sábado, outubro 23, 2010

Moratinos

Estávamos num jantar de trabalho, no Luxemburgo, no fim do primeiro dia de um Conselho de ministros Assuntos Gerais da União Europeia, em 1996.

Abel Matutes, ministro espanhol de "Exteriores", revelou-me que a Espanha tinha um candidato para o importante lugar que o Conselho Europeu iria criar, dentro de dois dias, de enviado especial da UE para o Médio Oriente. Tratava-se de garantir à Europa uma maior visibilidade política no processo de paz, à altura do apoio que a ele já prestava no domínio económico. Matutes hesitava, contudo, em avançar, desde já, com o seu nome, porque tinha indicações de que os britânicos se lhe oporiam, pelo interesse que se dizia poderem ter no cargo. Porém, não tendo aparecido outros candidatos, a imediata colocação em liça de um nome colocaria a Espanha na dianteira, com todos os eventuais futuros nomes já a surgir como seus "challengers". Estas eram as razões que fundamentavam a hesitação.

Matutes explicou-me também que a figura espanhola pensada para o cargo era o seu recém-nomeado embaixador em Tel-Aviv, Miguel Ángel Moratinos. Perguntou-me se acaso eu poderia vir a obter o apoio de Lisboa para o candidato espanhol. Expliquei-lhe que não precisava de consultar Lisboa e ele que podia contar, a 100% e desde logo, com o pleno apoio do governo português. (Esta é, na prática, uma regra não escrita nas relações luso-espanholas contemporâneas: apoiamos mutuamente os nossos candidatos, a menos que tenhamos interesses próprios a salvaguardar ou compromissos com terceiros a respeitar).

Animado com a minha reação, e após discretas aproximações positivas a mais dois colegas, Matutes acabou por lançar para a mesa a proposta do nome de Moratinos. Como era de esperar, o britânico David Davies, "minister for Europe", pediu mais tempo para refletir. Para grande satisfação de Matutes, fui o primeiro a "sair à carga", argumentando que o desenvolvimento rápido da situação na região impunha que a Europa mostrasse, de imediato, uma "cara" no processo de paz que tomava então formas crescentemente positivas e que Portugal propunha formalmente que, daquele jantar, saísse já uma aprovação "de princípio" do nome espanhol (que elogiei sem sequer conhecer...). Por uma daquelas dinâmicas que, às vezes, ocorre neste tipo de encontros, e um tanto pelo efeito surpresa provocado pela proposta de Matutes, acabou por gerar-se um sentimento alargado de apoio ao candidato espanhol. O nome de Moratinos foi anunciado formalmente, logo nessa noite, como a proposta unânime dos chefes da diplomacia ao Conselho Europeu (isto é, aos primeiros-ministros). David Davies, à saída do jantar, estava agastado comigo e com a "pressão ibérica" que eu tinha ajudado a transformar em decisão...

Miguel Ángel ("Curro", para os amigos) Moratinos permaneceu no cargo de enviado especial da UE para o Médio Oriente de 1996 a 2003, tendo sempre mantido conosco um excelente relacionamento, nomeadamente durante a nossa presidência da UE, em 2000. Com um trato pessoal de grande afabilidade, que esconde uma forte determinação, Moratinos ajudou a credibilizar a voz europeia num processo onde, por uma culpa que não é sua, a Europa tem sempre e apenas o "óscar" para o "melhor ator secundário".

(Para a "petite histoire", posso revelar que, num jantar idêntico ao de 1996, que teve lugar na Grécia em Junho de 2003, os chefes da diplomacia europeia abordaram a questão da substituição de Moratinos, o qual pretendia abandonar o cargo de representante especial da UE para o Médio Oriente. Um único nome foi então discutido e a aprovação dos ministros em torno dele ficou praticamente garantida. O nome era... o meu! Porém, o governo português de então não havia tido nem o cuidado nem a elegância de me consultar previamente, tendo optado por "testar" a aceitabilidade do meu nome sem querer saber da minha eventual disponibilidade, contando que eu aceitaria o facto consumado. Por essa e por outras razões, recusei a possibilidade de indigitação. O Conselho Europeu ficou então sem um candidato que nunca o fora e Moratinos acabou, muito contra a sua vontade, por ter de prolongar-se por mais alguns meses nas funções. Esta historieta surgiu em vária imprensa da época, como, por exemplo, aqui. Na altura, sobre o assunto, escrevi isto.)

Moratinos seria chamado, anos mais tarde, a dirigir a diplomacia do seu país. O seu relacionamento com Portugal manteve-se excelente. Saiu anteontem do governo espanhol, numa remodelação surpresa efetuada pelo presidente Zapatero. 

A diplomacia espanhola e a diplomacia portuguesa têm, nos dias que correm,  fortes pontos de contacto e de convergência. Isso deve-se muito a homens como "Curro" Moratinos.

República

Bela (e imperdível, para quem puder) exposição sobre a (primeira) República, a que está na Cordoaria de Lisboa. 

Rigorosa e historicamente não demagógica, como seria de esperar de um académico do nível de Luis Farinha - que há meses tive o gosto de ter, como meu convidado, em Paris, para o colóquio realizado na Embaixada sobre a "Liga de Paris". E com um grafismo de grande força e elegância, na tradição a que o Henrique Cayatte nos habituou, desde há muito.

Três notas críticas, uma de fundo, duas de forma.

A exposição assenta, basicamente, nos eventos entre 1910 e 1926, isto é, sobre 16 anos de uma República que tem mais 84 de existência. Pena é que a mostra passe "a correr" sobre todo o cultivo da ideia republicana que a coragem de alguns fez sobreviver durante toda a ditadura salazaro-marcelista. E que o 25 de Abril, e o fantástico salto de modernidade e de aculturação democrática a ele subsequente, não sejam sublinhados como um orgulhoso património da nossa República.

Agora, as reticências de forma.

Presumo que 90% dos visitantes que chegam à Cordoaria se dirigem à sua entrada habitual. Hoje, eu e a totalidade das pessoas que queriam visitar a exposição lá fomos "ao engano", pela falta de indicação de que o início da mostra é, afinal, no torreão norte.

Posso ter sido iludido pela amostragem, mas a qualidade profissional das apresentadoras que explicam a exposição aos grupos pareceu-me fraca, com um discurso muito "papagueado". Uma delas relatava - aliás, perante o gramatical silêncio do auditório - que "houveram muitas revoltas" em certo período. Eu, que ia de passagem, não resisti e perguntei alto: "houveram?". E a menina, convicta de que eu estava a pôr em causa os factos, lá confirmou: "houveram, houveram, sim senhor!". Desisti...

Dito isto, acho importantíssimo que, quem puder, visite esta magnífica exposição, infelizmente só disponível até ao início de Dezembro. Despachem-se!

sexta-feira, outubro 22, 2010

América Latina

Ontem, ao intervir na Fundação Gulbenkian, a convite da Casa da América Latina e do Instituto Diplomático, dando uma visão portuguesa sobre aquele sub-continente americano, recordei uma obra histórica de Marcel Niedergang, um livro que li no final dos anos 60: "Les vingt Amériques Latines". 

Ao ouvir vários dos intervenientes, dei-me conta de como pode ser redutor o conceito "América Latina", da imensa variedade de realidades que ele esconde, sob a capa federadora da língua e de alguma cultura comum.

Organizei o que disse na minha intervenção em tópicos, a que talvez algum leitor pode achar interesse:

  • Há uma política de Portugal para a AL?
  • O Brasil. A América hispânica. As "Américas Latinas". A retórica e a realidade.
  • O tempo das ditaduras (na Europa e na AL). Portugal: uma política bilateral errática e de oportunidade. O Brasil e a AL no esforço internacional de defesa colonial de Portugal. Migrações e culturas.
  • A integração europeia e o início de um novo "olhar europeu" sobre a AL. Portugal e a Espanha na política exterior europeia. Papel da França e Itália.
  • Integração latino e sul-americana. Limites, frustrações e dúvidas.
  • Crescente comunidade de valores euro-latinoamericana. Ação comum nos fóruns multilaterais. Problemas: Cuba e outros. Haverá um agravamento futuro das divergências? Desenvolvimento e comércio. Protecionismo. A conflitualidade intra-AL como possível problema.
  • Processo íbero-americano: as dificuldades e os equívocos. O "gigantismo" do Brasil. A "tutela" espanhola. Os limites realistas do exercício. Portugal e Espanha no exercício.
  • O Brasil e a sua vizinhança hispânica. Bom gigante ou "big brother"? Conceito de "América Latina" não existe para o Brasil: só "América do Sul".
  • Brasil e EUA: manter a "América do Norte"...a Norte - questões Colômbia, Amazónia e IV Frota.
  • Para fazer em comum: reforma da ONU? Agenda do Milénio? Multilateralismo comercial e ambiental? Defesa e segurança? Atlântico Sul, droga e terrorismo numa possível agenda renovada.
  • Portugal e a AL: sempre velhos amigos mas não amigos velhos.

Taxi

Foi mais para ser simpático do que por qualquer outra razão que perguntei:

- Há muitas senhoras a dirigir táxis, cá em Lisboa?

O seco "algumas", saído da boca da motorista, logo me fez ver que estávamos longe de um ambiente distendido, passível da sociologia de pacotilha que o tema poderia, despretenciosamente, ajudar a cultivar, nos minutos da viagem.

Logo na primeira rotunda, tudo se confirmou:

- Saiu-te a carta na farinha Amparo, ó palerma! - gritou, abrindo o vidro, para um outro automobilista.

- Cada vez há mais bestas por aí - teve a confidência de me esclarecer, não fosse eu não ter percebido.

Afundei-me no banco, por detrás do meu "Notícias", lamentando não estar a ler outra literatura mais consonante com a matriz da minha condutora, como "O Crime" ou quejandos. Estou certo que isso trar-me-ia outro nível potencial de cumplicidade. 

Até a feminilidade é afetada pela crise. Ou será só a educação?

"Ágora"

Um convite da Junta de Extremadura levou-me, há dias, a Espanha, onde, de 18 a 24 de outubro, tem lugar a 10ª edição do "Ágora - el debate peninsular". Devo dizer que foi para mim uma agradável surpresa confrontar-me com este magnífico projeto, que mobiliza algumas centenas de pessoas, sob a direção competente de Ignácio Sanchez Amor.

Fiz parte de uma mesa sob o lema "Geometria Variable - los nacionalismos en la península ibérica", moderada pelo professor de Ciência Política da universidade de Madrid, Carlos Taibo, por Maria do Carmo Dalmau, ligada às questões da Catalunha, por Xosé Manuel Beiras, fundador do Bloque Nacionalista Gallego e pelo próprio diretor do Ágora, Sanchez Amor. 

Foi um excelente e muito vivo debate, de que deixo apenas uns escassos tópicos da minha intervenção inicial:
  • a Espanha no imaginário diplomático português. Os "demónios ibéricos" da História. Ditadura e democracia.
  • os "três D" da antiga relação luso-espanhola: desconfiança, desconhecimento, dissimetria.
  • Espanha e Portugal: as realidades por detrás da retórica.
  • dissídios do passado recente: os rios, as pescas, os comandos NATO, os bancos, etc.
  • problemas do presente: o proteccionismo espanhol, PT/Telefónica.
  • a relevância do fenómeno nacionalista espanhol na atual relação bilateral Lisboa-Madrid.
  • cooperação transfonteiriça: dois Estados e várias nações. Soberanias e cooperação. Realismo e respeito.
Confesso que foi um grande prazer participar neste exercício. Por lá estiveram muitos portugueses, desde Jaime Nogueira Pinto a Joaquim Pina Moura, de Manuela Ferreira Leite a Ricardo Araújo Pereira (esse mesmo! falando "de que se ríen los vecinos?").

Como me dizia, depois de uma saudável e solta jantarada, um (novo) amigo, Josep Sanchéz Cervelló, este tipo de encontros fazem mais pela amizade luso-espanhola que anos de discursos oficiais.

Saiba mais sobre Ágora aqui.

quinta-feira, outubro 21, 2010

A cadeira

A noite já ia longa. O embaixador português esmerara-se no acolhimento dado ao seu ministro, visitante daquela capital onde, há já alguns anos, exercia as suas funções, nesse que era o seu último posto  diplomático, depois de um percurso profissional interessante. Obstinado e frontal, o diplomata tinha consciência de que não projetava, entre os seus pares, uma imagem consensual. O seu caráter truculento grangeara-lhe vários inimigos e apenas uma escassa mão-cheia de amigos. Mas isso, dizia-se, era-lhe irrelevante. Olhava para as reticências com que os outros o viam como a expressão da fragilidade alheia, como um fator desafiante para a sua conhecida postura na Carreira.

Pessoalmente, não tinha do homem uma ideia precisa. Nunca trabalhara com ele, nem nos havíamos cruzado profissionalmente. Era a primeira vez que com ele convivia. O facto de ser uma pessoa frontal, que se "borrifava" para os poderes, era um ponto positivo. Falado, contudo, revelara-se um insuportável pedante. Em suma e em saldo: era-me indiferente.

Essa não parecia ser, contudo, a atitude de um diretor-geral que fazia parte da delegação que acompanhava o ministro. Homem despretencioso e relativamente são, nele pressenti, desde cedo, uma acrimónia contra o embaixador, talvez fruto de histórias antigas, em que a nossa profissão é fértil. Se havia uma "corrente" que passava entre ambos, ela era de "alta tensão"...

O jantar na residência do embaixador fora normal. Acabado o respasto, recolhemo-nos à adjacente sala de estar. O ministro escolheu uma estratégica poltrona. Eu, acompanhado pelo diretor-geral e por um jovem colaborador do embaixador, sentámo-nos num sofá, degustando cafés e as aguardentes de função. Outros se espalhavam pela sala. O embaixador, que sofria do ouvido, alapou numa cadeira próxima do ministro, cuja atenção mobilizou, alimentando conversas nas quais - acontece-nos a todos! - procurava mostrar o seu indisputável domínio da situação política local, que dissecava, aliás, com visível inteligência.

O tempo passou e a conversa fluiu. A certo passo, vi o jovem colaborador do embaixador manifestar o que me pareceu ser alguma inquietude, por uma coreografia movediça do corpo. Em tom baixo, comentou, para mim e para o diretor-geral: "É um perigo! A cadeira em que o meu embaixador está sentado tem uma perna fortemente inclinada. A qualquer momento, pode cair". O jovem estava, sinceramente, preocupado com a sorte potencial do seu chefe.

Num segundo, e tal como o jovem colaborador do embaixador, também eu visualizei o risco: de facto, se a cadeira cedesse, ele cairia desamparado e tudo poderia acontecer, até um grave traumatismo craniano, fruto do embate com a tijoleira da sala.

O jovem secretário, na indecisão provocada pela sua dependência hierárquica, hesitava em interromper o seu chefe, talvez temeroso que um seu alerta pudesse ser interpretado como bajulador. Para mobilizar a sua própria coragem, consultou, em tom baixo, o diretor-geral, que estava a seu lado: "Acha que eu diga ao embaixador que a cadeira em que ele está sentado é perigosa, que uma das pernas pode ceder e conduzir a um acidente grave?"

O diretor-geral olhou-o de viés, sacou uma baforada mais do seu cachimbo e, em tom igualmente com poucos decibéis, aconselhou: "Se você for culpado pelo facto desse estupor não se "esbardalhar" com as fuças no chão, a Carreira não lhe perdoará nunca..."

Resisti a dar uma gargalhada. O secretário de embaixada percebeu a mensagem, manteve-se calado, porque a opinião de um diretor-geral seria indispensável à sua futura promoção e à definição do seu próximo posto. E, vá lá!, o seu embaixador não se "esbardalhou", até ao fim da noite. Aliás, há semanas, vi-o, reformado, numa pastelaria do Estoril, com o  seu eterno e irónico sorriso, prova da qualidade das cadeiras lá de casa.

Uma questão de justiça

Um esforçado colega de serviço público, de seu nome António Martins, expoente sindical de um "órgão de soberania", por via da profissão que, nomeadamente, decretou, há pouco, a imaculada pureza de intenções do senhor Domingos Névoa, um estimável cidadão de Braga vilmente acusado pelos irmãos Sá Fernandes, houve por bem afirmar que as medidas de restrição salarial, que injustamente acabaram por ferir a sua nobre casta, mais não configuram do que uma objetiva intenção de coartar a eficácia da máquina judicial, a qual tem mobilizado, com uma coerência que o país testemunha com diária admiração, sangue, suor, férias especiais e ajudas de muito custo.

Que as mãos lhe não doam nunca, companheiro Martins! 

quarta-feira, outubro 20, 2010

Obituários

Esta história passou-se em Inglaterra, claro está.

Uma das mais antigas tradições da boa imprensa britânica é a publicação de obituários, essas biografias mais ou menos sintéticas, quase sempre benevolentes, de figuras que partem desta vida. Alguns grandes jornais britânicos (o "Financial Times" não o faz), do "The Times" ao "The Independent", do "The Guardian" ao "The Daily Telegraph", trazem diariamente notas sobre personalidades falecidas, algumas das quais são, por vezes, peças soberbas de bela escrita. Certos jornais chegam a editar em livro, no final do ano, alguns desses textos. Já cheguei à triste conclusão de que é por ocasião da morte das pessoas que acabo por aprender mais sobre a sua vida.

Um dia, uma figura britânica de menor destaque, mas com suficiente importância para poder merecer uma pequena nota necrológica, foi surpreendida pela embaraçada informação de que um jornal tinha inserido, nesse dia, o seu obituário. A família começara já a receber condolências... Uma troca de nomes terá estado na origem desse lamentável erro. 

O nosso homem, que se encontrava longe de Londres, no campo, sem jornais acessíveis, mal soube do sucedido ligou a um amigo na capital, alguém que o puderia ajudar a desmentir imediatamente o facto, junto dos círculos sociais conhecidos. Mas eram outros os tempos tecnológicos. A cobertura telefónica na zona rural onde vivia tinha grandes fragilidades, havia imensos os ruídos na linha, o som geral das comunicações interurbanas era muito débil. Depois de várias tentativas, o amigo londrino lá acabou por atender. O infeliz biografado, para se identificar, gritou, por entre a confusão das várias sonoridades que se projetavam na linha telefónica, o seu próprio nome. Do outro lado, houve uma pausa, por alguns segundos. Até que, finalmente, o amigo de Londres, numa entoação que soava a perplexa, perguntou: "where are you calling from?..." 

terça-feira, outubro 19, 2010

Os chatos da plateia

São temíveis! Raramente escolhem a primeira fila dos auditórios, embora isso aconteça com alguns mais vaidosos. Pela minha experiência, a terceira fila costuma ser o seu lugar de eleição, de preferência junto às coxias, por forma a facilmente poderem obter o microfone das mãos dos ajudantes volantes que circulam pela sala. Falo, naturalmente, dos chatos interventores, dos falsos perguntadores, sempre presentes em colóquios, palestras e conferências, que aproveitam o momento da abertura do debate à audiência para fazerem longas dissertações, para as quais ninguém os convidou.

Em Portugal, durante anos, pressentia-os, mal me sentava numa mesa, com um simples olhar pela sala. Conheci alguns de ginjeira, sabia que estavam à coca do momento oportuno, de dedo imediatamente esticado para pedirem o microfone (chegam a fazer sinal prévio aos ajudantes de sala, quando prevêem próximo o período de perguntas). Mas o seu objetivo quase nunca é colocar uma questão aos oradores ou, se o fazem, trata-se de um mero gesto formal, no fim de uma imensa exposição pessoal. Aliás, e pela minha experiência, o que é dito pelos interventores é-lhes praticamente indiferente. Trazem a lição estudada de casa, uma ideia fisgada, as mais das vezes embrulhada em fórmulas confusas, quase sempre com tonalidades radicais. A sua grande finalidade é intervir, opinar, dizer o que pensam, por mais indiferente que isso seja a quem foi ali para ouvir outros. Os mais hábeis, quando pressentem que o moderador da mesa se prepara para os interromper, têm duas técnicas: uma delas é citar, a meio da fala, ainda que obliquamente, um dos oradores oficiais, para dar a falsa perceção de que se encaminham para a formulação de uma pergunta; outra é recorrerem à vetusta figura do "só gostaria agora de acrescentar, para terminar..." ou coisa do género - o que lhe faz ganhar uns minutos mais.

Há dias, num cenário de um qualquer colóquio, ao ver atuar uma dessas personagens, lembrei-me que poderia ser interessante organizar uma sessão onde se pudesse colocar na mesa, como oradores, precisamente um grupo selecionado desses chatos  mais conhecidos, dando-lhe, finalmente, o palco que tanto procuram. A dificuldade residiria apenas em encontrar, para o debate, um tema que lhes fosse comum... E plateia para os aturar, claro.

segunda-feira, outubro 18, 2010

CCB

Fui daqueles que, ao tempo da sua construção, diabolizaram o Centro Cultural de Belém (CCB). Não só achava a obra uma megalomania tonta como desprezava a vontade de quantos haviam ousado estragar o equilíbrio dos Jerónimos com a proximidade "modernaça" de um mostrengo arquitetónico de duvidoso recorte neo-egípcio, que  iria impedir o "diálogo" sereno com a Torre de Belém. Além do mais, pensava eu, o CCB ia ser uma "catedral no deserto", condenada ao vazio e ao fracasso como projeto.

Enganei-me redondamente: o CCB tem uma dimensão não conflitual com a monumentalidade vizinha (100 metros de distância mais dos Jerónimos não teriam, porém, ficado mal) e constitui hoje um polo da maior importância na modernidade portuguesa. Os lisboetas "apropriaram-se" dele e afeiçoaram-se por completo a esta nova centralidade.

Às vezes, temos de ter a coragem - e a decência - de "dar o braço a torcer". Faço-o hoje, com gosto, a propósito do CCB.

Eduardo

Falar de alguém insuportavelmente ausente pode ser uma tortura. Não o foi - antes pelo contrário - a conversa que ontem o António Mega Ferreira organizou no Centro Cultural de Belém, sobre a figura e a obra de Eduardo Prado Coelho. Que bem que nos fez a todos recordar o Eduardo, ouvir contar as suas histórias, revisitar a lucidez impressionante das suas palavras! 

Alexandra Prado Coelho, Fernando Pinto do Amaral, Margarida Lage e Nuno Júdice evocaram escritos e deram notas pessoais sobre Eduardo Prado Coelho. Para as dezenas de presentes, amigos ou admiradores do Eduardo, foi muito bom rever alguns dos seus mais belos textos, cuja densidade o tempo e a distância parecem sublinhar ainda mais.

A Eduardo Prado Coelho, como aqui já disse noutras ocasiões, Portugal deve um sopro de modernidade e um choque cultural que talvez não tenhamos, até hoje, medido em pleno.

domingo, outubro 17, 2010

Azul

Não sei se é da idade, mas o azul do céu de Lisboa perturba-me cada vez mais. Pela positiva, claro. Hoje, Lisboa estava com um céu de um azul imbatível. Não sou muito dado a reflexões poético-emocionais sobre cores, mas tenho vindo a dar conta que frequentar o azul me faz imenso bem. E o azul é, para mim, definitivamente, a cor de Lisboa, sendo falsa a ideia fílmica da "cidade branca", que equivocou Tanner. Optar pelo azul é uma banalidade? Claro que é, mas cada vez acho mais que assumir a banalidade genuina é a mais saudável forma de snobeira.

E as outras cores? Também as há, claro. Gosto do verde por irracionalidade afetiva e do vermelho (não do encarnado) pelas razões da razão. Do amarelo, só aprecio os sorrisos de alguns e deixo o roxo pascal para o fígado dos colunistas e blogueiros da desgraça. E o resto para os restantes.

sábado, outubro 16, 2010

Artur Santos Silva

Há dias, numa conversa em Paris, uma amiga com fortes ligações ao nosso país disse-me, de forma apreciativa, que este blogue a tem ajudado a conhecer melhor Portugal e, mesmo, a "descobrir"  alguns portugueses. Fiquei satisfeito, porque esse é também um dos objetivos do que por aqui vou deixando.

Hoje, ao abrir o "Público", num avião da TAP, deparei com uma longa entrevista de Artur Santos Silva, presidente do BPI e da comissão para as comemorações do centenário da República. E lembrei-me que este é um nome que as pessoas ganhariam  muito em conhecer melhor. Para quem possa fazê-lo, recomendo a leitura daquele texto. As respostas são um manancial de bom-senso e de sentido cívico, sem deixarem, simultaneamente, de refletir um espírito lúcido e crítico. Dei por mim a pensar que Portugal se permite, com grande frequência, não utilizar, em funções determinantes para a condução ou orientação do país, algumas figuras cuja estatura seriam uma mais-valia para o serviço público. 

Artur Santos Silva passou apenas brevemente pela política, optou pelo usufruto da independência, prestigiou-se profissionalmente e criou uma instituição bancária de referência. Ao longo dos anos que levo da observação da vida do país, ele continua a ser uma das vozes que mais me têm marcado pela sua retidão e exemplaridade, pelas úteis lições de vida que nos transmite.

Oriundo de uma família liberal do Porto, é um homem formado num tempo e num ambiente em que a cultura e o respeito atravessavam a formação da juventude. Dessa rica vivência soube decantar uma forma de estar na vida da qual emana uma imensa serenidade. O meu pai, que daqui a dias teria a idade da nossa República, educou-me a respeitar figuras que qualificava como "pessoas de bem". Artur Santos Silva é uma delas.

Escrevo este post com muito à-vontade. Não sou íntimo de Artur Santos Silva. Vivemos em mundos diferentes, não temos laços políticos ou profissionais, conheço-o apenas por contactos esporádicos, embora feitos de cordialidade e, estou certo, de mútua estima. Devo confessar, porém, que criei uma sincera admiração por esta figura ética que - e aqui regresso ao início deste texto - o nosso país não terá aproveitado como devia. 

Digo-o a propósito da entrevista que hoje li e, claro, de muitas outras coisas que os tempos correntes me suscitam. Mas por aqui me fico.

Arras

Ontem, dei por muito bem empregue o longo tempo de viagem de automóvel, para uma deslocação de um dia completo a Arras, para contactar as autoridades locais, para falar de Portugal a cerca de 400 estudantes da Université d'Artois e para estar presente na inauguração da "Saison Portugaise", no "Le Quai de la Batterie".

No primeiro caso, foi muito interessante poder discutir, com uma audiência madura, a posição de Portugal perante as grandes questões internacionais, mas igualmente o futuro das línguas portuguesa e francesa à escala global, para além de um conjunto vasto de outros temas. Uma hora de palestra e outra de debate confirmaram-me a crescente curiosidade em torno da imagem de Portugal que se regista aqui em França.

Depois, foi revigorante ver como um atelier como "Le Quai de la Batterie", com o apoio da "Mairie" local, conseguiu trazer a Arras quatro excelente criadores artísticos da contemporaneidade portuguesa: Francisco Tropa, Maria Loura Estêvão, Isabel Baraona e Joana Travisco. Trata-se apenas da primeira parte de um extenso programa que se prolongará por 2011, no qual a cultura portuguesa será abordada em muitas dimensões - artes plásticas, fotografia, teatro, literatura, música, cinema, etc.

Portugal deve estar reconhecido a quem, no estrangeiro, se interessa pela sua cultura e se organiza de forma a, generosamente, a dar a conhecer. Foi essa uma das mensagens que deixei em Arras.

quinta-feira, outubro 14, 2010

Chile

A propósito do salvamento dos mineiros chilenos, alguém me dizia ontem, num jantar, que é muito bom para o mundo que haja uma história famosa que acabe bem.

De facto, fartos andamos nós de desgraças e tragédias, como alimento do nosso quotidiano mediático.

Reformas

Um dos fenómenos mais curiosos, no âmbito dos movimentos sociais que têm vindo a contestar a legislação para o alargamento da idade da reforma em França, foi o aparecimento, nesse contexto, dos estudantes liceais.

Independentemente das questões de fundo deste debate, confesso que não pude deixar de dar uma gargalhada ao ver uma jovem de 16 anos, inquirida sobre a razão pela qual aderia aos protestos, dizer na televisão: "eu, quando chegar aos 60 anos, quero ter o direito de não trabalhar mais!". 

Para alguém ainda longe de entrar no mercado de emprego, não está mal!

quarta-feira, outubro 13, 2010

Solana

Javier Solana é um amigo de Portugal. E, por coincidência, meu amigo pessoal. Ontem, o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Luis Amado, fez-lhe entrega da Grã-Cruz da Ordem de Cristo, uma alta condecoração portuguesa. Nada de mais merecido.

Solana teve um percurso brilhante, depois de uma juventude de ativismo político pela liberdade em Espanha. Ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país, secretário-geral da NATO e figura cimeira da Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia, em todos esses lugares soube afirmar uma atitude de grande equilíbrio, de sentido de compromisso, com uma simpatia e uma cordialidade que fizeram escola. Num mundo de "realpolitik", Javier Solana nunca esqueceu um sólido referencial de princípios em que assentou toda a sua ação.

Para Portugal, como referi, Solana foi sempre um amigo. Recordo-me, em especial, do modo colaborante como se articulou conosco durante a presidência da União Europeia em 2000, jogando "com as cartas em cima da mesa" e ajudando-nos, não raramente, a ultrapassar sérias dificuldades surgidas na tecitura das posições que nos competia desenhar no quadro da ação externa da União. 

No que me toca, devo-lhe gestos de grande simpatia, o maior dos quais foi um convite pessoal - que não pude aceitar - para ocupar um interessante lugar na estrutura de representação externa da União Europeia.

Un abrazo fuerte, Javier!

Alfredo Margarido (1928-2010)

O Daniel Ribeiro, correspondente do "Expresso" em Paris, acaba de dar-me conta da morte, ontem, em Lisboa, de Alfredo Margarido.

Margarido foi uma espécie de figura mítica para a minha geração. Oriundo das artes, viria a revelar-se como uma personalidade de recorte cultural eclético - da ficção à sociologia, da pintura à antropologia, da história das ideias às questões africanas. Viveu em vários lugares, que sempre marcaram o seu percurso intelectual. Paris foi, a partir de 1964, o seu "porto de abrigo". Aqui dirigiu os "Cadernos de Circunstância", uma revista policopiada, de edição irregular, que marcou um tempo importante nos meios portugueses no exilio em França (e de que,  por sorte, tenho todos os exemplares das muito raras edições originais, embora os seus textos tenham sido editados  em Portugal depois do 25 de abril, creio que pela "Afrontamento", não sei se em versão completa).

Presumo que datará da sua estada em S. Tomé, nos anos 50, o encontro com aquela que iria ser sua mulher, Manuela, uma figura muito interessante, também já falecida, de que já aqui falei um dia.

Leia mais sobre Alfredo Margarido aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

O meu banco

Telefonei ao meu banco para saber de que dinheiro poderia dispor, a curto prazo, das minhas poupanças, para a possível aquisição de um bem. Perguntaram-me se não preferia fazer um empréstimo, dando essas poupanças como garantia. Agradeci e disse que, não tendo dúvidas de que o banco era uma "pessoa de bem", se me estavam a propor tal hipótese era porque tal empréstimo me seria dado, com toda a certeza, a um juro mais vantajoso que aquele que eu estava a obter das poupanças que mantinha no banco. O gestor de conta alarmou-se: não!, o juro que eu iria pagar era maior do que aquele que o banco me estava a dar pelos depósitos que lá tinha. Então - perguntei - qual era a minha vantagem em fazer o empréstimo? Foi-me explicado que, dessa forma, eu ficaria com "liquidez". Inquiri para que queria eu ter "liquidez" no banco se, quando a pretendia mobilizar, o banco me propunha um empréstimo. E em que é que se traduziria, na realidade, essa mesma "liquidez", porque, se a quisesse mobilizar, o banco não autorizaria, porque ficaria sem a garantia na base da qual me era concedido o empréstimo. Embatucou.

terça-feira, outubro 12, 2010

"Portugal atrás da Alemanha na eleição para o Conselho de Segurança"

Não tenho a certeza absoluta de que algum jornalismo adversativo não seja tentado a roubar-me o título deste post. Pelo sim pelo não, ele aí fica, para sua inspiração.

Não consultei ainda os blogues, não li ainda os colunistas da pandemia pessimista, não conheço as declarações de elogio forçado de alguns setores, decerto já ouvidos pela imprensa. Mas eles virão, podem estar seguros! - os comentários raivosos do género do "não sei por que razão se gastou dinheiro com esta eleição para o Conselho de Segurança", ou "aquilo em que Portugal se deveria empenhar internacionalmente era noutras coisas" e dichotes idênticos.

Uma das razões pela qual Portugal teve toda a razão para se bater para estar presente no Conselho de Segurança é precisamente pela necessidade de afirmar que existe um outro país, positivo e otimista, que tem sabido garantir a continuidade de uma imagem externa do país, construída com saber, rigor e coerência. Um país que está muito para além das legiões dos "vencidos do ceticismo".

Portugal no Conselho de Segurança

Portugal foi hoje eleito, pela terceira vez, como membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU. No biénio 2011/2012, o nosso país assegurará uma presença naquele que é o principal órgão decisório das Nações Unidas.

Esta é uma vitória com laivos "históricos", porque foi obtida em condições de particular dificuldade. Com uma campanha de grande empenhamento e profissionalismo, levada a cabo por responsáveis políticos e diplomáticos, apoiados por todas as nossas estruturas espalhadas pelo mundo, foi possível fazer frente à fortíssima candidatura do Canadá  que disputava conosco e com a Alemanha um dos dois lugares disponíveis. Tratava-se de um confronto com dois membros do G8, com uma presença determinante na máquina das Nações Unidas, dispondo de meios e estruturas incomparavelmente mais fortes que os nossos. Esta era, para muitos, uma vitória "impossível", convém lembrá-lo.

Há uns meses, deixei expressas aqui as razões pelas quais me parecia que Portugal, não apenas deveria empenhar-se fortemente nesta eleição, mas igualmente os motivos por que se me afigurava que o nosso país tinha todas as condições para defrontar, com êxito, esta batalha. Quem quiser, pode revisitar esse argumentário.

O que acaba de se passar em Nova Iorque é uma lição de história diplomática. É a prova provada de que um país de média dimensão, com recursos limitados, mas com uma postura de equilíbrio e uma excecional capacidade de diálogo, soube construir um lugar de respeito e prestígio na cena internacional, sendo hoje, de certo modo, um "soft power" capaz de se colocar ao nível dos Estados que podem  legitimamente "punch above its weight" - para utilizar a expressão consagrada de Douglas Hurd. Esta vitória cria-nos, no entanto, uma responsabilidade acrescida e tem de conduzir-nos a um acrescido esforço, bilateral e multilateral, de racionalização e melhor utilização da nossa máquina diplomática, por forma a estarmos à altura dos novos desafios que temos de enfrentar.

Nesta ocasião, gostava de deixar aqui uma palavra de muito sinceras felicitações a todos quantos estiveram na primeira linha da nossa candidatura, muito em especial ao embaixador José Filipe Moraes Cabral, que titulou em Nova Iorque um trabalho notável, de que a diplomacia portuguesa se pode legitimamente orgulhar.

Pedras em lata

Depois da fantástica declaração da Unicer, colocando no "colo" do governo a responsabilidade pela criação de condições que agora reclama para a construção do hotel das Pedras Salgadas, pode perguntar-se se as águas vão agora passar a ser vendidas em "lata" - a mesma "lata" que os responsáveis da empresa tiveram para, publicamente, fazerem depender a concretização de um projeto a que se tinham comprometido das facilidades e flexibilidades que agora exigem.

A Unicer segue agora uma linha de novo oportunismo - luta contra alegados "citérios formalistas e burocracia"  do Estado - a qual, no entanto, só pode surpreender quem não apreciou todo o seu anterior percurso de incumprimento de prazos a que se havia ligado. Quiçá contando com as loas propagandísticas e com o silêncio cúmplice de alguma imprensa, dependente do peso constrangente da sua publicidade, a Unicer prossegue, assim, com a sua política de triste diversão, que mostra como uma empresa de dimensão nacional consegue, em alguns anos, desbaratar o seu prestígio e credibilidade, por  infelizes flutuações nos seus corpos de gestão. Não nos devemos, assim, admirar se, dentro em breve, o Estado vier, pela Unicer, a ser apontado como o "culpado" por novos atrasos na construção do hotel das Pedras Salgadas. É que, com este novo  expediente, a Unicer ganha tempo e alibis que lhe permitem não cumprir, uma vez mais, os prazos.

Percebe-se bem que a população das Pedras Salgadas já tenha perdido a paciência com "esta" Unicer!

Leia mais sobre esta "saga", consultando o marcador "Pedras Salgadas", no fundo deste post

domingo, outubro 10, 2010

Nostalgia e política

A frieza e a dureza dos combates políticos conduzem, por regra, à depreciação dos aspetos sentimentais. Mas, nem por isso, um sentimento como a nostalgia deixa de ser altamente respeitável.

Na passada sexta-feira, no Senado francês, passou-se uma cena que não colheu a atenção maioritária da imprensa. O debate centrava-se no tema das reformas, sobre a proposta governamental de abandonar os 60 anos como limiar do direito à aposentação. A França é um dos últimos países europeus onde a discussão em torno desta questão está ainda a ter lugar. Muito consideram que é inelutável que a idade da reforma seja mudada, outros mantêm-se fiéis aos 60 anos, como um inalienável direito adquirido. Não é para aqui chamada a questão de quem tem ou não razão.

No debate no Senado, assistiu-se a uma intervenção emocionada de Pierre Mauroy, o homem que, em 1982, sob a presidência de François Mitterrand, foi responsável, como primeiro-ministro, pela legislação que fixou os 60 anos como idade para a reforma. Agora com 82 anos, o antigo "maire" de Lille, perante um silêncio de geral respeito, embora longe de concordância maioritária, disse, entre outras coisas emocionadas: "A reforma aos 60 anos é uma linha de vida, uma linha de combate, uma linha de esperança. Não temos o direito de abolir a História! Liquidá-la desta maneira, não é possível, não é digno."

A reforma vai acabar por ser aprovada, no seu essencial. A regra dos 60 anos vai desaparecer, pelos imperativos da maioria política e, para muitos, também pela imperatividade das coisas práticas, desde o equilíbrio da segurança social à mudança dos perfis etários na sociedade contemporânea.

Isso não nos deve impedir de olhar para a reação de Mauroy com o respeito que devemos consagrar a quantos, no seu tempo, foram titulares da esperança que mobilizou gerações, que, passo-a-passo, trouxe para as políticas de Estado o fruto das lutas por coisas que hoje fazem parte do nosso "acquis", como sociedades com responsabilidade social. O ministro Woerth reagiu a Mauroy dizendo: "Não se governa com a nostalgia". Claro que não. Mas eu não posso deixar de sentir um grande respeito por quem alimenta uma nostalgia - pelo certo, inapelavelmente datada, concedo - que é parte do património da esperança que fez da França o grande país que é. Embora também deva concluir, como disse Simone Signoret no título das suas memórias, que "a nostalgia já não é o que era".

Stop

Já era azar! Ser parado por um polícia, quando estava atrasado para o jantar. Resignado, encostou à berma e, mentalmente, fez uma "check-list" do que poderia estar mal: documentos, seguro, revisão periódica, triângulo, etc. Não tinha a certeza de ter tudo em condições - é sabido que, quando um polícia quer, há sempre algo errado, dos pneus ao alinhamento dos faróis!

Abriu o vidro, fixou o guarda e, logo, notou-lhe um inesperado sorriso: "Está contente com o seu carrinho?" Perplexo, retorquiu: "Estou, porquê?". Não entendia a pergunta. Seria alguma graça?

"Mandei-o parar porque gostava de ter a sua opinião. Há dias, apareceu-me um carro igual a este, em segunda mão, a bom preço. Mas, antes de o comprar, gostava de saber se, de facto, será uma boa opção. Por isso, tenho pedido a opinião a quem conduz carros idênticos. Então está mesmo satisfeito? Ótimo! Agradeço-lhe e pode seguir".

História verdadeira passada, com um amigo meu, à saída da Régua.

sábado, outubro 09, 2010

"Libération"

"Les Unes" do "Libération" é um calhamaço imenso (onde é que, um dia, vou guardar tudo isto?), quase com o tamanho natural do jornal, publicado há pouco, que nos traz as grandes primeiras páginas da história de 37 anos de uma publicação que mudou a história da imprensa francesa.

Enquadradas por excelentes textos, por lá estão algumas imagens de que bem me recordo, como leitor esporádico que sempre fui do "Libé" (agora, sou-o regular, por obrigação e por gosto). É um livro interessantíssimo, que nos revela a todos como éramos, aquilo de que nos fomos desligando, da imagem à escrita, do que era novo e que agora passou a vulgar. E que, por exemplo, nos recorda, tragicamente, que ainda no tempo do presidente Giscard d'Estaing (quem se lembra disto, hoje?) eram decapitados, aqui em França, os condenados à morte!

O "Libé" nasceu da onda maoísta pós-Maio 68. É curioso fixar, com a distância do tempo, o modo como Laurent Joffrin, hoje diretor do jornal, qualifica no prefácio a Revolução Cultural chinesa: "uma convulsão gigantesca e cruel desencadeada por um Mao em envelhecimento, para restabelecer o seu poder de utopia sangrenta". Joffrin diz que a evolução do jornal, de veículo militante para uma tribuna comprometida, foi por "ter compreendido que a ditadura de um partido leva sempre ao pior, que a liberdade não se divide, que ela é tão válida para os pobres e os excluídos como para os outros, que o indivíduo deve ser livre para lutar". Uma verdade que vale para a França, como vale para a China. Ontem como hoje.

Direitos do homem

O que mais me impressiona na reação chinesa à atribuição do prémio Nobel da Paz a um seu dissidente interno é aquilo que pode ser lido como uma "overreaction" de uma das maiores potências mundiais. As autoridades chinesas não podem desconhecer que, ao reagir como o fizeram, não estão minimamente a mobilizar parceiros que partilhem a sua indignação, estão simplesmente a magnificar o facto e a dar-lhe um relevo que, objetivamente, não serve os seus interesses. O que nos deve levar a uma outra constatação: a de que essas autoridades não estão a agir por calculismo e que, verdadeiramente, acreditam na legitimidade intrínseca das medidas repressivas que aplicaram àquele cidadão. A assim ser, como tudo parece indicar, há que concluir, sem hesitações, que a "emergida" e cada vez mais importante China vive, definitivamente, num outro mundo de valores e que a tese da universalidade dos Direitos Humanos, bem como da convergência a prazo de todas as sociedades para esses mesmos padrões, é apenas um grande mito, de que todos temos que ter plena consciência.

sexta-feira, outubro 08, 2010

G20

As perturbações que estão a ser sentidas nos mercados cambiais internacionais, e que estão a afetar fortemente a competitividade das produções do países da zona euro em terceiros mercados, são um testemunho da fragilidade do sistema financeiro internacional e, muito em especial, do nível de compromisso político à escala global que resultou do "susto" de 2008, no quadro do G20.

Para a Europa, será muito importante o modo como a França exercerá o seu papel futuro como presidência do G28 e do G20. Em especial, interessa-nos a forma como este país procurará compatibilizar algumas das preocupações que legitimamente se refletem no quadro europeu, relativas a disfunções provocadas por políticas "egoístas" de terceiros, com a necessidade de fazer "pontes" com as ambições dos países emergentes, que não quererão deixar de aproveitar a presente conjuntura, durante a qual o seu crescimento diferenciado os pode ajudar a colmatar o "gap" face ao mundo mais desenvolvido.

Os meses que se seguem vão obrigar a um teste múltiplo.

Por um lado, ficará claro se o G8 continuará ou não a considerar-se no centro do processo de coordenação, não apenas política, mas igualmente económico-financeira à escala global. Como aqui disse no passado, as notícias sobre a morte do G8 sempre me pareceram muito precipitadas, espalhadas que foram por quem, fora do G8, tinha ambições de o condicionar, tentando garantir uma afirmação política à luz de ambições que não conseguia consagrar nos quadros institucionais de natureza multilateral.

Por outro lado, e também potenciado pela presente tensão financeira, vamos seguramente ver melhor esclarecido o limite de competências que o G20 se atribui. Neste ponto particular, a atitude da China, recusando ir mais longe do que o estabelecimento de normativos indicativos no campo económico-financeiro, serve a nossa perspetiva.

É que, sendo Portugal um país que não tem assento no G20, onde apenas pode ter (quando tem) as suas preocupações refletidas pela mão de terceiros, nunca será demais reiterar o nosso interesse em que este tipo de instituições de natureza cooptativa tenha a maior transparência, limite de forma clara o âmbito das recomendações que pretenda refletir sobre terceiros e, em especial, cuide sempre em manter a sua atividade compatível com a das instituições multilaterais, onde repousa a única legitimidade política que a todos vincula.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Frankfurt

... e, pronto!, ainda não foi desta que consegui ir à Feira do Livro, em Frankfurt, um sonho antigo de quem é "maníaco" por livros.

... e Vargas Llosa lá ganhou o Nobel da literatura. É merecido, esperado e... equilibrado.

quarta-feira, outubro 06, 2010

Lula no Real Gabinete

Agora que o presidente Lula se prepara para abandonar a chefia do Estado brasileiro, vem-me à memória uma história dos meus tempos no Brasil.

Foi em 2008. O presidente Cavaco Silva visitava oficialmente o Brasil, no quadro das comemorações da chegada da corte portuguesa, 200 anos antes. Um conjunto de cerimónias teve lugar no Rio de Janeiro. Pelo que me dizia respeito, como embaixador de Portugal, insisti imenso em incluir no programa da visita uma deslocação do presidente Lula ao Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.

O Real Gabinete é uma instituição sui generis. Num edifício de desenho eclético, onde prevalece um neomanuelino com distorção transatlântica, que recorda um pouco a estação do Rossio ou o hotel do Bussaco, aí repousam centenas de milhar de livros em língua portuguesa, sendo hoje o maior repositório existente fora do nosso país. Mas o Real Gabinete é um muito mais do que um interessante edifício: é a expressão simbólica do magnífico esforço da comunidade portuguesa para erigir, no Brasil, um monumento representativo da dignidade da sua presença, da empenhada contribuição dada por muitos e muitos milhares de portugueses para a construção daquele país.

Infelizmente, o Real Gabinete não é muito conhecido dos brasileiros, nem sequer dos muitos turistas portugueses que, no Rio, lhe preferem o Calçadão, Ipanema ou o Leblon. Situado numa zona que veio a tornar-se algo periférica, só lentamente começa agora a surgir nos itinerários turísticos e culturais. Em tempos idos, para os portugueses desafetos ao regime ditatorial que vigorou até 1974, o Real Gabinete representava também uma certa "colónia" de matriz salazarista, que tendia a confundir o respeito pelo nosso passado com a adesão a quantos o utilizavam como arma de arremesso contra os que pretendiam forçar os caminhos do futuro.

Eu sou um "fã" do Real Gabinete, confesso. Por isso, aí me desloquei sempre que pude, durante o tempo que permaneci no Brasil. Uma visita do presidente Lula, acompanhando pelo nosso chefe de Estado, parecia-me ser a melhor maneira de simbolizar a relação luso-brasileira contemporânea, em especial naqueles tempos em que o Brasil nos estava a ajudar a melhorar a imagem que dom João VI conservava na nossa própria memória coletiva. Além disso, interpretava a sua realização como uma subliminar homenagem à matriz fundacional do Brasil, com tanto mais significado quanto o seria ser levada a cabo por um presidente brasileiro oriundo de uma área política onde tradicionalmente se não acolhem os maiores amigos brasileiros de Portugal.

A minha sugestão foi simpaticamente aceite por Lisboa. Nas autoridades brasileiras ela fez também o seu curso, com suportes e estímulos vários, acabando por ser acolhida. Quando o dia chegou, devo dizer que estava com uma grande curiosidade para ver a reação que teria o presidente Lula, na sua entrada no Real Gabinete, durante o trajeto que lhe desenhámos, o qual, naturalmente, não incluia a passagem pela sala onde figura o busto do ditador de Santa Comba.

Não me desiludi. O chefe de Estado brasileiro, naqueles segundos em que defrontou e prescutou a imensidão de estantes, recheadas de quase meio milhão de livros, num espaço belíssimo, com uma dimensão grandiosa, terá percebido mais, sobre o papel dos portugueses no Brasil, do que em toda a sua anterior vida. A sua cara não iludia, os comentários que trocava com os interlocutores próximos eram de um genuíno deslumbre.

Lula tomou lugar na tribuna. Continuava a olhar, deliciado, em torno daquela grandiosa obra portuguesa no Brasil. Começaram os discursos. A certo ponto, vejo Lula acenar, levemente, para um dos varandins superiores, onde se situam as estantes com livros: estava a saudar empregados, com bata de trabalho, que aí se haviam colocado para ver o seu presidente. Era Lula no seu melhor...

O discurso que então proferiu foi uma das peças oratórias sobre Portugal que, desde sempre, mais me impressionaram, na boca de um dirigente brasileiro, em especial vindo de um político com as origens de Lula. Ao longo de dois séculos, muitos outros foram bem mais gongóricos, imensos se espraiaram em loas adjetivadas à "mãe pátria" lusitana, mas nenhum outro, que eu tenha conhecimento, foi tão moderno e pragmático, mesclando a afetividade com o realismo, substituindo a cerimónia por uma visão inteligente e lúcida. E, ao mesmo tempo, simples.

A ida do presidente Lula ao Real Gabinete Português de Leitura, naquele dia de Março de 2008, representou um olhar diferente do Brasil contemporâneo sobre o Portugal de sempre, talvez com menos "caravelas" do que era habitual, mas com os pés bem assentes naquilo que, nos dias hoje, importa sublinhar e reter. Se estiverem interessados, leiam o discurso aqui.

Centro para o Desconhecido

António Champalimaud ficou na memória dos portugueses como um inovador, vigoroso e polémico "capitão" da indústria e da finança que, depois de ter tido atritos com o Estado Novo e de ter sido conjunturalmente derrotado pela Revolução, durante a qual viu nacionalizados os seus bens, refez no estrangeiro a sua vida e conseguiu regressar à liderança de um dos mais importantes grupos económicos portugueses.

Com a sua morte, surgiu uma surpresa: deixou em herança uma importante fortuna para uma fundação que leva o seu nome e que, ontem, inaugurou as suas novas instalações em Lisboa. A investigação na área da saúde, que tem vindo a premiar nos últimos anos investigadores internacionais, passa agora a dispor, em Portugal, de um magnífico centro.

Não pude aceitar o convite que a presidente da Fundação Champalimaud, Dra. Leonor Beleza, me formulou para estar ontem presente na inauguração das novas instalações do "Centro Champalimaud para o Desconhecido". Mas, a meu convite, a Embaixada de Portugal em Paris terá, em 2010, o grato gosto de acolher o júri do seu prémio anual, do qual fazem parte figuras tão prestigiadas como Simone Veil, Amartya Sen ou Jacques Delors. 

terça-feira, outubro 05, 2010

Paula Escarameia (1960-2010)

Paula Escarameia tinha 50 anos e foi a primeira mulher a ser eleita, no âmbito das Nações Unidas, para a respetiva Comissão de Direito Internacional. Acabo de ter conhecimento da sua morte.

Tive o prazer de conduzir, durante o ano de 2001, a sua candidatura àquele órgão, do qual continuava a fazer parte, e em cuja eleição obteve a maior votação que Portugal alguma vez dispôs num escrutínio no âmbito da ONU. Recordo o momento de alegria que a sua escolha representou para todos nós, em Nova Iorque.

Doutorada em Harvard, teve um percurso académico riquíssimo. Anos antes daquela sua eleição, havia sido Conselheira junto da missão portuguesa junto da ONU. Era uma personalidade extremamente prestigiada e reconhecida pelos seus pares. Pessoalmente, a Paula era uma "força da natureza", dotada de um sorriso alegre, de uma boa-disposição contagiante. Vai fazer muita falta, também à sua (e minha) escola, o ISCSP.

Ericeira

Por uma qualquer razão, que agora me escapa, apetece-me acabar este dia a olhar uma imagem da Ericeira, com uma canção pirosa, que o nacional-cançonetismo lhe dedicava e que pode ouvir aqui.

Poema Republicano

A propósito do meu anterior post "Nascimento da República", um comentador que se assina Alcipe teve a amabilidade de deixar o seguinte poema, que não resisto a transcrever, na data em que se comemora aquele que foi o primeiro dia da nossa República:

POEMA REPUBLICANO

Feliz quem tem uma terra
e nessa terra uma casa
e nessa casa
a memória de uma esperança.

Do meu avô maçon eu pouco sei,
do meu avô monárquico pouco lembro:
mas eu não tenho terra natal
nem casa de família,
nem sei onde conspirava o maçon
(o avental
foi entregue no velório,
para surpresa da família)
nem onde tertuliava o monárquico
(admirador de Salazar, mesmo assim)
só ouvi falar meus pais
do MUD Juvenil,
de Soares, Zenha e Maria Barroso
e isso era a República para mim!

Por isso toda a memória
para mim não tem lugar nem morada.

Saúde e fraternidade, meu amigo!

Alcipe

segunda-feira, outubro 04, 2010

5 de outubro

Em 5 de outubro de 1910, o rei dom Manuel deveria visitar oficialmente a cidade de Vila Real. As movimentações revolucionárias em Lisboa impediram essa deslocação.

Em Vila Real estava prevista uma elaborada receção ao soberano, da qual fazia parte um opíparo jantar.

Aqui deixo a imagem do convite-menu para esse repasto não consumado, um histórico e creio que muito raro documento, de  cujo original sou o feliz proprietário.

Eleições no Brasil

Um país com quase 200 milhões de habitantes, com uma percentagem muito elevada de analfabetismo, com sistema eleitoral muito complexo, utiliza um voto eletrónico que genericamente é considerado muito seguro e que fornece resultados num prazo temporal muito curto.

Por que razão este método de voto não é usado com maior frequência em países como o nosso?

Alguém consegue explicar?

domingo, outubro 03, 2010

Nascimento da República

Durante o mês de agosto, recebi do presidente da Câmara Municipal de Vila Real um simpático convite para participar nas comemorações da implantação da República. Vila Real é a minha terra natal.

Pediam-me que, na noite de 3 de outubro, fizesse uma intervenção pública, por ocasião do descerramento de uma lápide junto de uma casa onde, nos tempos que antecederam a Revolução, decorreram reuniões  da conspiração republicana. O último desses encontros foi em 3 de outubro de 1910, quando os conjurados aí então se reuniram, pela última vez, antes do assalto ao poder.

Por uma óbvia curiosidade, perguntei onde se situava, na cidade, essa casa. Fui informado que era na rua Avelino Patena, a conhecida "rua da Travessa", no centro da cidade. Inquiri sobre o número da porta. O meu interlocutor não sabia. Uns dias depois, esclareceu-me: era o nº 44.

Ontem à noite, sob a intempérie que massacrou o Norte, lá estive a falar da República, em frente ao 44 da rua Avelino Patena.

Pude então revelar que aquela havia sido, precisamente, a casa onde eu nasci...

Quem quiser ler o texto pronunciado, pode fazê-lo aqui.

Presidente brasileiro

Tem hoje lugar, no Brasil, a eleição para designar a pessoa que, no dia 1 de Janeiro de 2011, substituirá o presidente Lula na chefia do Estado. O novo titular só tomará posse nesse dia - uma bizarria da Constituição brasileira que faz com que os chefes de Estado, de Governo ou outros dignitários que os representem na cerimónia tenham de passar a data do fim-de-ano em Brasília. Convirá que o nosso serviço de Protocolo ponha já isto na agenda...

Os presidentes do Brasil, depois da eleição e antes da posse, costumam viajar, um tanto oficiosamente, pelo mundo, a exemplo do que também acontece com os seus homólogos americanos. São viagens que têm um estatuto híbrido, em que aproveitam para estabelecer contactos e sublinhar dimensões da política exterior da futura presidência.

Em 1910, o presidente eleito do Brasil veio a Portugal, numa dessas visitas. O rei dom Manuel II ofereceu-lhe um jantar no palácio das Necessidades (vivia então lá o rei, trabalham lá hoje os nossos diplomatas). Esse jantar ocorreu na noite de 3 de Outubro, faz hoje precisamente 100 anos.

A Revolução republicana rebentaria horas depois e, para evitar que Hermes da Fonseca pudesse ser uma lamentável "casualty" da implantação da nova República, foi necessário, a certo ponto dos combates, negociar uma trégua para deixar o ilustre visitante sair da cidade, no navio de guerra brasileiro em que viajava.

É o que pode dizer "estar no sítio errado na hora errada". Não sei se é essa a razão, mas conheço vários amigos brasileiros que consideram que Hermes da Fonseca é um nome que "dá azar". Quando se fala nele, batem logo na madeira para exorcizar os maus espíritos. Pergunto-me se não terá sido dom Manuel a inaugurar este hábito. Boas razões tinha ele...

sábado, outubro 02, 2010

Olívio

O meu mais antigo amigo chama-se Olívio. Nascemos no mesmo ano, na mesma rua (amanhã saberão qual é) e, claro, não me lembro de mim sem o conhecer. O pai do Olívio tinha, lá na rua, uma casa de conserto de bicicletas, pelo que era conhecido como o "Olívio das bicicletas".

Entrámos juntos para a escola, embora o Olívio tivesse sabiamente optado, desde muito cedo, por um ritmo de conclusão dos anos letivos um pouco mais lento que o meu. Tinha, e tem, um jeito sarcástico no falar, um sorriso marcado por uma permanente ironia e uma imensa graça, às vezes ácida, que nunca deixou de espalhar. Fala às mulheres com delicadeza e isso teve as suas recompensas. Recordo uma madrugada de 67, na "Candeia", no Porto, vindo ele de Vila Real vender antiguidades (o seu hobby de estimação), com o dinheiro do negócio rapidamente transformado por nós em whisky e em outros produtos locais, com ele, generosamente, a financiar a minha curta bolsa de estudante.

No final dos anos 60, acabámos por ir ambos para Lisboa, embora com vidas diferentes, em grupos muito diversos. Encontrávamo-nos no Montecarlo, cada um em sua tribo. Aí eu trocava livros e conversa, enquanto ele perdia as noites e ganhava a vida como grande especialista em dominó, atividade que já o tinha tornado famoso na nossa comum ter ra natal, Vila Real.

Depois, fomos para a tropa, era ele delegado de propaganda médica, estava eu no meio do curso e também já empregado. Sobrevivemos bem. Anos mais tarde, chegou-me a notícia de que o Olívio, que vivia na Luz Soriano, havia sido preso. Um lamentável equívoco, provocado por uma amiga solidariedade, ia-lhe destruindo a vida. 100% inocente, claro, foi solto, mas terá aprendido alguma coisa sobre os outros. Depois, montou um bar, o "Cocote", atrás da Caixa Geral de Depósitos, ao Calhariz. Todo o "emigrado" de Vila Real por lá passava as noites. Recordo-me (ele não vai gostar disto...) que tinha um dos piores whiskies "marados" de toda a Lisboa, pelo menos a julgar pelas dores de cabeça que me provocava. Depois, fechou a loja e entrou nas antiguidades e no comércio de pintura. Passava as noites no "Pavilhão Chinês", onde também exercia a sua bela arte de bilharista.

A saúde pregou-lhe uma séria partida e o Olívio regressou, entretanto, a Vila Real, só voltando a Lisboa a espaços. Encontramo-nos às vezes.

Ontem, num interlúdio televisivo, estava eu a ver um videoclip do grupo musical "Toranja" e quem topo eu, figurante, cabelo curto, já muito branco, bengala na mão, com o ar quase aristocrático? O Olívio. Pois é, Olívio, por esta é que eu não esperava!

Palavras

Ontem, uma professora universitária comentava o fabuloso "neologismo" que detetara num texto de um seu aluno: "plumenos". Trata-se de uma imaginativa forma de grafar "pelo menos".

Lembrei-me, então, da história de um outro não menos criativo aluno universitário que, para trazer à baila uma referência, escreveu numa prova: "2º alguns autores...".

sexta-feira, outubro 01, 2010

Economia e diplomacia

Desde que, há mais de três décadas e meia, entrei para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, foram raros os períodos em que não tive a meu cargo temas de natureza económica. Essa, aliás, é a sina regular de muitos diplomatas portugueses, cujo caráter eclético da função obriga, as mais das vezes, a cobrir todo o espetro de atividades em que sua ação se desdobra.

Há uns anos, surgiu por aí, no "mercado" fácil da política para vender títulos e aparecer como "market-friendly", a ideia da "reconversão" da diplomacia portuguesa à vertente económica. Isso foi feito de um modo que interpretei  como quase ofensivo para a minha profissão, como se os diplomatas portugueses devessem acordar, pela primeira vez, para uma coisa que há anos vinham fazendo. Fui dos poucos a expressar publicamente o meu desagrado por esse triste episódio, como aqui já havia deixado expresso.

Ontem, na Universidade de Coimbra, falei sobre o tema "Diplomacia e Economia", a convite da respetiva Faculdade de Economia, de cujo Conselho Consultivo passei agora a fazer parte, por um convite que me foi transmitido pelo diretor daquela Faculdade. Honroso convite que talvez dê ainda mais razão à ideia que transmito neste post.

Coroas (2)

... e lá tivemos hoje, agora no telejornal da noite da SIC, mais uma sessão de propaganda monárquica... a pretexto do centenário da República!

Bonnie and Clyde

Li no site do "Público" um comentário de alguém segundo o qual Arthur Penn (agora desaparecido) terá, com "Bonnie and Clyde", sabido transportar para o cinema americano o espírito dos filmes europeus de autor. É isso mesmo!

quinta-feira, setembro 30, 2010

Coroas

Alguns comentadores deste blogue chamaram há dias a atenção para o facto da RTP, nos últimos tempos e neste ano de comemoração do centenário da nossa República, estar a dedicar particular atenção a alguns reis portugueses. Curiosamente, igual atenção não tem sido dedicada aos nossos presidentes da República, num momento em que tal se justificaria como nunca.

É claro que tudo isto pode ser fruto do acaso e não corresponder a nenhuma significativa infiltração "talassa". "Não há coincidências", mas "Sei lá!" - para utilizar apenas dois títulos da modernidade da nossa escrita urbana. 

Recibo

Há um mistério que sempre me ultrapassou.

Por exemplo, no Brasil, quando se faz uma compra, não há mais nenhum talão de despesa que nos seja passado para a mão que não seja a "nota fiscal" (recibo). Em França passa-se o mesmo.

Em Portugal, no comércio, ao adquirir-se algo, dão-nos, na maioria dos casos, um papelinho que regista o valor dispendido e, depois, perguntam (quando perguntam): "quer recibo?" É claro que, muita gente, por inércia, acaba por não pedir recibo, o que faz com que o comerciante embolse o valor do imposto incluído na conta que acabámos de pagar. Por que razão não passa a ser obrigatória, em Portugal, a emissão automática de recibo e proibida a emissão de qualquer outro comprovante de despesa?

Se queremos caminhar no sentido de evitar, cada vez mais, a evasão fiscal, parece-me que esta seria uma medida óbvia. Mas, se não é praticada, então devo ser eu que estou a ver mal o problema...

Hoje

Recado aos pessimistas: em lugar de "chover no molhado", não será melhor arregaçar as mangas?

... e logo se vai ver!

Ver aqui .