No Montecarlo, como escrevi um dia, "coabitavam mundos muito diversos, da tertúlia neo-realista à marginalidade sexual, do vário jornalismo a um certo "bas-fond", confinado este à área do dominó, protegida pelos bilhares. O Montecarlo era um curioso espaço plural, uma espécie de permanentes "estados gerais" de uma esquerda em definição de projectos que, quando abonada, assomava ao bife nas "toalhas" e, na rotina da crise, se resumia à imperial do fim da tarde ou à bica da noite"*.
A história passa-se no início dos anos 70. Nos cafés portugueses de então, havia uma velha prática, que os telemóveis entretanto tornaram sem sentido, de permitir aos clientes atenderem chamadas feitas para os telefones dos estabelecimentos. Assim, era muito vulgar ouvir: "Chamam ao telefone o sr. ....". No Montecarlo, com uma sala de considerável dimensão, distribuída por ambientes diversos muito ruidosos, havia mesmo um altifalante para tornar as mensagens mais audíveis.
Uma noite, com o café cheio, alguém se lembrou de utilizar a cabine telefónica que existia à entrada para os bilhares, ligou para o número do próprio café e solicitou: "Podia fazer o favor de chamar ao telefone o sr. general Humberto Delgado?". No balcão, estava um miúdo para quem esse era um nome como qualquer outro, pelo que logo anunciou: "Chamam ao telefone o sr. general Humberto Delgado". Grande parte da sala entrou em divertido alvoroço e comentários. Viu-se um empregado mais maduro ir repreender o rapazote, ensinando-lhe quem era o "general sem medo", talvez lembrando que os cavalos da repressão quase que haviam entrado pelo café dentro, em 1958, aquando da manifestação em favor do candidato presidencial oposicionista, em frente ao vizinho Liceu Camões.
Dias mais tarde, a cena repetiu-se com o nome de Álvaro Cunhal. A gestão do café percebeu o risco e uma figura mais madura passou a atender ao telefone, para que ninguém se aproveitasse da fragilidade em matéria de cultura política do rapazote do balcão. Mas essa "vigilância" não podia continuar sempre e, se bem me lembro (e tenho boas razões para isso...), ainda foram chamados ao telefone, nas semanas seguintes, Henrique Galvão, Palma Inácio e Norton de Matos, sempre com galhofa pública garantida. Aparentemente, nunca ninguém se lembrou de olhar para a cabine telefónica do café...
*Do texto "Vésperas de Abril", publicado na revista "Camões", nº 5, 1999