sábado, dezembro 20, 2014

Um negócio da China

Era um tipo grande, cordial. Eu tinha acabado de estacionar o carro, numa vaga milagrosa, numa das Avenidas Novas. Cruzou-se comigo quando atravessava a rua, na tarde de quinta-feira, lançando-me um amável "Boas Festas, embaixador!". O facto de o não ter identificado não garantia que o não pudesse ter conhecido algures. Mas a cara, de facto, não me dizia nada. Retorqui, agradecendo e retribuindo os votos. Já quase o tinha esquecido quando, do outro lado da rua, ouvi: "Embaixador! Tenho uma prenda para si!". Era ele. Voltou a atravessar a rua na minha direção e, enquanto se encaminhava para um carro que estava próximo do meu, perguntou: "Que número calça?". Perplexo e um pouco contrariado lá lhe disse. ("Será de alguma empresa, como quem me terei cruzado numa feira ou numa embaixada", pensei para comigo. "Se calhar, são sapatos! Só me faltava mais esta!"). Ele abriu a mala do carro e tirou um saco de plástico transparente com meias de diversas cores (não eram feias, mas algumas das cores nunca as usaria). Continuava a falar, não se calava, agora sobre a qualidade do produto, sobre a quantidade de algodão, sobre o facto daquelas meias não terem costura. Confirmou: "É mesmo a sua medida! Que sorte!". Um pouco aturdido, coloquei a saca de meias sobre o banco do carro e balbuciei um agradecimento, cumprimentando-o. Fui-me afastando pelo passeio adiante. Sentia uma sensação estranha, de algum incómodo, indefinível. Curiosamente, como se fosse na mesma direção, ele ia-me acompanhando pela faixa de rodagem, com os carros estacionados de permeio, continuando a dizer coisas sobre as meias, sobre as fábricas, nem sei bem o quê. Algumas pessoas com quem nos cruzávamos deviam estranhar aquele monólogo em voz alta, comigo calado e morto por me ver livre do homem. Por instantes, ele dava ares de que ia afastar-se, mas logo depois aproximava-se, como que ziguezagueando, no seu andar largo e algo desengonçado. Já estávamos aí a uns vinte metros do meu carro quando ele perguntou: "Sabe quanto estão a pedir por aquelas meias nas lojas? Diga um número?". Eu sabia lá! Eu nem sabia quantas meias o saco tinha (eram dez pares). Ele sabia: "Oitenta euros! Imagine! Bom, para um produto daquela qualidade, também se justifica...". E continuou a acompanhar-me, agora juntando-se a mim no passeio. "Para o meu amigo, são só vinte euros, claro! Tenho imensa consideração por si, como sabe!" Eu sabia é que tinha acabado de cair no conto do vigário. Pensei para comigo, com a auto-absolvição dos tolos: "É Natal. Isto até teve graça!" Não teve, eu sentia-me pateta, mas incapaz de rumar ao carro já distante e devolver o saco das meias ao homem. Parei, abri a carteira e tirei uma nota de vinte euros. Agarrada a ela veio uma nota de cinco. Ele estava atento e, generoso, com um sorriso, advertiu: "Atenção! Esses cinco euros não são meus!" Fui à vida. Quando regressei, meia hora depois, vi-o ao longe encostado a uma parede, a olhar a sombra. Entrei no carro, olhei as meias. Era chinesas. Medida "40-46". Era mesmo a "minha" medida, claro!

(Dedico esta historieta ao meu amigo Gulherme Sanches, que esta manhã se queixava de hoje não ter nada de novo no blogue para ler. )

7 comentários:

Anónimo disse...

Lembra-me uma boa história de um Visconde nortenho de afamado mau feitio, que todos temiam e de quem nem todos ousavam aproximar-se. Um dia, cortava o cabelo num então famoso e elegante Barbeiro da Rua 1º de Dezembro, quando um chinês, dos que então andavam por lisboa com um mostruário de gravatas pendurado ao pescoço resolveu aproximar-se dele, talvez um copito mais ao mata bicho, e perguntou-lhe se não queria uma gravata. O Visconde retorquiu seco que não. O chinês insistiu, dizendo "olhe que esta gravata ficava bem ao meu amigo". Ao que o Visconde responde lesto: "ao seu amigo talvez, mas a mim não".

Guilherme Sanches disse...

Obrigado, caríssimo. Esta coisa é um pouco viciante, entranha-se e quando nos falta, estranha-se...
Acontece a todos, mesmo aos mais pintados, dizia-se na minha terra, mas só alguns são capazes de contar.
Dividimos então a meias, esta história de meias:
Um par, chinesas, da feira de 4ª feira em Famalicão e provavelmente tamanho 40 a 46, que nunca cheguei a calçar. Resume-se a isto tudo o que de pessoal a minha sogra me ofereceu durante as décadas em que eu lhe "aturo" (com aspas, não vá o diabo tecê-las)a filha. É que nem mesmo esta foi de alguma forma cedida com consentimento.
Ingatidão minha, e com grande pena pela má memória que tenho, nem sequer me lembro do pretexto que originou tão marcante presente, mas terá sido seguramente muito forte.
Se calhar é por isso que no final de um longo e cansativo dia, o meu maior alívio, acontece mesmo no momento de descalçar as meias.
Um abraço

Anónimo disse...

Apanhei aqui há tempos um tipo assim. Mandei-o levar no c...
Boas Festas.
GJGomes

Anónimo disse...

Esqueci-me de assinar a história do Visconde.

Fernando Neves

opjj disse...

HÁ 4 ou 5 anos numa rua de Lisboa, caminhava pensativo, de repente pára um BMW novo e grita o condutor; tás bom pá! não te lembras de mim? sou o Pereirinha! Eu feito palerma dei-lhe a senha do código e disse-lhe; da Marconi!? Sim pá, senta-te aqui. Sentei-me e ele disse-me, qq dia vamos almoçar.Sabes estive na Suissa e tenho aqui um relógio e ofereço-te...Ou melhor só pagas X. Vi que caí na cilada e virei-lhe as costas.
Este Verão um amigo disse-me que lhe aconteceu a mesma coisa no Entrocamento.
Cumps.

zelp! disse...

Uma história deliciosa e sobretudo muito bem escrita e cheia de ritmo. O senhor perdeu 20 Euros, é certo, mas nós ganhámos motivo para uma boa gargalhada. Obrigado.
JLP

Antonio S. Leitão. disse...

Quando a China, acordarà, o mundo tremerà.
(Napoleao) em 1816.

A china acordou. Cada um julgará se ha razoes para tremer.

João Miguel Tavares no "Público"