense ontem assinala e o Portugal Digital hoje refere.

Na vida diplomática, nem sempre conseguimos concretizar aquilo a que nos propomos. Mas, às vezes. isso acontece. Brasília merece bem este belo painel, sonhado por Júlio Pomar e por alguém que muito gostaria de o ver no local onde agora fica, essa grande figura da lusofonia que foi José Aparecido de Oliveira.

Fresnes

Visitar uma prisão não é necessariamente uma experiência simpática. Mas pode ser muito útil quando pretendemos estabelecer as melhores formas de articular os nossos serviços em França com a rede penitenciária que acolhe as cerca de cinco centenas de detidos de nacionalidade portuguesa, hoje distribuídos por 116 diferentes estabelecimentos prisionais neste país.

Visitei hoje a prisão de Fresnes, um imóvel do início do século XX, em condições muito satisfatórias, onde estão apenas 35 desses detidos, a quem, como aos restantes, vamos procurar tentar assegurar um Natal mais confortável. Para tal contamos nesta prisão com a ajuda de uma religiosa portuguesa, a Irmã Elisa - este ano distinguida com o Prémio Talento -, que desempenha um trabalho notável junto da população prisional que tem nacionalidade portuguesa.

domingo, novembro 22, 2009

Necessidades

Num post antigo, falou-se aqui das malas diplomáticas que, no ministério dos Negócios Estrangeiros, eram transportadas através da Europa (e para os EUA) por jovens profissionais, quase sempre nos seus tempos iniciais da carreira. Era uma tarefa agradável, embora algo cansativa, pelo somatório de viagens consecutivas que implicava, nos seis dias da tarefa.

Numa dessa semanas, creio que em 1978, coube-me a mim "ir de mala". Uma das etapas do circuito desse tempo era Belgrado. Era aí que estava instalada a Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa (CSCE), que iria dar origem à OSCE, já no período da "détente". Mal eu sabia que, anos mais tarde, ainda me iriam calhar dois anos de "osceosidade", em Viena!

Saído de Lisboa, passei, em dias sucessivos, por Londres e por Bruxelas. A bem dizer, era este o destino principal da "mala acompanhada", por aí se situar a sede da NATO. De Bruxelas, parti para Viena, onde a esmagadora maioria da correspondência que eu levava iria desaparecer, encaminhada para postos dos antigos países comunistas, de onde as nossas Embaixadas enviavam à capital austríaca os seus diplomatas, para a respectiva recolha e canalização dos seus relatórios para Lisboa. Já pouco seguia na mala para Belgrado, a ajuizar pelo tamanho do pacote que me havia sido entregue em Viena, cujo conteúdo, naturalmente, eu desconhecia.

Belgrado, num inverno sob neve, era uma cidade cinzenta e algo desconfortável. De autocarro, fui parar, já muito ao final da tarde, ao imenso Hotel Jugoslávia. Passava da hora de fecho da nossa missão temporária junto da CSCE, pelo que decidi ficar com a mala diplomática à minha guarda (período das refeições incluído, porque não era permitido perdê-la de vista) e entregá-la no dia seguinte, logo de manhã.

Tomava eu um banho reconfortante no hotel, preparando-me para jantar, quando me chega um telefonema da secretária do Embaixador, dizendo-me que o embaixador queria que eu fosse, ainda naquele dia, ao escritório da missão, para entregar a mala. Reagi, dizendo que era já muito tarde. Qual quê!? O embaixador insistia e pedia mesmo que eu fosse de táxi, porque não podia dispensar o seu motorista. Furioso, lá tive de encasacar-me para o gelo da cidade, no fundo algo intrigado com a estranha urgência da documentação. Mas, quem sabe?, podia tratar-se de instruções para uma diligência ou contactos.

Chegado à missão, fui levado à presença do embaixador, que exclamou: "Ora temos então aqui a nossa mala! Já não era sem tempo!", numa clara "indirecta" à minha resistência, complementada pela displicência com que me saudou. Preparava-me para sair do gabinete e regressar ao hotel quando me dei conta que embaixador se mostrava muito empenhado a ser ele próprio a quebrar os selos diplomáticos do pacote. Por curiosidade, deixei-me ficar na cena. E foi então que assisti à aparição de um embrulho, saído de dentro do pacote que, com toda a segurança e cuidado, eu transportara por várias capitais. Vi os olhos do embaixador encherem-se de alegria: "Até que enfim! Estava a ver que o nosso colega de Havana nunca mais se despachava!". E lá abriu ele, com a avidez do vício, a sua caixa de "Cohibas", pelos visto a única "correspondência" relevante que, para escapar aos riscos da espionagem comunista, nesses derradeiros anos da Guerra Fria, eu levara em mão até Belgrado...

Chirac e o Irão

Acho interessante deixar aqui registado o que o antigo presidente francês, Jacques Chirac, exprime no seu recente livro de memórias "Chaque pas doit être un but" (pag. 349), sobre a forma desejável de relacionamento com o Irão:

"Je ne suis pas de ceux qui pensent, en Occident, qu'on doit s'interdire tout dialogue avec l'Iran, étant donné la nature du régime. Un régime politique est une chose. L'histoire d'un peuple, de sa culture, de ses traditions, en est une autre, plus importante et determinante. Ma philosophie en la matière est qu'on n'a jamais intérêt, ou rarement, à mettre un pays hors jeu de la communauté internationale. Au lieu de le convaincre de rentrer dans le rang, c'est en général l'éffet inverse qui se produit: una radicalisation sans issue, de part et d'autre. S'agissant, qui plus est, d'une région du monde où tous les problèmes s'entremêlent, aucun d'eux, qu'il s'agisse du conflit israélo-palestinien, de la guerre Irak-Iran ou de la question libanaise, ne saurait être réglé sans tenir compte de toutes parties en présence."

É a longa experiência de um homem de Estado que conduz a esta avaliação.

sábado, novembro 21, 2009

Jorge Ferreira (1961-2009)

Morreu Jorge Ferreira.

Conhecemo-nos na política, quando eu por lá passei e ele representava uma voz crítica, mas sempre muito informada, sobre as coisas da Europa. Voltámos a "ver-nos" nos blogues, onde ele alimentava (até há dois dias) o "Tomar Partido". Partilhava com ele essa atitude, felizmente ainda comum a muita gente, que é gostar de Portugal.

Torre portuguesa

Eu não queria acreditar, mas um industrial português de metalomecânica explicou-me, há dias, que Portugal é o maior fabricante de porta-chaves e outras miniaturas da Torre Eiffel que estão à venda em Paris.

sexta-feira, novembro 20, 2009

A mão francesa (2)

"Com mãos se faz a paz se faz a guerra
com mãos tudo se faz e se desfaz"

Lembrei-me do belo poema de Manuel Alegre que assim começa ao apreciar a discussão em torno do golo ilegal que qualificou a França para a fase final do campeonato do mundo de futebol.

Estes são momentos de verdade para avaliar se o "futebolismo" acéfalo ultrapassa alguma racionalidade. Nos comentários franceses ao falso golo criado por Thierry Henry, viu-se de tudo: desde os que lamentaram o acontecido e criticaram a falsa inocência assumida por Henry, até aos adeptos do "vale tudo desde que se ganhe". Posso estar enganado, mas tenho a sensação que, no conjunto dos comentários lidos e ouvidos, prevaleceu por aqui um certo sentimento de se estar "mal à l'aise" e mesmo com vergonha pelo facto da França ter ganho o acesso desta forma. Interessante foi ver muitos sectores da classe política desgostosos com o que se passou, parte dos quais reclamando mesmo a (impossível) repetição do jogo. Atitude de "fair play" que acho extremamente saudável.

Pergunto-me para que lado teria pendido a nossa balança de comentários se o mesmo caso se tivesse passado com a selecção portuguesa? Lembro-me de um antigo dirigente desportivo, com uma formação profissional que o vocacionava para equilíbrio de julgamento, que um dia disse mais ou menos isto: "quero que o meu clube ganhe, mesmo que seja com um golo marcado com a mão, em posição de fora de jogo e já depois do tempo regulamentar". Em todo o mundo há gente (pelo menos a pensar) assim, mas, se isto é desporto, vou ali e já venho.

Uma última nota para referir que, naturalmente, veio por aqui várias vezes à colação, nas últimas horas, a célebre "mão do Vata", um lance ilegal com que o Benfica derrotou o Olympique de Marseille. Foi há 19 anos, mas só os elefantes têm mais memória que os adeptos de futebol...

quinta-feira, novembro 19, 2009

Pedagogia em Português

Ontem iniciadas, prosseguem hoje as V Jornadas Pedagógicas, destinadas à formação de educadores em língua portuguesa que operam em França. Troca de experiências, novas técnicas e o uso da internet são algumas das vertentes deste encontro, que tem lugar num belo e histórico edifício em Sèvres, à entrada de Paris.

Com a ajuda da Caixa Geral de Depósitos e da TAP, pudemos trazer técnicos de Portugal e do Reino Unido, numa iniciativa organizada pelo serviço da Coordenação do Ensino Português em França, a que estão presentes dezenas de educadores. As Embaixadas do Brasil e de Cabo Verde associaram-se ao evento.

Na abertura das Jornadas, sublinhei a importância crescente da língua portuguesa no quadro internacional, destacando, em especial, a vontade comum encontrada a nível da CPLP para promover o Português no seio das instituições multilaterais. Fiz notar que, para os cidadãos de origem portuguesa no estrangeiro, a garantia das sucessivas gerações poderem manter-se ligadas à sua lingua originária já não constitui apenas uma atitude com sentido afectivo; o Português, num mundo onde países como o Brasil e Angola se afirmam com cada vez maior pujança económica, converte-se hoje numa "ferramenta" importante para as relações internacionais, numa mais-valia de qualificação. Neste último caso, o mesmo é válido para os franceses, que crescentemente procuram o ensino de português com objectivos profissionais.

O antigo ministro português da Cultura, Manuel Maria Carrilho, embaixador junto da UNESCO, enriqueceu estas jornadas com uma conferência onde deu a sua perspectiva sobre os desafios da língua portuguesa nas comunidades no exterior, falando do importante papel que os media poderiam ter para a valorização cultural das mesmas.

Europa

Com muito maior facilidade do que se supunha, os líderes europeus escolheram os dois titulares para os novos cargos abertos pelo Tratado de Lisboa.

Por ora, apenas três notas.

A primeira para chamar a atenção para o facto da Comissão Europeia poder ter condições para ver o seu papel institucional preservado. Isso vai no sentido da leitura que um país como Portugal sempre fez do processo europeu e dos seus equilíbrios desejáveis. Independentemente de ser ou não ser português o presidente da Comissão Europeia.

A segunda para sublinhar que a presença de uma figura britânica na chefia da nova diplomacia europeia deve confortar os dois países que, à partida, são mais abertamente contra uma reforma do Conselho de Segurança da ONU que consagre um lugar único para a União Europeia: Reino Unido e França.

A terceira para saudar a nomeação da primeira mulher para um cargo executivo europeu de topo.

A mão francesa

O título deste post não tem a conotação futebolística que alguns leitores estarão a atribuir-lhe. Com efeito, não vamos falar de Thierry Henry, vamos falar da Europa.

O dia de hoje parece poder vir a ser o das grandes decisões, no que toca à atribuição de dois grandes postos europeus: presidente do Conselho Europeu e Alto-Representante da União Europeia para as questões externas e de segurança.

Testemunhei, no passado, algumas noites similares, mas parece-me claro que estas primeiras decisões respeitantes ao Tratado de Lisboa têm uma importância bem mais significativa, porque representam uma redefinição do poder entre as instituições, a que não é indiferente o perfil das personalidades que vierem a ser escolhidas. Como já aqui referi há semanas, tendo em atenção a extrema dificuldade de, nos tempos mais próximos, vir a ser possível reunir um consenso institucional alternativo, o Tratado de Lisboa parece destinado a ter uma vida longa.

A propósito destes dias de escolhas de figuras europeias, recordo uma cena passada na ocasião em que a União Europeia seleccionou o primeiro presidente do Banco Central Europeu (BCE).

O debate em torno dos nomes foi muito intenso, porque estavam em jogo, não apenas o contraste de filosofias de gestão do órgão que iria gerir o euro, mas igualmente o prestígio de alguns países para os quais o respectivo peso económico-financeiro justificava a titularidade do lugar. Os nomes do holandês Wim Duisenberg e do francês Jean-Claude Trichet apareceram quase empatados na liça final, a ser decidida em "concílio" entre os presidentes e primeiro-ministros europeus, em face da impossibilidade, que cedo se detectou, de poder surgir uma recomendação dos ministros europeus das Finanças.

Por muitas horas, nesse dia 3 de Maio de 1998, com discussões bastante vivas e bem ácidas (a vida europeia não é feita de punhos de renda, podem crer!), com o surgimento, mais ou menos explícito, de contrapartidas noutros tabuleiros (uma técnica vetusta para obter compromissos importantes), os chefes de Estado e de governo mantiveram-se fechados na sala onde tivera lugar o respectivo almoço, que afinal se prolongou para bem dentro da hora do jantar. Para o exterior, alambicava apenas algum rumor residual, que a sedenta comunicação social reportava incessantemente e sem critério, com a segurança que os boatos podem garantir mas que, para os media, é já "informação". Como noutras ocasiões idênticas, as "fontes" viviam horas de glória.

O dia ia já bem longo, no edifício Justus Lipsius, em Bruxelas, quando, finalmente, surgiu o "fumo branco": o mandato do primeiro presidente do BCE ia ser dividido em duas partes, com Duisenberg a ser o primeiro designado e Trichet a assumir a segunda "fatia" do mandato. Foi esta a salomónica, embora algo debilitante, decisão que a presidência britânica da União Europeia encontrara para resolver o impasse.

Precedido por aquela revoada de gente que sempre anuncia o termo de muitas horas de discussão, o Conselho Europeu reuniu, numa inédita fórmula de cinco membros por delegação (normalmente, à mesa, estão apenas os primeiros-ministros e o ministro dos Negócios Estrangeiros). Desta vez, e justificadamente, os ministros das Finanças tomaram assento. Assim, Sousa Franco acompanhou António Guterres e Jaime Gama nos lugares portugueses. Atrás, dois "ajudantes": Teixeira dos Santos e eu próprio.

A reunião foi rápida. O primeiro-ministro britânico, Tony Blair, anunciou o acordo em torno do nome de Duisenberg como "primeiro presidente do BCE" mas, por compreensível formalismo, não explicitou o "gentlemen's agreement" que levaria ao abandono deste, ao final de quatro anos. Perguntou à sala se confirmava a nomeação e, no silêncio das delegações, a decisão foi dada por aprovada. E o holandês foi chamado à reunião. Entrou com um ar algo compungido, talvez pela limitação temporal imposta ao seu mandato, e, rodeando longamente as delegações, foi sentar-se ao lado da presidência. Convidado a pronunciar-se, disse uma palavras breves sobre a "honra" com que assumia as funções e saiu, sob um coro de palmas, muito de circunstância e de alívio.

Nesse preciso instante, na delegação ao lado da nossa, ergueu-se uma mão. A presidência da sessão demorou a notá-la, mas ela continuava bem evidente. Era Jacques Chirac. Terá sido o ruído dos comentários surpreendidos da sala, bem como um sonoro "Monsieur le Président!", que terá feito despertar Blair que, claramente surpreendido, acabou por dizer: "I give the floor to France".

Criou-se um silêncio de ouvir moscas. Chirac foi muito breve: "M. le Président, je prends note de la nomination que vient d'être faite, mais il faut qu'il soit clair que le candidat de la France est et reste M. Jean-Claude Trichet".

Pelos breves instantes que a todos demorou a fazer a exegese exacta das palavras de Chirac, o Conselho ficou suspenso. Tony Blair, utilizando uma fórmula que não recordo, deixou entender que o comentário do presidente francês era em tudo compatível com o que acabava de ser decidido e encerrou de imediato aquele que deve ter sido o Conselho Europeu formal mais curto da história comunitária. E lá fomos nós para as conferências de imprensa, a que sempre se seguia a apressada corrida para os aviões de função, para não perder o "slot" entretanto negociado pelos pilotos, na ânsia de chegar às capitais.

Duisenberg não se conformou, por algum tempo, com o acordo feito pelos "patrões" europeus e, anos mais tarde, ainda tentou prolongar o mandato até aos oito anos. Problemas franco-franceses em torno de Trichet atrasaram a disponibilidade deste e deram mais um ano e meio de mandato a Duisenberg, que acabou por sair apenas em Novembro de 2003.

Wim Duisenberg faleceu em 2005, em França. O seu substituto, Jean-Claude Trichet, continua presidente do BCE. Ontem, aliás, deu uma interessante entrevista ao "Le Monde" que pode consultar aqui.

quarta-feira, novembro 18, 2009

A Festa das Comunidades

A presença de Portugal na fase final do campeonato do mundo de futebol, que decorrerá na África do Sul, é a melhor prenda que as comunidades portuguesas no exterior poderiam ter recebido. Posso imaginar, em particular, o modo como isso vai ser sentido entre as centenas de milhar de cidadãos nacionais que vivem no país onde o torneio terá lugar, alguns dos quais têm atravessado tempos problemáticos.

Portugal inteiro costuma vibrar com os êxitos internacionais da sua selecção, mas os portugueses que vivem no exterior, para quem os sucessos nacionais representam suplementos de ânimo para compensar o seu afastamento do país de origem, sentem essas vitórias de uma forma muito especial.

Para os portugueses e luso-descendentes em França, a presença simultânea dos "bleus" no mundial de futebol oferece-lhes uma dupla oportunidade para repartir a sua afectividade. Até que haja um Portugal-França, claro!

terça-feira, novembro 17, 2009

O abraço

Achei que tinha mesmo de ajudá-lo. Aquele meu colega de liceu, que já não via há anos, sabendo que eu estava colocado na Embaixada em Luanda, nesses idos de 80, procurou-me, nas férias de Natal, para me pedir para tentar encontrar o seu pai, que há algumas décadas migrara para Angola, antes da independência do país, e que, há cerca de cinco anos, deixara de dar notícias. A sua mãe tinha-se desligado afectivamente do antigo marido e não queria saber dele. Mas ele, como filho, não. A última localidade onde vivera era a milhares de quilómetros da capital angolana, só acessível por estrada, a partir de uma outra cidade, esta com ligação aérea a Luanda. Teria morrido? Estaria em dificuldades? Desde essas férias de Natal, impus a mim mesmo a obrigação de procurar o paradeiro do sr. Matias, de Vila Real.

Convém lembrar que esse era um tempo de guerra civil em Angola, com muitas localidades isoladas e frequentemente sob tensão militar. A zona onde o Sr. Matias vivia (vivia?) situava-se em áreas onde os conflitos eram mais intensos. Mas sabia-se que, em Angola, havia sempre portugueses em todo o lado, por mais inóspitas que fossem as paragens.

Chegado a Luanda, fui ao Consulado e lá estava a ficha do sr. Orlando Matias. Tinha nascido há 74 anos. O último acto consular praticado datava de há já quase seis anos. Falei com os funcionários e pedi-lhes que, se e quando aparecesse alguém da cidade onde se supunha que o sr. Matias vivia, lhe pedissem para ir falar comigo, dois andares acima, naquele imenso e desagradável prédio onde eu trabalhava e vivia, na Rua Karl Marx, antiga Rua Vasco da Gama.

Semanas depois, apareceu alguém da referida localidade. Chamei-o e confirmei - boa notícia! - que o sr. Matias estava de boa saúde e ainda trabalhava. Quando referi à pessoa a razão pela qual queria encontrar o sr. Matias, pedindo-lhe para passar a minha mensagem, retorquiu-me: "Está bem, mas, por ora, não diga ainda nada à família dele. Vou tentar que ele fale consigo". Estranhei um pouco, mas as vidas africanas têm razões que a lógica desconhece. E respeitei o que o homem me pediu.

Os meses passaram, mesmo muitos. Até que um dia, da portaria, me chega o recado que um tal Orlando Matias estava ali, para me ver. Rejubilei. Mandei-o subir e recebi um homem tisnado, pequeno, magro mas com ar saudável, olho vivo e cara seca, sem sorrisos. Expliquei-lhe o encontro tido com o filho, meu antigo colega, tentei aligeirar a conversa, que sentia não fluir, num esforço para suscitar memórias comuns de Vila Real. Mas rapidamente comecei a perceber que, para ele, o passado era mesmo o passado.

A certo passo, disse-me: "Sabe, senhor doutor, se calhar é melhor não dizer ao meu filho que me encontrou". Fiquei perplexo e, de certo modo, desiludido. Depois de meses de espera, quando eu pensava ter resolvido o mistério e me preparava para dar a boa nova ao meu antigo colega, tudo se desvanecia. Porquê?

"Eu não vou regressar nunca a Vila Real. A minha vida é em Angola. Esta agora é a minha terra. Tenho aqui mulher e já cinco filhos, tenho um negócio que vai bem, mesmo com a guerra. A mulher e o filho que deixei em Portugal já não esperam ver-me, se calhar acham que eu morri. É melhor assim. Nem eu tenho dinheiro para lhes mandar, nem era capaz de abandonar a família que fiz por aqui. Diga ao meu filho que não me encontrou, faça-me esse favor".

Num segundo, percebi o drama do homem. Dei-lhe todos os meus contactos para o caso de precisar da minha ajuda e levei-o ao elevador. À despedida, não resistiu e, de dentro daquela secura que os trópicos e as dificuldades da vida haviam incutido no seu carácter trasmontano, disse uma coisa bonita: "Quando encontrar o meu filho, dê-lhe um abraço forte, por mim. Mas não lhe diga nada, está bem?". Nunca disse.

Exportação

Alguns estão ainda pouco confiantes, todos são cuidadosos, uns mais optimistas, outros já com razões concretas para o serem. Foram estas as impressões que colhi sobre o ambiente de negócios junto de cerca de duas dezenas de industriais portugueses, nas áreas de matelomecânica e moldes, cujos pavilhões visitei hoje na "Midest", a feira internacional de subcontratação industrial que tem esta semana lugar em Paris.

Cabo Verde

O apoio às autoridades caboverdeanas para combaterem o surto de febre de dengue que assola o país tem vindo a crescer. Portugal está, como não podia deixar de ser, nesse grande movimento internacional de solidariedade.

Cabo Verde é um país que se afirma, no plano mundial, pelo seu forte sentido de responsabilidade, com uma administração rigorosa, que garante a eficaz aplicação de todas as ajudas que recebe. É um exemplo para o mundo.

segunda-feira, novembro 16, 2009

António Pinho Vargas

António Pinho Vargas é um nome marcante na música portuguesa contemporânea. Compositor e intérprete de música clássica e de jazz, tem doze discos editados.

No sábado passado, actuou com grande sucesso no festival Jazzy Colors, organizado pelos institutos culturais estrangeiros em Paris.

Ontem à noite, foi a vez da Embaixada de Portugal em Paris se encher para o ouvir ao piano, no 5º concerto da série "Entre-pautas/Entre-partitions", organizado pelo Instituto Camões de Paris.

A quem não esteve (e a quem esteve) presente, recomendo vivamente os dois últimos álbuns duplos de António Pinho Vargas, o "Solo" (de 2008) e o recente "Solo II". Aí estão, entre muitos outros temas, o clássico "Tom Waits" e duas versões do magnífico "La Corazón", dedicado a Corazón Aquino.

domingo, novembro 15, 2009

Mimetismo

"O senhor embaixador não acha este clima deprimente?: cinzento, pesado e que obriga a ficar em casa a maior parte do tempo. As pessoas aqui devem sofrer muito com isto, não?" O secretário de Estado português, de visita a uma capital nórdica, fazia este comentário, na tarde escura de um mês outonal, em frente do nosso embaixador, na respectiva residência.

"Nem imagina!, senhor secretário de Estado", responde o diplomata. "Estes climas nórdicos, para além de serem muito incómodos, criam uma pressão psicológica terrível sobre as pessoas, levam a alguns desregramentos, como o alcoolismo, e chegam a originar doenças do foro psiquiátrico. Há por aqui imensos suicídios!" E o embaixador continua, por vários minutos, a discorrer sobre as óbvias desvantagens das longas noites, da ausência de sol e dos respectivos impactos negativos.

O secretário de Estado deve ter regressado a Lisboa com a plena confirmação daquilo que sempre suspeitara, sobre os malefícios do tempo na Escandinávia.

Algumas semanas depois, o nosso embaixador recebe um almirante em fim de carreira, homem bonacheirão e "bon vivant". O clima local continuava o mesmo, claro.

"Sabe, senhor Embaixador? Eu acho que é muito confortável sentir este contraste entre o tempo frio que faz lá fora e o ambiente simpático dentro das casas, nestes países nórdicos. De certo modo, este clima ajuda-nos muito à concentração, a apreciar os bons momentos da leitura de um livro, de uma conversa à lareira, com um copo ao lado. Eu devo confessar-lhe que sempre achei muito estimulante, intelectualmente, este tipo de tempo". E o almirante tira uma baforada do Cohiba e bebe mais um golo do "Royal Salute", que o embaixador guardava para os grandes visitantes.

O anfitrião sorri e anui, de imediato: "Tem o senhor almirante toda a razão! Isto de se estar em casa - e as casas aqui são quase sempre muito cómodas, como sabe -, com a neve e o frio como pano de fundo, é um estímulo fantástico para o bem-estar, para a relação dentro das famílias, para criar um ambiente muito saudável. Estas sociedades nórdicas não são ricas por acaso: é porque as pessoas se sentem bem e, naturalmente, isso estimula o trabalho e a eficácia. O clima é uma das chaves da felicidade nestes países, pode crer!".

Woody Allen criou a figura de Zelig, a personagem que mimetizava aqueles de quem ficava próximo. Este embaixador não era um homem hipócrita, nem sequer vivia na busca obsessiva de ser bem visto pelos seus visitantes, colando-se-lhes às opiniões. Pela minha experiência, tinha apenas uma despojada ausência de opinião própria, vivendo na eterna hesitação entre inteligentes argumentos contraditórios, relativamente aos quais não se conseguia decidir, mas que era capaz de aprofundar genuinamente, sempre com o entusiasmo das grandes convicções.

sábado, novembro 14, 2009

Petróleo

O empreendedor Joe Berardo anunciou que pretende explorar petróleo na costa portuguesa.

Há anos, a Galp e a Petrobras estabeleceram um acordo que previa a realização de sondagens, com o mesmo objectivo, também nessa área. Perdi o assunto de vista e não faço ideia do calendário de execução desses trabalhos. A experiência comum das duas empresas na detecção de petróleo em zonas de profundidade, que teve grande êxito em áreas da costa brasileira, abre uma interessante expectativa.

Que há petróleo em Portugal, na costa e "inshore", nunca houve dúvidas. A questão está em saber se é numa quantidade que justifique a sua exploração. Recordo-me bem, há anos, de ver equipamento de sondagens instalado entre a Atalaia e a Merceana, perto de Torres Vedras. Mais tarde, ouvi também falar de trabalhos idênticos na zona de Alcobaça.

Um mito político antigo atribui a Salazar a seguinte reacção, quando o foram informar da descoberta de petróleo em Cabinda: "Só nos faltava mais essa!". O nosso paroquial ditador revelava assim a consciência de que a descoberta de petróleo em Angola só iria aumentar as ambições internacionais sobre o território, ameaçando ainda mais a tutela colonial portuguesa.

Hoje, tenho a certeza que a reacção dos nossos dirigentes, se acaso fosse descoberto petróleo em quantidades e condições exploráveis na nossa costa, seria bem diferente. Contudo, temo que, por muito tempo, acabemos por ter de nos contentar com o petróleo que o saudoso Raul Solnado descobriu no Beato...

Cidade Universitária (2)

Foi muito interessante poder testemunhar o início do encontro de diversas gerações de antigos estudantes, que hoje se reuniram na Casa de Portugal, na Cité Universitaire de Paris. Muitos vindos de Portugal e alguns de bem mais longe, como foi o caso da pintora Isabel Pavão, que viajou desde Nova Iorque para poder estar presente no encontro. Dele pode vir a nascer uma Associação de antigos residentes, feito na base de um inventário mais completo do imenso número de pessoas que, desde a criação da Casa, nela habitaram.

A Casa de Portugal foi construída pela Fundação Calouste Gulbenkian, com desenho do arquitecto José Sommer-Ribeiro e tem uma história muito interessante, de que já aqui falei, em especial por nela se terem reflectido alguns períodos da vida política francesa e portuguesa, como o Maio de 1968, o 25 de Abril e o período revolucionário que se lhe seguiu.

Segundo se lê em "Les Portugais à Paris" (Chandeigne, 2009), a Casa de Portugal foi inaugurada em 1967, tendo passado a ter o nome de André de Gouveia em 1972 (ver aqui). Dos originais 29 quartos, a residência passou a ter 170, após uma recente reforma. Salazar comentaria, a propósito dos estudantes que a utilizavam: "Eles vão para Paris para, de seguida, irem para Moscovo". Em alguns casos, teve razão...

Durante o encontro de hoje, suscitei a ideia de se poder fazer uma recolha de testemunhos sobre a história da Casa de Portugal, por forma a permitir reconstituir uma memória escrita de um dos locais emblemáticos da presença portuguesa em Paris. Prontifiquei-me a colocar a Embaixada disponível para ajudar nessa tarefa.

Cidade Universitária (1)

Hoje à tarde, conduzindo o meu carro, fui à Cité Universitaire de Paris, para estar presente no encontro de antigos residentes da Casa de Portugal, a residência André de Gouveia. Porque conheço mal o espaço, fui-me guiando pela sinalização interna da Cité. E com que deparei? Com indicações como Casa do Líbano, Casa do Cambodja, Casa do Brasil e RAG. RAG? Isso mesmo, a sigla da "Residência André de Gouveia". Quanto à menção a Portugal, nada... Chegado à Casa, olhei com mais cuidado e lá estava, como única indicação, RAG, no revestimento da intervenção arquitectónica que a casa sofreu, com subsídios da Fundação Calouste Gulbenkian! Nem uma nota existe de que se trata da Casa de Portugal.

C'os diabos!? Como é que foi possível ter-se deixado desaparecer a indicação Casa de Portugal?

Na minha intervenção, feita em frente de todos os antigos residentes e da principal directora da Cité Universitaire, não deixei de manifestar esta minha perplexidade, que traduz também o meu desagrado. Pessoal e como embaixador. E que fica aqui registado, para todos os fins úteis.

Desastres & Crises

É muito interessante o modelo de construção das "boas notícias" nos media portugueses. Ontem, estive particularmente atento, em vários telejornais, sobre o modo como foi referida a constatação de que o crescimento da economia portuguesa foi um dos maiores na zona euro, nos últimos três meses.

Sem excepção, todas as reportagens, depois de apresentarem os factos, viam-se obrigadas, por um tropismo compensatório que parecia corresponder a algum mal-estar com o carácter positivo da notícia, a complementá-los com uma frase de teor negativo, do estilo "no entanto, estes números não podem esconder o facto de ...", em que deliberadamente se procurava desvalorizar o que acabava de ser dito.

O mais interessante é que este movimento auto-flagelatório, que imagino deva fazer parte dos "livros de estilo" das redacções, raramente funciona em sentido inverso, sendo absolutamente impensável um frase do género: "Continuam a aumentar os casos de gripe H1N1 detectados em Portugal. Porém, o número de mortos por habitante situa-se, no nosso país, em níveis muito inferiores à média mundial e, de acordo com especialistas internacionais, isso fica muito a dever-se às medidas preventivas e de educação sanitária oportunamente postas em prática pelas autoridades portuguesas, que criaram uma reacção médica e hospitalar eficaz perante a detecção de novos casos".

Era só o que faltava estar a dar notícias onde o "saldo" fosse positivo!

Recordo-me de um texto de Nicolau Santos, já com alguns anos, intitulado "Portugal vale a pena". Nesse artigo, aquele responsável do "Expresso" elencava casos de sucesso na economia portuguesa, nomeadamente em áreas de alta tecnologia. Na altura, cheguei a ler um blogue que se recusava a transcrever o texto ou a fazer um link para ele, não fosse dar-se o caso de alguém poder vir a atribuir tais êxitos, na área do sector privado, à acção das autoridades públicas. Aqui fica esse texto, para quem quiser recordá-lo.

Este comportamento - porque não qualificá-lo com frontalidade como "biased"? - que faz parte da matriz identitária d(e toda)a nossa televisão, que torna as más notícias no prato de resistência dos seus noticiários, com isso habituando os seus espectadores a uma espécie de "cultura de crise", recorda-me sempre a resposta dada, há anos, por uma criança da comunidade portuguesa na Suíça, que vi e ouvi na televisão, ao ser perguntada sobre o que gostava mais nos telejornais da RTPi: "Os desastres!".

sexta-feira, novembro 13, 2009

Hollande

É um livro bastante interessante e útil o "Droit d'inventaires", acabado de sair na Seuil, no qual François Hollande, antigo líder do Partido Socialista Francês, se coloca a si próprio no percurso da História recente francesa, comentando as principais figuras e relembrando, muito em especial, a época de François Mitterrand. Ao fazê-lo, e complementando tantas outras obras conhecidas sobre esse período, fornece-nos mais um testemunho sobre os anos da "coabitação", de que aqui se falou noutros posts.

Hollande vai bastante mais longe e faz uma "radiografia" dos tempos menos fáceis que vive o socialismo francês - aproveitando para dar a sua leitura sobre o que hoje pode significar o conceito de socialismo.

Língua portuguesa

O presidente Lula falou há pouco no período do "achismo" que actualmente se vive, na procura de um responsável pelo corte de energia eléctrica que o Brasil sofreu.

O cineasta Fernando Lopes, na "Visão" desta semana, entende que a amizade entre as mulheres, ao trocarem histórias pessoais entre si, é um tanto "açordeira".

Devo confessar que adoro este tipo de expressões. Elas são a prova de que a língua portuguesa está bem viva e criativa.

quinta-feira, novembro 12, 2009

Coabitação (2)

Há dias, deixei aqui uma nota sobre a recente biografia de Jacques Chirac, sublinhando o que nela se diz, a certo ponto, sobre a sua "coabitação" institucional com François Mitterrand.

Para quem possa não estar familiarizado com o conceito, importa dizer que o termo "coabitação" se aplica, no actual regime francês, à coexistência de um presidente da República e de um primeiro-ministro oriundos de famílias políticas opostas. Alguns verão similitudes com o que se passa noutros cenários geográficos, mas a realidade francesa é muito típica: o presidente da República tem uma vasta gama de poderes, nomeadamente na ordem externa, e preside aos Conselhos de ministros. Em rigor, a filosofia funcional do actual regime francês vai no sentido de fazer coincidir as orientações programáticas de ambas as personagens, sendo originalmente a "coabitação" um fenómeno quase fora da normalidade institucional. Porém, o facto de se terem produzido já alguns casos dessa natureza como que criou já em França uma "jurisprudência" de comportamento político, nesse cenário de regulação de vontades eventualmente conflituais.

Hoje, queria deixar uma nota sobre outra "coabitação" que Mitterrand manteve durante os seus dois mandatos, desta vez com Edouard Balladur. O antigo primeiro-ministro publicou há pouco tempo o livro "Le pouvoir ne se partage pas/Conversations com François Mitterrand", que nos ajuda a fazer a leitura dessa figura complexa que foi o antigo presidente socialista.

Com este livro, Balladur quer deixar um testemunho desses pouco mais de dois anos, reconhecendo que pode ser objecto da "suspeita de ser inspirado por motivos egoístas, com risco de ver a sua boa-fé posta em causa, com a crítica de travestir a realidade" em benefício da sua reputação. Lido o livro, e sem descartar a possibilidade dessa leitura ser fixada em alguns leitores, ficou-me mais a sensação da necessidade do antigo primeiro-ministro "utilizar" (e não digo isto no sentido pejorativo) Mitterrand para se definir a si próprio politicamente, assegurando melhor, por esse meio, o seu lugar na história política da direita francesa.

Mas notemos um passo do que Balladur refere sobre a sua relação com Mitterrand: "À bien des égards, je me sentais plus proche de lui que de beaucoup d'autres par les goûts intellectuels, la formation reçue, les affinités nées d'un regard semblable porté sur les hommes et sur l'histoire. Mais il allait si loin dans la recherche de la connivence qu'il m'était difficile de ne pas voir mis à nu les ressorts de la comédie qu'il me jouait. Et, cependant, il existait entre nous, sinon une forme de sympathie, du moins l'impression de se trouver l'un avec l'autre en terrain familier."

FCO Bloggers

Cerca de 20 embaixadores do Reino Unido alimentam blogues pessoais, na maioria dos casos dentro da plataforma informática do Foreign Office.

Anunciados ou alojados nessa plataforma estão ainda mais de um dezena de blogues de pessoal diplomático britânico, alguns deles de natureza colectiva.

Fica o registo. E o link para quem quiser consultar.

quarta-feira, novembro 11, 2009

Arafat

Na ocasião em que passam cinco anos sobre a morte de Yasser Arafat, apetece-me recordar o que, nessa altura, escrevi no jornal "Público", sob o título "Com olhos em Gaza":

"A face pálida de Yasser Arafat tornou-se ainda mais lívida, ao ouvir o que lhe disse o colaborador que interrompeu bruscamente a conversa que o presidente da Autoridade Palestiniana mantinha com Mário Soares, na minha presença. Arafat balbuciou qualquer coisa e saiu, apressado, para uma sala ao lado, deixando-nos a conjecturar sobre o que tanto o perturbara. Quando regressou, denotava uma imensa preocupação: Shimon Peres, então ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel, acabara de lhe confirmar que, pouco antes, o primeiro-ministro Itzhak Rabin havia sido alvejado num comício em Tel-Aviv. Não se conheciam ainda pormenores sobre o seu estado. Sem o dizermos, o cenário de um atentado de autoria palestiniana atravessou-nos a todos. Minutos mais tarde, veio a saber-se que o autor dos disparos fora, afinal, um judeu radical e que Rabin, entretanto, morrera.

Estávamos em Gaza, em 5 de Novembro de 1995, após um jantar oficial, regressados à "guest house" da Autoridade Palestiniana, numa inédita visita do Presidente da República portuguesa iniciada nessa tarde, que eu acompanhava em substituição de Jaime Gama. A simpatia por Portugal e o imenso respeito de Arafat por Mário Soares ficaram patentes em vários gestos, desde a nossa chegada. O líder palestiniano fazia questão de recordar a atitude corajosa e solidária de Soares quando, anos antes, este fora visitá-lo a Beirute, sob fogo, durante o cerco sofrido pelas forças da Al Fatah.

A comitiva portuguesa saíra de Jerusalém, nessa manhã, após uma visita oficial de três dias a Israel. A presença do presidente português ficara marcada pela contínua expressão da amizade e admiração de Itzhak Rabin e de Shimon Peres, que viam em Mário Soares, simultaneamente, um sólido amigo de Israel e um militante pela reconciliação no Médio Oriente, defensor dos direitos do povo palestiniano. Viviam-se os tempos de esperança posteriores aos Acordos de Oslo e Washington e, a avaliar pelas medidas de segurança excepcionais que rodeavam Rabin, que haviam obrigado a súbitas mudanças do programa, pressentiam-se os riscos que o primeiro-ministro israelita estaria a correr para forçar, de uma vez por todas, as portas da paz possível. Mas estávamos muito longe de pressentir a tragédia. Arafat despediu-se de nós, nessa noite, com uma sombra triste no olhar que não perderia na manhã seguinte, quando abreviámos a visita, para nos deslocarmos ao funeral de Rabin. Acto a que ele, contudo, não pôde assistir, como desejaria. Recordo as palavras trocadas por Soares com Arafat, no momento da nossa saída de Gaza. Do pesar que ambos sentiam pela desaparição de Rabin ressaltava a consciência mútua de que nada voltaria a ser igual no destino daquilo a que então se chamava o Processo de Paz do Médio Oriente.

Voltei a encontrar Arafat algumas outras vezes - em Barcelona, em Malta, em Bruxelas e em Nova Iorque. Sem excepção, perguntava-me sempre pelo seu "amigo Mário Soares" e teimava em relembrar, na sua voz cada vez mais trémula, aquela noite em Gaza, que lhe deve ter ficado na memória dos seus sonhos perdidos de uma Palestina livre.

Yasser Arafat cometeu, nos anos que se seguiram, uma imensidão de erros políticos, imerso numa conjuntura em que se deixou enredar, em que o radicalismo tomou conta dos acontecimentos, de um lado e do outro de uma barricada de ódio, hoje ironicamente simbolizada num muro real de incompreensão. O conflito israelo-palestiniano converteu-se, entretanto, numa imolação de inocentes, numa bola de neve de violência e de terror, com que já convivemos sem espanto, à vista do cinismo estratégico dos feiticeiros da realpolitik, da cobardia complacente de alguns e da fraternidade hipócrita de outros. O mundo tarda em perceber que, graças à aliança objectiva de messianismos contraditórios, alimentados pelo desespero e pelo fanatismo, se ateou a partir das margens do Jordão, à vista de todos, um incêndio imenso, que não pára de estender-se e que está, cada vez mais, longe de ser debelado, ardendo como o petróleo que lhe alimenta as raízes.

Em 5 de Novembro de 1995, morreu Itzhak Rabin. O ocaso de Yasser Arafat terá começado na mesma data, precisamente nove anos depois. Esta coincidência sela o destino trágico dos dois homens que mais perto estiveram de obter a paz para os seus povos."

Apetece-me perguntar: mudou, entretanto, alguma coisa?

Europa

Ouvir Angela Merkel afirmar, sob o Arc du Triomphe, junto ao monumento ao soldado desconhecido francês, que " nunca esqueceremos o que os franceses tiveram de sofrer por causa dos alemães durante a primeira metade do século XX" foi um momento de grande simbolismo, a que tive o privilégio de assistir esta manhã. E igualmente importante foi ouvir o presidente Nicolas Sarkozy dizer que, "neste 11 de Novembro, não comemoramos a vitória de um povo sobre o outro, mas uma provação que foi tão terrível para um como para o outro".

A França e Alemanha, ao longo do passado recente, titulados por líderes diferentes, entenderam bem o carácter fundamental da sua reconciliação. Em cada um desses momentos, foi a coragem dos respectivos dirigentes que ficou à prova, porque eles sabiam que, atrás de si, estavam e estão povos eternamente marcados por fortes traumatismos, aos quais era importante apontar o novo rumo a seguir.

Essa coragem foi hoje, em Paris, assumida por Angela Merkel e por Nicolas Sarkozy, como corajoso havia já sido o primeiro entendimento entre De Gaulle e Adenauer, bem como, mais tarde, a imagem das mãos dadas entre Helmut Kohl e François Mitterrand. Sob o mesmo Arc du Triomphe, junto ao qual Adolf Hitler fez passar as suas tropas e fez a arrogante visita a Paris, a chanceler alemã mostrou que a qualidade dos políticos também se afirma na forma como conseguem, com grande dignidade, enterrar a História no passado a que ele pertence. E o gesto do presidente francês, ao convidá-la a partilhar o dia em que, até agora, a França comemorava a derrota alemã, esteve bem à altura dessa atitude.

Tenho a sensação que nós, portugueses, não obstante termos as nossas vítimas no termo do primeiro grande conflito mundial, nunca entendemos bem o sentimento profundo do que foi a imensa tragédia vivida nesta parte da Europa, durante todo o século passado. O peso da ditadura e a nossa concentração no patético estertor da aventura imperial, colocaram Portugal num mundo à margem dessa penosa realidade, a que foi possível escaparmos. Com efeito, não vivemos directamente uma tragédia que explica muito do que viria a passar-se mais tarde e que dá maior valor a este tipo de exorcismos, feito em torno de comemorações onde se sublinha, quase obsessivamente, a ideia da paz. Talvez ainda por essa mesma razão, em Portugal, não se olha para a Europa e para o seu projecto de unidade política da mesma maneira que outros o fazem e não valorizamos devidamente o fantástico empreendimento que a construção europeia representa e em que agora temos o ensejo de participar em pleno.

Maneta

Há dias, um leitor lembrou-nos a relação com a França da conhecida expressão portuguesa "ir para o maneta" - com o sinónimo de destruir ou de dar cabo de alguma coisa. Tem também como significado vulgar escangalhar-se, estragar-se, avariar e morrer.

Fui ver a essa magnífica ferramenta informática que é o Ciberdúvidas e confirmei que, na origem da expressão, está a figura do General francês Loison, companheiro de Junot, durante a primeira invasão francesa. Loison, segundo revela Orlando Neves, no seu "Dicionário de Expressões Correntes", havia perdido um braço numa batalha e, em Portugal, "revelou-se um homem de extrema ferocidade e malvadez, que exercia torturas violentas nos presos e foi responsável por várias mortes".

Na memória popular ficou o verso:

"O Jinot (sic) mai-lo Maneta
julgam Portugal já seu:
É do demo que os carregue
e também a quem lho deu."

Outros tempos, em que imagem da França, apesar de dividir sectores da opinião portuguesa, não era a que é hoje. Felizmente.

terça-feira, novembro 10, 2009

Pousadas & Verdades

Há dias, baseado numa informação que circulou sem contestação aparente em sites noticiosos de referência, referi aqui que o Grupo Pestana ia encerrar a Pousada Barão de Forrester, em Alijó.

Acabo de receber um amável esclarecimento do presidente das Pousadas de Portugal que me dá conta da falta de fundamentação de tal notícia, na base da qual elaborei o meu anterior post. Segundo tal esclarecimento, a Pousada de Alijó terá um encerramento apenas temporário, para a execução de obras determinadas por lei, não estando em causa a continuidade desta unidade hoteleira.

A empresa considera que houve uma deliberada deturpação das suas intenções e que foi lançada uma inverdade que afecta a sua boa imagem. Só posso lamentar ter aqui feito um involuntário eco de uma falsidade que, como referi, apareceu a público com foros de verdade.

As Pousadas de Portugal são uma referência identitária do nosso país e foi a preocupação causada pelo anterior encerramento e a alienação de outras unidades, que analisei no post em referência, que terá contribuído para dar credibilidade a este boato. Pelo menos, foi isso que ocorreu no meu caso.

Só me resta reiterar as minhas desculpas às Pousadas de Portugal pela imprecisão da referência factual que fiz. Bem gostaria de ver a sua rede preservada na sua integridade e, se economicamente possível, mesmo aumentada - como aconteceu com a criação de uma nova unidade em Viseu, em que, com gosto, me alojei em Julho passado.

Jorge Sá Borges (1933-2009)

Morreu ontem um português de bem, que levou para a vida política uma rectidão e uma convicção que o conduziram a algumas rupturas pessoais complexas e a tomar opções difíceis.

Jorge Sá Borges, nome que nos dias de hoje já não é muito conhecido dos portugueses, foi um militante católico que se destacou na crise académica de 1962. Advogado de profissão, fundou o PPD, de que viria a afastar-se. Foi ministro e secretário de Estado nos tempos dos Governos provisórios.

Pessoalmente, conheci-o mal, apenas como amigo de amigos comuns, e, nesse contexto, tive ocasião de conversar com ele algumas vezes, em especial em noites do Procópio, por onde, em tempos, passeou a sua elegância e um humor muito fino.

A rainha

Ter responsabilidades centrais na organização de uma visita de um chefe de Estado ou de governo português a um país estrangeiro é sempre uma imensa "dor-de-cabeça". Nada pode falhar, todos os pormenores têm de ser afinados, é importante ter "planos B" para as contingências, há questões de substância e de natureza protocolar a assegurar em detalhe, mil sensibilidades a gerir, maus feitios (vindos de Lisboa, principalmente) a aturar. É essencial uma excelente articulação com as autoridades locais, porque está nas mãos delas infernalizar-nos ou facilitar a nossa vida. Uma coisa é certa: se alguma coisa correr mal, a culpa é sempre das Embaixadas. Já preparei muitas visitas, sei bem do que falo.

Isto vem a propósito de uma história passada em Londres. Um dos pontos mais curiosos da visita oficial do presidente Mário Soares ao Reino Unido, em 1993, foi a organização do jantar de gala na nossa Embaixada, em Belgrave Square. Num programa de visita em que a responsabilidade maior estava do lado britânico, esse era o principal ponto da agenda a nosso cargo. A rainha de Inglaterra raramente se desloca a uma residência - mas a residência portuguesa não é, em Londres, uma residência qualquer, é a Embaixada do parceiro da "oldest alliance". E porque é uma excepção, foi aí que Mário Soares ofereceu o jantar com que retribuiu o que a rainha lhe dera em Buckingham.

A rainha e o marido não iram sós a esse jantar. Com eles e com um grupo muito importante de ministros britânicos iam o príncipe Carlos e a princesa Diana, os príncipes Andrew e Edward, a princesa Margarida e várias outras importantes figuras da corte britânica. Porque tal me competia, como "nº 2" da casa, passei horas a rever pormenores, a ensaiar com o nosso Protocolo a coreografia da entrada, desde a posição dos fotógrafos e jornalistas até aos lugares dos garbosos GNR's, vindos expressamente de Portugal para marcar a solenidade da ocasião.

Pouco mais de uma hora antes do momento em que teria de estar de volta ao meu "posto", rumei a casa, ao volante do meu carro, para vestir a casaca e ir buscar a minha mulher. Ia muito tenso, ainda com preocupações na cabeça, a pensar se algumas coisas me tinham escapado. Num cruzamento, pouco antes de chegar a casa, por distracção e precipitação, esbarrei de lado contra uma viatura: nada de ferimentos, mas latas amolgadas e alguns faróis partidos. E a culpa era toda minha!

Era uma senhora inglesa que guiava o automóvel atingido pela minha imprudência. Juntaram-se logo transeuntes a confirmar o óbvio da minha culpabilidade. Para alguma surpresa dos circunstantes, também eu dava toda a razão à condutora abalroada. A vítima da minha imperícia queria, naturalmente, chamar a polícia, porque deve ter pensado que isto de diplomatas, sempre protegidos pelas imunidades, é uma raça que costuma ser tentada a fugir às responsabilidades criminais.

Ora o meu drama não era o assumir da culpa. O meu problema era o tempo! Dentro de menos de uma hora eu tinha de estar, devidamente engalanado na minha casaca, à porta da Embaixada, a receber o presidente português, que chegaria acompanhado do nosso embaixador, para, pouco depois, se organizar a chegada da rainha. E, se acaso eu tivesse que esperar pela polícia para tomar notas do acidente, isso tornava-se inviável.

Foi então que testei toda a minha capacidade de convicção diplomática: "Minha senhora, eu assumo 100% da responsabilidade do acidente, mas tenho um problema muito sério: dentro de menos de uma hora vou jantar com a rainha! Eu sei que lhe deve ser difícil acreditar nisto, mas é pura verdade!".

Não consigo descrever a cara da minha interlocutora, o olhar incrédulo que me lançava, pensando talvez que a estava a tomar por parva. Num segundo, expliquei-lhe o que se passava: a visita do presidente português e o jantar na Embaixada. Não me pareceu convencida, até que me lembrei de lhe perguntar se tinha passado nos últimos dias pelo Mall, a avenida em frente ao Palácio de Buckingham. "Se lá passou, terá seguramente visto que há bandeiras portuguesas e britânicas por todo o trajecto". Não podia invocar parangonas na imprensa ou menções de relevo na televisão, porque as visitas protocolares têm escassa cobertura noticiosa. Restava-me a esperança da sua memória visual.

A senhora sorriu e disse: "De facto, vi muitas bandeiras. Eram portuguesas?". Percebi que estava salvo! Como prova da minha boa-fé propus-me deixar-lhe os meus documentos - a carta de condução e o livrete do carro -, garantindo-lhe que, logo no dia seguinte, de manhã, a Embaixada a contactaria. Para meu imenso alívio, aceitou. Deve ter ido contar para casa a história estranha por que tinha passado, o acidente com um diplomata que parece que ia jantar com a sua rainha.

E lá fui eu, à pressa, com um farol a menos, enfarpelar-me para jantar com a rainha de Inglaterra. E com a princesa Diana, claro.

segunda-feira, novembro 09, 2009

Álvaro Morna

Ao notar a próxima realização de uma mesa-redonda, aqui em Paris, sobre os media portugueses, não consegui deixar de recordar uma das primeiras pessoas com quem contactei, no seio do jornalismo português em França, quando por aqui fui passando, noutras andanças: Álvaro Morna.

Era uma figura amável e delicada, com um registo de entusiasmo profissional que seduzia, um trato humano onde se adivinhava uma personalidade de bem consigo mesmo, que gostava de fazer aquilo a que se dedicava. Rigoroso e conhecedor dos temas, fazia parte daquela magnífica espécie de profissionais com quem se pode falar sem qualquer receio de vir a ser mal citado, sem rasteiras ao canto de uma pergunta.

Exilado desde novo em França, Álvaro Morna trabalhou na Radio France Internationale, tendo sido aqui correspondente da Lusa, do Diário de Notícias e da Rádio Renascença. Andou muito pelo mundo e escreveu dois livros. Morreu em 2005. Deixou família e muitos amigos que, volta e meia, me falam dele com saudade.

Muros

Há mais de três décadas, atravessei pela primeira vez o “checkpoint Charlie”, em Berlim, entre as duas Alemanhas. Fi-lo como interessado turista, naquela curiosidade de observador distante de uma Guerra Fria que apenas conhecia no preto-e-branco dos filmes e dos livros de espionagem. Tal como me iria acontecer em outros contactos com o “socialismo real”, a experiência deixou-me um sabor amargo e triste, como se consagrasse a despedida definitiva de uma ilusão residual – a mim, que nunca tinha cultivado nenhum fascínio pelo modelo que, para alguns, foi o “sol da terra”. Porém, pertencente a uma geração política de quantos, cada um à sua maneira, acreditaram na possibilidade dos “amanhãs” poderem vir a cantar, via-me forçado, pela força da realidade, a concluir que, no passado, o futuro era bem melhor…


Porque à época da queda do muro ainda alimentava algumas dúvidas sobre o que a Alemanha iria fazer com a sua nova unidade, não fiz parte daqueles que saudaram, com grande euforia, a festa de Berlim, embora percebesse bem a alegria dos que a partilhavam. Sei que hoje não é popular escrever isto, mas assumo-o sem o menor pejo, porque é pura verdade. Como é igualmente verdade que não verti nenhuma lágrima de nostalgia pelo fim daqueles regimes feitos de tristeza e de tom cinza que a tutela moscovita conservara como cómoda almofada entre si o Ocidente.


O fim da Guerra Fria, para quem, como eu, assume não ser, por natureza, um desbravador obsessivo das incógnitas do futuro, não me sossegava muito, principalmente porque sentia algum incómodo ao pensar que uns Estados Unidos “à solta” poderiam ser tentados a algumas aventuras, basicamente concentradas no egoísmo dos seus interesses, para as quais, de uma forma ou de outra, acabaríamos por ser arrastados.


Enganei-me numas coisas, acertei noutras.


Enganei-me no que pensava sobre os riscos que a Alemanha podia fazer correr à Europa. A unidade alemã foi extremamente positiva para o desenvolvimento do processo de reconciliação política do continente e (agora) Berlim constitui um dos factores em que assento a residual esperança de que o projecto integrador possa suplantar as tensões que hoje tendem a desagregá-lo.


Noutras coisas acertei. Deixada sem contrapoder, uma certa América fez-nos correr uma aventura cujo saldo está ainda hoje por apurar e que adubou, de forma trágica, alguns conflitos para que foi arrastada. A circunstância de uma “outra” América ter, entretanto, reaparecido, no mercado das forças políticas com expressão à escala global, pode ajudar-nos a tentar atenuar essas derivas, mas as hipóteses de retoma do curso normal das coisas estão, em definitivo, já afastadas.


O mundo que hoje vivemos, goste-se ou não, é ainda um mero produto da Guerra Fria. O modelo das nossas instituições multilaterais mais não é do que uma projecção dos equilíbrios saídos do final da Segunda Guerra Mundial. A prova provada é que ainda andamos às voltas para tentar dar à NATO uma finalidade diferente daquela para que havia sido criada. Verdade seja que, do lado de Moscovo, sente-se uma filosofia de acção externa muito tributária de uma mentalidade tradicional de cerco, que rigidifica posições e provoca contra-reacções do mesmo sinal. Para nos recordar que esses tempos não estão mortos, regressou recentemente a temática do Tratado CFE (sobre forças convencionais na Europa) e mantêm-se os “frozen conflicts” de antanho (Transnístria, Nagorno-Karabasch), alguns com afloramentos muito pouco saudáveis (Ossétia do Sul, Abcásia).


A Europa que aí temos, a União Europeia alargada, mais não é do que uma filha directa da Guerra Fria, embora agora liberta das antigas peias dos pais geradores. Algumas atitudes que detectamos em certas capitais europeias face a Moscovo trazem consigo os germes dos traumatismos passados e tornam-nos a todos reféns involuntários dessa História regional.


Ora o mundo mudou, o 11 de Setembro deu um forte sinal que parece não ter sido entendido, mesmo por quem o sofreu dramaticamente na pele. As lições do Iraque, os riscos novos no Irão, os impasses no Afeganistão, bem como o barril de pólvora no Paquistão parece não serem suficientes para nos fazer acordar para a necessidade de mudança de paradigma do nosso quadro das relações internacionais.


Nesta cegueira estratégica, a atitude de uma certa Europa perante a questão turca prova que vivemos ainda no mundo do passado e que alguns teimam em não perceber que, pedra a pedra, estamos a colocar as fundações para um novo muro.


(Texto publicado hoje num suplemento especial do Diário Económico sobre a queda do Muro de Berlim)


domingo, novembro 08, 2009

Vasco

É o afloramento da minha "costela" brasileira, mas não posso deixar de congratular-me vivamente com o retorno à divisão principal do Brasil do velho Vasco da Gama, o mais representativo clube português por aquelas terras.

Um forte abraço ao meus amigos vascaínos!

Condução

A história da condutora de automóvel portuguesa apanhada 38 vezes sem carta de condução e que - ao que parece, porque certezas, no âmbito da nossa Justiça, não tenho nenhumas - só agora irá ser condenada a pena efectiva de prisão, continua a divertir alguma imprensa e "blogosfera" deste país.

Na França, haverá também haver uns casos parecidos, mas a nossa vocação para entrar neste triste e ridículo domínio do Guiness parece imbatível.

sábado, novembro 07, 2009

Diplomacia e filatelia

Talvez poucos (se alguns) dos leitores deste blogue conheçam a cidade de Soukhoumi, capital da auto-proclamada República da Abcásia, território que a Geórgia considera pertencer-lhe e que é objecto de uma já antiga disputa internacional. Trata-se de uma estância no Mar Negro, que foi uma reputada colónia balnear ao tempo da antiga União Soviética. As batalhas entre as forças abcases e georgianas deixaram a cidade com profundas marcas de guerra, as quais, no entanto, não foram suficientes para fazer desaparecer algum do seu antigo "charme".

Fui a Soukhoumi em 2004, integrado numa missão da OSCE, composta por vários observadores internacionais. Recordo, ainda com algum frio na espinha, uma viagem num bem usado helicóptero ucraniano, ao serviço da ONU, ao longo da respectiva costa. Ao perguntar porque razão voávamos tão distantes de terra, um dos pilotos, com toda a naturalidade, disse-me que era para tentar evitar os mísseis. É que tinha havido, tempos antes, uns problemas... Fiquei imensamente sossegado!

As nossas conversas na capital da Abcásia, com as autoridades separatistas locais, não conduziram a muita coisa, salvo, talvez, a precisar melhor o campo das divergências e o rigor dos argumentos independentistas. Saídos das sessões de trabalho, tornadas mais pesadas pela obrigatoriedade de interpretação, fizémos uma caminhada ao longo de um passeio que me recordou a Foz, no Porto, sempre acompanhados por segurança. No final desse percurso, chegámos a um restaurante, onde nos ia ser oferecido um almoço.

Foi então que alguém constatou que dois diplomatas, um belga e um outro cuja nacionalidade não retive, haviam saído do grupo e tinham desaparecido, sem rasto nem aviso. A preocupação espalhou-se pela delegação, em especial a partir do momento em que a vimos transposta para a cara dos responsáveis abcases, que entre si trocavam conversas tensas, enviando já polícias pela cidade.

Passaram longos minutos e, por esse imprevisto, a refeição formal acabou por não decorrer com a serenidade desejada. Até que, cerca de meia-hora mais tarde, lá vemos entrar na sala, para grande alívio, os nossos dois desaparecidos colegas. Pela mesa passou a palavra de que , por qualquerrazão, haviam decidido fazer um outro passeio. Sentaram-se discretos, sob o olhar reprovador da generalidade dos convivas.

Só no final do repasto nos elucidaram da razão do atraso: tinham feito uma "escapada" aos correios locais, para adquirir colecções de selos da Abcásia, aparentemente muito difíceis de obter à distância. Vinham impantes, com a antecipada certeza de terem conseguido raridades que iriam abrilhantar as respectivas colecções.

A diplomacia também ajuda a filatelia. Será que os nossos colegas se haviam incorporado na missão, fisicamente algo arriscada, apenas para comprar selos abcases? Nunca saberemos.

Fado

Na noite de sexta-feira, graças a uma iniciativa da Rádio Alfa, essa instituição de referência que une a comunidade portuguesa da zona de Paris, teve lugar em Créteil uma bela noite de fado.

Tenho ouvido mais fado de qualidade em França, desde que aqui cheguei, do que em toda a última década da minha vida, por esse mundo fora. A França é um destino regular dos melhores fadistas portugueses.

A iniciativa do comendador Armando Lopes, a alma por detrás da Rádio Alfa, conseguiu, uma vez mais, trazer ao vivo e pela antena três vozes de qualidade: Filipa Cardoso (na imagem, que não conhecia e que me pareceu de uma escola fadista próxima de Maria da Fé), António Pinto Basto e Mafalda Arnauth.

Inveja

Há semanas, uma conversa com compatriotas aqui residentes há bastantes anos trouxe à discussão a questão das "lideranças" da comunidade portuguesa em França. Alguém dizia que, contrariamente a outras comunidades de origem estrangeira, os portugueses não geram figuras de dimensão nacional, que possam projectar a sua especificidade no seio da sociedade francesa, levando as instituições deste país a terem mais em conta - e mais em consideração, o que não é necessariamente a mesma coisa - aquilo que interessa à nossa comunidade.

Em muitas dessas conversas, o mote é clássico: "nós, os portugueses, não nos sabemos unir", "não aparece gente capaz para ocupar lugares de relevo" e, na lógica de quem quer "passar uma bola" que o incomoda, "é importante que alguém faça alguma coisa para mudar isto".

Há uma triste ironia quando se comparam estas conversas com algumas outras em que se discute pessoas de nacionalidade ou origem portuguesa que, numa ou noutra actividade, conseguiram uma certa relevância e projecção ou estão em percursos de ascensão. Aí, o tom já é outro: "não passa de um ambicioso", "está a aproveitar-se de ser português para obter lugares de 'poleiro' ", "o que ele quer é subir na vida à nossa custa" ou "comigo não conta ele para se promover".

Talvez não seja por acaso que a última palavra de "Os Lusíadas", essa obra que é um pouco o nosso espelho histórico, seja "inveja".

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...