Acho oportuno, no dia de hoje, recordar um texto que publiquei por aqui, há três anos, aquando do debate sobre um museu sobre a aventura marítima portuguesa:
“As viagens tituladas pela coroa portuguesa, desde o ataque a Ceuta, foram quase sempre operações de conquista (com exceção das desertas ilhas atlânticas), com toda a violência que isso à época implicava. Afonso de Albuquerque foi um guerreiro sanguinário e os outros capitães das frotas e das naus não devem ter sido muito mais meigos. Pode imaginar-se o modo como foram tratados os árabes, os negros ou os indianos e outros orientais que lhes apareceram pela frente, nessas expedições para encher alforges e porões, tendo como alibi ideológico a expansão da cruz. A captura e uso de escravos, com a desenfreada exploração laboral e sexual, fez parte integrante da empresa ultramarina e Portugal foi dos Estados europeus que prolongou essa selvática prática até mais tarde. O nosso atraso histórico é, aliás, recorrente: um século depois, quando já quase toda a Europa tinha descolonizado, por cá ainda se falava do “Ultramar” e do “Portugal do Minho a Timor”.
O Estado Novo, prosseguindo, aliás, uma velha narrativa colonialista republicana, pretendeu dar a essa aventura além-Europa uma aura de santidade civilizacional. Usou “Os Lusíadas” como bíblia apologética e capturou oportunisticamente em favor de um patriotismo de regime essa parte da nossa História, consagrando-a de forma caricatural, em textos e momentos hagiográficos, de que a Exposição do Mundo Português (que já ecoava modelos alheios) foi o mais curioso exemplo. A minha geração deve ter sido a última que foi atulhada por uma historiografia gongórica, de que muita da estatuária que por aí anda é aliás tributária.
A notável aventura marítima foi o que foi. Foi fantástica no que representou de inventividade e ousadia, marítima e não só, e o mundo credita-nos isso sem o menor problema, penso mesmo que muito menos do que deveria, à luz do esforço feito por um pequeno povo, numa ambição quase planetária.
Acho, contudo, sem o menor sentido - e até de uma despropositada arrogância histórica por parte da geração atual, que parece achar ter o direito de poder julgar as anteriores - estar a fazer juízos de valor sobre atos cometidos à luz de conceitos e princípios que estavam muito distantes dos nossos de hoje.
Uma coisa é podermos reagir com horror a crimes cometidos na idade contemporânea, quando já vigoravam padrões de valores civilizacionais muito próximos dos atuais - como os assassinatos em massa promovidos pelos nazis, ou os crimes do colonialismo mais recente, já dentro do século XX. Outra coisa é andar a escolher seletivamente episódios ou práticas de um passado distante, assumindo culpas (repito, à luz dos princípios de hoje) por atos como a inquisição, o colonialismo ou a escravatura. É que, por essa ordem de ideias, estaremos, um destes dias, a pedir contas a alguém pela brutalidade das invasões bárbaras, antes da nossa nacionalidade. E esses ciclos nunca terão fim.
Voltemos às descobertas. São descobertas ou achamento, como se debateu no Brasil? Para Portugal, entidade invasora, detentora do olhar que enformou a sua perspetiva de titular desses atos, foram descobertas, de terras e de gentes que o poder português dominou - à força, claro, porque, que eu saiba, as operações de conquista foram sempre feitas pela violência, às vezes extrema e impiedosa. E, claro, com massacres, agressões de toda a ordem, desrespeito total pelos povos encontrados, por muito que, aqui ou ali, pudesse ter havido práticas menos constrangentes. Mas reconheçamos isso, com toda a frontalidade, agora sem ter de recorrer à ganga apologética que o discurso historiográfico da ditadura nos impôs, mas igualmente sem prescindir, nem por um segundo, de relevar o caráter fantástico e pioneiro da empresa das navegações, no que ela teve de avanço para o conhecimento e abertura do mundo.
Nós somos, como povo, o somatório dos vários segmentos sucessivos da nossa História. No terreno colonial, outros a sofreram para que, deste lado, o país de então pudesse beneficiar - na exploração dos recursos económicos e humanos, com uso de escravatura e trabalho forçado, ignorando e espezinhando as identidades dos povos, com práticas racistas em que o “outro” foi, muitas vezes, apenas uma “coisa”. Nesse aspeto, podendo a colonização portuguesa ter tido alguns matizes próprios, basicamente ela seguiu um padrão muito comum aos restantes conquistadores europeus. Foi o que foi e assim deve ser estudada, entendida e exposta, com total transparência histórica.
Dificilmente conseguiremos consensualizar uma discurso comum sobre a História. Aliás, não vejo qualquer vantagem nisso. No trabalho sério em torno do passado, importa apenas não esconder nenhum aspeto da verdade, devendo, contudo, estar sempre preparados para que essa leitura seja diferente, de acordo com as diversas perspetivas, também elas decorrentes da experiência de cada um. Divulguemos e exponhamos os factos, todos os factos.
Ainda no que toca ao debate sobre um museu sobre a aventura marítima e colonial portuguesa, acho, sem a menor hesitação, que deveria ser um “museu das descobertas”, da mesma maneira que devemos aceitar, com toda a naturalidade, que, do lado de quem sofreu uma invasão brutal do seu território, possa e deva ser feito um “museu da exploração colonial”. São as duas faces de uma mesma verdade. Pretender a reconciliação dos olhares, como que “hierarquizando-os”, nunca será aceite por todos, é um artificialismo que não conduzirá a nada. Em particular à tal verdade.“
É isto que eu penso.