O pequeno avião da Air Gabon que nos trazia de Libreville para S. Tomé nem sequer vinha cheio, nesse final de fevereiro de 1976. Fazia o percurso, de ida e volta, apenas uma vez por semana. Era a única ligação de S. Tomé ao mundo, nesse tempo em que os voos de Luanda estiveram suspensos, pela guerra junto de Luanda.
Constava que, como passeio tradicional local, sem muito para fazer, havia pessoas de S. Tomé que se deslocavam de carro, da cidade até ao aeroporto, apenas para ver quem chegava nos raros aviões que pousavam na ilha. Chamavam-lhe mesmo, como acontecia em outras ilhas portuguesas, o “Dia de S. Avião”!
Tinha à minha espera, no aeroporto, um colega mais velho, que conhecia, embora sem intimidade, das férias da minha juventude em Viana do Castelo, João da Rocha Páris. Começou por dizer-me que decidira não me instalar, como eu tinha solicitado por telegrama à embaixada, num dos escassos e pouco confortáveis alojamentos da cidade: oferecia-me a sua própria casa. Também o embaixador, Amândio Pinto, me convidava, na residência, que era ao lado, para tomar todas as refeições do dia (foi, desde essa bela experiência, que passei a “pequenalmoçar” fruta, para o resto da minha vida). Que excelente e amável receção eu estava a ter!
Aproximou-se de nós, entretanto, um homem, com idade que não deveria ser muito distante da minha, o qual, com um sorriso simpático, me disse: “Sou teu primo, sabias?” A surpresa era grande! Estranhei, confesso, o súbito tratamento por tu, logo apurando que era filho de um primo da minha mãe e neto de um farmacêutico de Vidago, irmão da minha avó, que eu nunca conhecera. Viria a oferecer-me, dias depois, uma bela almoçarada de cozinha africana, em sua casa, com amigos, graças ao hábil dedo culinário da sua mulher.
Entretanto, as malas saiam no tapete rolante. Eram poucas, tal como os passageiros, e a minha “Tauro”, de falsa pele acastanhada, lá estava. Levámo-la no banco de trás do “carocha” preto, que a tropa portuguesa tinha deixado para a embaixada. (Seis anos depois, eu viria a herdar, em Luanda, um carro idêntico, já com buracos de ferrugem no chão, por onde entravam baratas voadoras...)
Ainda em Libreville, a mala parecera-me um pouco mais pesada do que inicialmente a recordava, mas levei isso à conta da livralhada que adquirira em Paris, nos dois dias que por lá passara. A cave da “Joie de Lire” tinha sido irresistível.
Chegados à casa do João, decidi tomar um banho e mudar-me, para irmos jantar a casa do embaixador, uma hora depois. Abri a mala e... fiquei gelado, naquele infernal calor dos trópicos! Aquela não era a minha mala! Nela se destacavam duas “peças” que nunca mais esqueci: uma colcha acetinada, com desenhos coloridos de cavaleiros e castelos, e uns sapatos de homem, de tacão bem alto, de quem gosta de disfarçar a pequenês, de uma cor castanha amelada!
Dei a trágica novidade ao João e, com a mala garantidamente alheia, que presumimos ter sido trocada na passadeira do aeroporto, logo partimos à desfilada, no “carocha”, para os três únicos locais onde havia hospedagem para quem vinha de fora: a antiga pousada, lá no alto, a conhecida pensão “Benguidoche” (não sei se se escreve assim!) e outro local qualquer. O património hoteleiro local esgotava-se nesse triângulo.
Não, em nenhum lado havia o menor registo de alguém ter levado a minha mala! Comigo desolado, regressámos a casa. Fez-se uma peritagem pelos pertences alheios e descobriu-se que era de alguém, de Guimarães, que aparentemente trabalhava nas plataformas petroliferas em Pointe Noire, no Congo ex-francês. Devia ter estado em Libreville, em trânsito, como eu.
A culpa tinha sido toda minha! “Puxada a fita atrás”, recordava-me de ter forçado a entrada na sala das bagagens, em Libreville, irritado com a lentidão do funcionário, deitando a mão à primeira “Tauro” que encontrei, sem sequer conferir o número da senha. Que não era a da minha mala! E despachara para S. Tomé a sua “sósia”!
No dia seguinte, foi mandado um “rádio” do aeroporto de S. Tomé para o de Libreville, para tentar localizar a minha mala. Mas fui logo avisado, pelo responsável (português) da torre de controlo: “Nunca, no passado, nos responderam a nada...” E assim iria ser dessa vez.
Ali estava agora eu, sem nenhuma roupa para mudar, sem alguns medicamentos (nada de essencial, porque então era novo e alguma coisa haveria na cidade, na farmácia da Dra. Rosa Botica, um apelido bem adequado), sem coisas para combater mosquitos de que, prevenidamente (eu fazia, há muito, minuciosas check-lists, quando viajava, mesmo à boleia), vinha munido. E sem água de colónia, sem gilete para a barba e coisas importantes assim! Estava furioso comigo mesmo! E o meu sobretudo e pullovers, essenciais para regressar por Paris, onde faziam temperaturas negativas? E a montanha de camisas, polos e calças, que caprichara em trazer?
Que fazer?, como se perguntava o clássico soviético que seguramente não perdeu a mala, quando chegou à estação da Finlândia, em Petrogrado, para os mais de dez dias que haviam de mudar o mundo.
“To make a long story short”, sobrevivi, por uma semana, com as mesmas calças e sapatos, pedi de empréstimo ao João alguma roupa interior, polos e camisas, sem grandes preocupações de vestuário protocolar, que a conjuntura não exigia. Bastava, se necessário, o meu blazer!
Sete dias depois, viajei de volta para Libreville. O avião atrasou-se um pouco em S. Tomé, à espera do primeiro-ministro Miguel Trovoada, o que me preocupou, pela possibilidade de poder vir a perder a ligação do voo da “Air Afrique” para França.
Fomos à conversa toda a curta viagem. Ele, que também acumulava com o cargo de ministro da Cooperação, tivera, num desses meus dias de S. Tomé, a imensa e inesperada gentileza de me receber em audiência. Ainda hoje penso, surpreendido: a mim, um jovem “adido de embaixada”, na sua primeira missão de responsabilidade!
A minha semana tinha, aliás, sido bem proveitosa: além de ter resolvido a greve que mobilizara os professores cooperantes (o mundo lusófono é uma “aldeia”: o responsável santomense pelo setor era um velho amigo da universidade, que tudo facilitou), eu tinha decidido fazer dossiês individualizados sobre a situação de setenta e tal servidores públicos portugueses que tinham ficado, com diferentes estatutos, em S. Tomé. E, também sem que ninguém mo tivesse pedido, tomei notas para um longo relatório sobre as principais carências do país, em termos de cooperação, depois de conversas que também tivera com a presidente da Assembleia Popular, a carismática Alda do Espírito Santo e com quatro outros ministros, todos com uma grande disponibilidade. A semana, mesmo sem mala, tinha acabado por ser de intenso trabalho, mas ainda dei uma saltada a uma praia. Chegado a Lisboa, viria mesmo a receber um louvor do secretário de Estado da Cooperação, Gomes Mota, que muito me agradou!
Durante a viagem para Libreville, ofereci a Miguel Trovoada um livro já clássico, que tinha acabado de ler: “L’ Afrique Noire est mal partie”, de René Dumont. Não havia, é claro, a menor ironia nessa oferta. Trovoada, a quem, na anterior conversa, eu já cedera um exemplar do “Le Monde”, que trouxera de Paris, ficou encantado. Cruzámo-nos várias vezes, no futuro.
Chegado ao aeroporto de Libreville, “voei” para o depósito das bagagens. E lá estava a minha mala! Com os segundos contados para poder fazer o “check-in” para Paris, expliquei tudo, aceitaram os meus argumentos, deixaram-me trocar as malas e embarquei. Nunca pude confirmar se o nosso compatriota de Guimarães chegou a receber a sua vistosa colcha e os sapatos alteadores, com a “Tauro” gémea da minha. Em África, tudo pode acontecer: até nada!
(ps - dei a este texto o título de uma canção de Celeste Rodrigues, que por cá foi muito famosa, em longínquos tempos idos)