sexta-feira, setembro 22, 2017

O discurso da América


Não partilho a visão de quantos se chocaram com o discurso de Donald Trump nas Nações Unidas. Nem entendo que alguma coisa do que afirmou possa ser lida num registo de escândalo. Aquilo que o presidente americano expressou no plenário da Assembleia Geral acabou por ser uma boa mostra do que é a agenda atual da sua administração, estabilizadas que foram algumas variáveis que o tempo obrigou a redefinir, a principal das quais, naturalmente, tem a ver com a Rússia.

A agenda americana começa a fixar-se na expressão arrogante do seu poder nacional perante o mundo, ao serviço da consagração de uma obsessiva diplomacia de interesses próprios. O "America first" significa a prevalência dos negócios sobre os valores, mesmo que isso coloque em questão algum património moral que os EUA, com altos e baixos, tenham conseguido historicamente criar. A dimensão multilateral dessa agenda será sempre feita "à la carte", seguindo essa poderosa lógica de interesses. Se há algo que "ganhamos" com Trump é a clareza, o fim dos eufemismos legitimadores com que, muitas vezes, vimos a América embrulhar algumas das suas políticas mais brutais, disfarçando o seu poder.

A candura com que Trump diz que cada país deve lutar pelos seus interesses, como os Estados Unidos se propõem fazer, é uma cínica falácia que esconde que, num mundo de poderes em competição aberta, não mediado por estruturas multilaterais que regulem a diferente capacidade de expressão dos interesses, o poder dominante é aquele que dita as regras do jogo. 

Nesta conjuntura, a Coreia do Norte dá a Trump um belo pretexto para revelar a matriz jingoísta do seu discurso. E permite-lhe juntar, no elenco de ameaças, os inimigos de Israel (o Irão e o Hezzbolah), sossegando de caminho uma assustada Arábia Saudita (a que Obama tinha voltado as costas), com a Síria, o Daesh e os talibã afegãos, com naturalidade, a comporem o resto do pacote da diabolização. Com esta agenda, o complexo militar-industrial tem assegurado o essencial do "procurement", em casa e nos balcões de venda externa de armamento. Venezuela e Cuba compõem o ramalhete dos ódios – terreno que, aliás, foi objeto de uma singular incursão ideológica no texto lido por Trump.

Um parêntesis para assinalar que ficou mais do que aberta a porta para um afastamento do EUA face ao laborioso compromisso nuclear com o Irão, nunca aceite por Tel-Aviv e por Riade. Isso pode abrir uma tensão nova com as potências europeias que nisso se empenharam, como Macron já expressou de forma clara. Mas a Europa, cuja unidade Trump despreza e teme, esteve praticamente ausente do discurso, que apenas se preocupou com uma vaga referência ao Reino Unido e à Polónia, bem como às tensões com Moscovo que, por via da Ucrânia, fazem fervilhar o seu Leste.

A Rússia, com a qual Trump sonhou um “deal” estratégico, com consequências no Médio Oriente, talvez mesmo à custa da Ucrânia, foi um tiro pela culatra face às intenções originais de Trump. Uma grande parte da América olha ainda para Moscovo pelo filtro da Guerra Fria e Putin seria sempre o mais improvável novo “amigo americano”. As trapalhadas com a Rússia revelaram-se o principal “faux pas” de Trump.

E a China, onde fica? Washington percebeu, de há muito, que o seu verdadeiro adversário estratégico se chama China. Sabia-se que era a China que preocupava uma possível administração Clinton e uma agenda tão “business-oriented” como aquela que levou Trump ao poder deu a isso um elevado grau de atenção. A lógica de abordagem do problema chinês era, contudo, diferente, entre Clinton e Trump. A primeira iria privilegiar o tecido de alianças económicas na região, através da Parceria Transpacífico. O segundo, indisponível para aceitar as concessões que o jogo multilateral implica, preso aos compromissos imediatistas da agenda protecionista que a sua base empresarial e laboral de apoio lhe impôs, foi por outro caminho. Um caminho mais confrontacional e muito menos confortável para os aliados americanos na região.

11 comentários:

Bettencourt de Lima disse...

Muito bem

Luís Lavoura disse...

A agenda americana começa a fixar-se na expressão arrogante do seu poder nacional perante o mundo, ao serviço da consagração de uma obsessiva diplomacia de interesses próprios.

Não se "começa a fixar": sempre se fixou. Os EUA sempre exprimiram de forma arrogante o seu poder nacional perante o mundo e sempre tiveram um diplomacia de interesses próprios (das classes dominantes nos EUA).

O "America first" significa a prevalência dos negócios sobre os valores, mesmo que isso coloque em questão algum património moral que os EUA, com altos e baixos, tenham conseguido historicamente criar. A dimensão multilateral dessa agenda será sempre feita "à la carte", seguindo essa poderosa lógica de interesses.

Sempre assim foi, inclusivamente no tempo de Obama. A política externa americana é um invariante temporal: é sempre a mesma.

Luís Lavoura disse...

uma assustada Arábia Saudita (a que Obama tinha voltado as costas)

Que disparate. Obama apoiou a guerra na Síria em companhia da Arábia Saudita. Aliás, provavelmente foi a Arábia Saudita quem instigou os EUA a fomentar a guerra na Síria, e não o contrário. Os EUA têm ao logo de toda a guerra apoiado (pela calada, como fizeram na guerra dos "contras" contra a Nicarágua) os fundamentalistas do Estado Islâmico (agra já não) e da Al Qaeda (estes continuam a ser apoiados), sempre para fazer o gosto aos tiranos sauditas.

Joaquim de Freitas disse...

Ah, Senhor Embaixador : Que pena tenho de ter perdido nestes mais de cinquenta anos de exílio, a utilização da nossa bela língua portuguesa, com a qual o Senhor exprime tão bem as suas ideias. Gostaria de saber fazer igual.

Vou directamente ao sujeito: o discurso de Trump na ONU.

Quando se conhece o “álibi” que levou à invasão do Vietname, que voltou à luz do dia neste momento, com o filme de Burns, isto é a fabricação cínica de “falsas bandeiras”, e as mentiras sem conta dos documentos oficiais para justificar o incidente do golfo do Tonkin em 1964, que abriu a porta a um crime terrível do XX° século, no qual se fala muito dos 60 000 mortos americanos, mas não se fala dos 4 milhões de Vietnamitas, da pele das crianças que caia como velho pergaminho, queimada pelo napalm, a chuva de bombas que deixava as árvores petrificadas e decoradas de carne humana, que as palavras da canção de Bob Dylan, tão bem ilustraram: “ Onde estavas-tu meu filho de olhos azuis”: A Hard Rain’s A-Gonna Fall – , essa pobre gente da qual falava o general William Westmoreland, o comandante americano, que qualificava as pessoas de “térmitas”.

Como esquecer a tragédia de Quang Ngai, na aldeia de My Lai, onde, entre 347 e 500 homens, mulheres e crianças foram assassinados pelos GI’s. Uma “aberração”, uma “tragédia americana”, escrevia o” Newsweek”, nesta província onde 50 000 pessoas tinham sido massacradas na época das “zonas francas” onde era permitido disparar sobre tudo o que mexia!!!.

E em Quang Tri, onde foram largadas mais bombas que sobre toda a Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Desde 1975, as munições não explodidas mataram ainda mais de 40 000 pessoas no Sul Vietname, o país que os Americanos queriam “salvar”, concebido como uma astúcia imperial.

Por isso quando estive em Nova Iorque, e visitei o famoso muro dos mortos da Guerra do Vietname, não podia esquecer os 4 milhões cujos nomes não estavam lá inscritos.

O sangue estava apenas seco que o crime continuou, desta vez noutra região do mundo, com a mesma maquinaria da mentira desenvolvida por Colin Powell na ONU, com os seus frasquinhos de AMD em plástico para justificar outro crime idêntico no Iraque.

O sentido da guerra do Vietname não é diferente do genocídio dos Ameríndios, dos massacres coloniais nas Filipinas, dos bombardeamentos atómicos do Japão e do “nivelamento” de todas as cidades da Coreia do Norte nos anos 50.

O objectivo foi descrito pelo coronel Edward Landsdale, o célebre homem da CIA que inspirou Graham Greene para o personagem central no seu romance “ Um Americano bem tranquilo”.
“Só existe um meio para vencer um povo revoltoso que não quer render-se, é de o exterminar. Só existe uma maneira de controlar um território que resiste, é de o transformar em deserto”.

Senhor Embaixador, tem razão: Nada mudou. Quando Trump discursa na ONU no 19 de Setembro, – uma organização criada para evitar à humanidade o “flagelo da guerra”, declarou que estava “pronto, “disposto” e “capaz” de “destruir totalmente” a Coreia do Norte e os seus 25 milhões de habitantes. O seu auditório ficou “espantado”, mas a linguagem de Trump não era inabitual.

A sua rival para a presidência, Hillary Clinton, tinha-se “gabado” que estava pronta a “acabar” com o Irão, uma nação de mais de 80 milhões de habitantes. Esta é a Via Americana, só lhe faltam os eufemismos, como muito bem descreveu.

Escreve-se muito contra o odioso Trump, o fascista, o racista, mas praticamente ninguém diz nada contra Trump o sintoma e a caricatura dum sistema durável de conquista e de extremismo.

Trump é a continuação de Obama que forneceu a apoteose com sete guerras simultâneas, um recorde presidencial, a destruição da Líbia como Estado moderno, o golpe de estado da Ucrânia, que abriu a porta a uma concentração das forças da NATO na fronteira ocidental da Rússia, pela qual os nazis a invadiram em 1941.

Foi Obama que transferiu a maioria das forças navais e aéreas para a Ásia e o Pacifico, sem outro objectivo que de confrontar a China.

A China é vizinha da Coreia do Norte e da Rússia.

Manuel do Edmundo-Filho disse...

Nunca vi tanto disparate junto: o de Luís Lavoura e o de Joaquim de Freitas.

Anónimo disse...

O Freitas, como não domina a qualidade da língua, aposta na quantidade, como se vê.
É ódio contra os EUA a metro.

Pergunto-me se ele seria capaz de dissertar sobre as maravilhas da ocupação soviética do Afeganistão...

Anónimo disse...

Por menos (petroleo,diamantes,etc) em Angola foram os comunistas (URSS e Cuba),m o poder com acumplicidade dos comunistas do MFA e de alguns oportunistas de ocasião, na mira de alguns cargos de looby para estarem junto do poder.

Joaquim de Freitas disse...

O Senhor Manuel do Edmundo Filho, que tem de certeza uma opinião sobre os temas do post, pode tentar desmentir um só facto do meu comentário. Claro que é mais confortável ficar-se por uma pirueta.
Pode-se fingir de ser grave, mas não se pode fingir de saber quando não se expõe o que se pensa.

Anónimo disse...

@Luís Lavoura
Admito...sinceramente surpreendeu-me pela positiva

@Manuel do Edmundo-Filho
Disparate ... ai sim... então contraponha com factos o que o Freitas disse... va la força

@Anónimo disse 22 de setembro de 2017 às 16:09
Aposto que quando os seus filhos reprovam na escola voce os premeie porque houve outras criancas que tiraram notas ainda piores que eles

@Anónimo 22 de setembro de 2017 às 16:39
Pois voce é mais das UPA posteriormente chamada FNLA o primeiro grupo terrorista a assassinar Portugueses em Africa apoiado pelo nosso querido eua aliado da nato.
voce e mesmo daqueles traidores que apunhalam aliados nas costas nao e? O sangue anglo-saxonico corre-lhe nas veias

Joaquim de Freitas disse...

Pois que o anónimo das 16:09 parece conhecer a historia do Afeganistão, durante o paraíso soviético, mostre-nos o que sabe desde o dia em que Carter armou os moudjahiddines para combater o “paraíso soviético”, e acabou por ficar com os Talibã, até hoje. Eu farei uma dissertação sobre o paraíso americano…

JS disse...

"A candura com que Trump diz que cada país deve lutar pelos seus interesses, ...".
Sim, concordo, a candura de um não-político -um homem de negócios- em tempo de uma interessante transfiguração em "político". Mas será só isso?.
Sabemos a distância que vai entre as palavras e os actos. Nomeadamente em política, mesmo que, neste caso, tão ocasional.

Para já parabéns à Constituição Americana. Demonstra o quão importante é alguma, sempre oportuna separação de poderes e, sobretudo, uma melhor destribuição de poderes políticos ou não, e contra-poderes. Veja-se com estar a decorrer este (o)caso do poder para-político da grande informação.

Depois, não menos balizadora, há a comezinha realidade.
O PR Trump acha que a Rússia é um problema da UE(?), Europa.
A UE, Europa(?), acha que o seu problema é o Reino Unido.
O PR Trump acha que o seu problema -aliás o problema do seu eleitorado- é a China.
Mas, o problema de todos é a energia que uns poucos felizardos (mal) controlam.

Como se dizia no Fliyng Circus: "And Now For Something Completely Different". Será?.

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