quarta-feira, outubro 03, 2018

A nostalgia ainda é o que era


Simone Signoret tem uma biografia intitulada “A nostalgia já não é o que era”. A companheira de Yves Montand, se fosse viva e tivesse assistido ao dia de ontem, talvez concluísse que o título do seu livro estava longe de ser uma verdade universal. A morte de Charles Aznavour fez perpassar pela França, onde escrevo este texto, um sentimento de perda muito pouco comum. Salvo gente muito jovem, cuja lista de gostos é agora outra (“esse Aznavour era quem?”, ouvi uma adolescente perguntar à mãe, numa esplanada de Paris), fica claro que o cantor que atravessou três gerações deixou uma imagem impressiva e duradoura.

E, contudo, percebia-se que Aznavour estava longe de ser uma figura dotada de espontânea afetividade. Esta só emergia a espaços, perante causas específicas, que o aproximavam de muitos que apreciavam a sua música. Pelo contrário, como obsessivo apreciador (ele dizia-se “colecionador”) do dinheiro, a sua imagem pública era desenhada, um tanto caricaturalmente, pela posse de carros de extremo luxo, pelo usufruto de uma vida a que os franceses chamam de “bling-bling”. O seu lado publicamente mais empenhado surgiu, curiosamente, ligado à origem dos seus pais, quando se tornou numa espécie de bandeira da Arménia, um país de história e existência complexas, que o faria seu embaixador, no sentido real do termo, com funções - imagino que mais teóricas do que práticas - em Genebra e depois na Unesco, tarefa esta em que coincidimos mas nas quais acabei por nunca cruzá-lo pelas reuniões e corredores. 

Aznavour era culto e inteligente. Fez muito cinema, subscreveu êxitos da canção que marcaram muitos de nós. Desde a adolescência que me ouço a trauteá-lo, em letras que sempre passaram muito para além da simplicidade da cançoneta mas que, ao que parece para seu grande desgosto, colocavam o seu nome fora de um pódio de apreço musical onde sempre surgiam Brel, Ferré e Brassens. É discutível, mas de discussão irrelevante, se nisso havia alguma injustiça, quiçá com algum viés político à mistura. Uma coisa é certa: na hora da morte, só Brel e, noutro registo, Johnny Halliday, se lhe aproximaram, em termos de impacto público.

Ao assistir à comoção provocada pela desaparição de Aznavour, fico com a difusa sensação de que alguma França pressente que sai de cena alguém que, de certo modo, simbolizava um outro país, diferente deste que está em radical redefinição identitária. E essa, de facto, posso perceber que configure uma imensa e inultrapassável nostalgia.

2 comentários:

Anónimo disse...

Simone Signoret - O seu nome trouxe-me à memória o filme "A Nave dos Loucos" a que assisti nos anos 60, no extinto Cinema Mundial, numa rua perpendicular à avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, numa sua excelente interpretação.

Anónimo disse...

Lido.

Despacho:

A ler o "Dictionnaire Nostalgique de la Politesse" editado em 2016, penso que a nostalgia nestes casos é a nossa "saúdade".
No caso de Aznavour é a saúdade de um tempo em que parecia que tudo estava ao alcance do homem.
Foi descoberto por Edith Piaf e a sua voz era o resultado de um defeito nas cordas vocais.
Mesmo com os anglo-saxões na berra, Aznavour, ou melhor Aznavourien de seu apaelido, foi um artista mais intelectual do que os demais.

Tem deferimento este post.

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