Estávamos num jantar de trabalho, no Luxemburgo, no fim do primeiro dia de um Conselho de ministros Assuntos Gerais da União Europeia, em 1996.
Abel Matutes, ministro espanhol de "Exteriores", revelou-me que a Espanha tinha um candidato para o importante lugar que o Conselho Europeu iria criar, dentro de dois dias, de enviado especial da UE para o Médio Oriente. Tratava-se de garantir à Europa uma maior visibilidade política no processo de paz, à altura do apoio que a ele já prestava no domínio económico. Matutes hesitava, contudo, em avançar, desde já, com o seu nome, porque tinha indicações de que os britânicos se lhe oporiam, pelo interesse que se dizia poderem ter no cargo. Porém, não tendo aparecido outros candidatos, a imediata colocação em liça de um nome colocaria a Espanha na dianteira, com todos os eventuais futuros nomes já a surgir como seus "challengers". Estas eram as razões que fundamentavam a hesitação.
Matutes explicou-me também que a figura espanhola pensada para o cargo era o seu recém-nomeado embaixador em Tel-Aviv, Miguel Ángel Moratinos. Perguntou-me se acaso eu poderia vir a obter o apoio de Lisboa para o candidato espanhol. Expliquei-lhe que não precisava de consultar Lisboa e ele que podia contar, a 100% e desde logo, com o pleno apoio do governo português. (Esta é, na prática, uma regra não escrita nas relações luso-espanholas contemporâneas: apoiamos mutuamente os nossos candidatos, a menos que tenhamos interesses próprios a salvaguardar ou compromissos com terceiros a respeitar).
Animado com a minha reação, e após discretas aproximações positivas a mais dois colegas, Matutes acabou por lançar para a mesa a proposta do nome de Moratinos. Como era de esperar, o britânico David Davies, "minister for Europe", pediu mais tempo para refletir. Para grande satisfação de Matutes, fui o primeiro a "sair à carga", argumentando que o desenvolvimento rápido da situação na região impunha que a Europa mostrasse, de imediato, uma "cara" no processo de paz que tomava então formas crescentemente positivas e que Portugal propunha formalmente que, daquele jantar, saísse já uma aprovação "de princípio" do nome espanhol (que elogiei sem sequer conhecer...). Por uma daquelas dinâmicas que, às vezes, ocorre neste tipo de encontros, e um tanto pelo efeito surpresa provocado pela proposta de Matutes, acabou por gerar-se um sentimento alargado de apoio ao candidato espanhol. O nome de Moratinos foi anunciado formalmente, logo nessa noite, como a proposta unânime dos chefes da diplomacia ao Conselho Europeu (isto é, aos primeiros-ministros). David Davies, à saída do jantar, estava agastado comigo e com a "pressão ibérica" que eu tinha ajudado a transformar em decisão...
Miguel Ángel ("Curro", para os amigos) Moratinos permaneceu no cargo de enviado especial da UE para o Médio Oriente de 1996 a 2003, tendo sempre mantido conosco um excelente relacionamento, nomeadamente durante a nossa presidência da UE, em 2000. Com um trato pessoal de grande afabilidade, que esconde uma forte determinação, Moratinos ajudou a credibilizar a voz europeia num processo onde, por uma culpa que não é sua, a Europa tem sempre e apenas o "óscar" para o "melhor ator secundário".
(Para a "petite histoire", posso revelar que, num jantar idêntico ao de 1996, que teve lugar na Grécia em Junho de 2003, os chefes da diplomacia europeia abordaram a questão da substituição de Moratinos, o qual pretendia abandonar o cargo de representante especial da UE para o Médio Oriente. Um único nome foi então discutido e a aprovação dos ministros em torno dele ficou praticamente garantida. O nome era... o meu! Porém, o governo português de então não havia tido nem o cuidado nem a elegância de me consultar previamente, tendo optado por "testar" a aceitabilidade do meu nome sem querer saber da minha eventual disponibilidade, contando que eu aceitaria o facto consumado. Por essa e por outras razões, recusei a possibilidade de indigitação. O Conselho Europeu ficou então sem um candidato que nunca o fora e Moratinos acabou, muito contra a sua vontade, por ter de prolongar-se por mais alguns meses nas funções. Esta historieta surgiu em vária imprensa da época, como, por exemplo, aqui. Na altura, sobre o assunto, escrevi isto.)
Moratinos seria chamado, anos mais tarde, a dirigir a diplomacia do seu país. O seu relacionamento com Portugal manteve-se excelente. Saiu anteontem do governo espanhol, numa remodelação surpresa efetuada pelo presidente Zapatero.
A diplomacia espanhola e a diplomacia portuguesa têm, nos dias que correm, fortes pontos de contacto e de convergência. Isso deve-se muito a homens como "Curro" Moratinos.