Folheava o "Público", num avião, quando fui surpreendido com a notícia da morte de um colega mais velho de quem não era íntimo, mas que estimava bastante, Eduardo Nunes de Carvalho. Para além de conversas muito agradáveis em Lisboa, encontrei-o algumas vezes pelo mundo, em Maputo, em Nova Iorque, em Harare ou no Cairo. Ao longo dos anos, estabeleci com ele uma relação de amizade e respeito que muito prezava.
Nunes de Carvalho, conhecido na carreira e entre os amigos pelo "petit nom" de "Iá", era um homem elegante, educado e sereno, corretíssimo com os outros, com um sorriso permanente e um trato impecável. Gostava de ter colaboradores inteligentes, nos quais apreciava o contraditório sólido, como é próprio das pessoas seguras de si mesmas. Era, além disso, um diplomata muito culto (num período em que muito se fala da cultura exigida aos aspirantes à profissão), que refletia de forma elaborada sobre os interesses portugueses, projetando-os numa leitura histórica do país. Era sempre um gosto encontrá-lo, o que me acontecia em espaços tão insólitos como o salão do nosso comum barbeiro, Joaquim Pinto, um bom amigo que sei que vai sentir a sua falta.
Como todos os que o conheceram sabem bem, o "Iá" tinha uma relação muito peculiar com o ritmo do tempo. Era um homem que vivia, pelo menos aparentemente, sem sentir a pressão, não apenas do relógio, mas mesmo do próprio calendário. Já aqui referi um episódio curioso passado com ele. Ficaram históricas as suas idas noturnas ao serviço de Cifra do MNE, antecedidas por telefonemas, com vista a procurar corrigir telegramas que mandara horas antes, num esforço de perfecionismo que tinha muito a ver com o imenso cuidado que dedicava à escrita. Num determinado posto, foi tão detalhado nas obras na residência oficial, introduzindo alterações sucessivas muito ao seu ritmo, que praticamente viveu todo o tempo no hotel. Fazem também parte dos anais das Necessidades os adiamentos, às vezes por dias sucessivos, de viagens que devia fazer a partir dos postos onde estava colocado. O que, curiosamente, nunca afetou a eficácia do essencial do seu trabalho.
Um dia dos anos 80, cheguei ao Zimbabué integrado numa delegação que acompanhava um membro do nosso governo. No aeroporto de Harare, esperava-nos Eduardo Nunes de Carvalho, embaixador naquele país. À saída, notei que ele levava na mão uma pesada mala (esse era um tempo em que ninguém se tinha ainda lembrado de colocar rodas nas malas). Presumindo que se tratava de bagagem de alguém da delegação, lembro-me de ter feito o gesto de o tentar ajudar, porque me parecia menos curial que coubesse ao chefe da missão diplomática, que caminhava lado-a-lado com o governante, ocupar-se dessa tarefa. Para minha estranheza, o "Iá" disse-me: "Deixe estar, não se preocupe. Esta mala é minha". No caminho para o hotel, comentei o episódio com alguém: o "Iá" estava com uma mala dele? Fui então esclarecido, por um colega mais perspicaz ou melhor informado: ele tinha chegado a Harare apenas escassos minutos antes da nossa delegação, num voo com outra origem. Fora atrasando, durante dias, a sua viagem e, por pouco, não perdia a nossa chegada. Mas, no fim de contas, lá estava, no momento certo, no seu posto! Como sempre.
7 comentários:
Eu também acredito que a melhor forma de fazer o luto é um "epitáfio" de memórias como o Sr descreve com consideração, promovendo o bom Nome.
Um tributo que é significativo tanto para o MNE mas fora dele também !
CDLT
C.Falcao
um sereno e nostalgico obituário
Ou seja: "Lá estava..."
Conheci-o bem, era o que eu chamo de um Senhor com S grande.
Que Deus o tenha na sua Santa Graça
Obrigado por este obituário, Senhor Embaixador! Nesta hora são irrelevantes as idiossincrasias. Estou muito abalado com a partida do Iá e queria deixar aqui algumas recordações avulsas. Tinha laços familiares bastante próximos com ele mas, independentemente disso, posso dizer que foi sempre comigo um Senhor, absolutamente impecável. No MNE, trabalhei durante um ano com ele e esses laços nunca me favoreceram - nem dfavoreceram. O que me favoreceu foi ter-me transmitido o seu conhecimento profundo das matérias pelas quais era na altura responsável e que eram muito importantes antes da queda do Muro de Berlim: as então chamadas relações leste-oeste, a NATO e a ONU. Estive com ele uns dias no posto que o Senhor Embaixador refere. No meio da casa em obras, tinha pedido para que uma mesa fosse posta - com toalha branca, talheres de prata e copos de cristal - e lá comemos salmão fumado com o melhor vinho branco que se podia arranjar nesse posto afastado. Anos mais tarde, em Paris, comemos exactamente a mesma coisa, num excelente restaurante. O Iá estava como em África. Era igual em todo o lado. Impecável. Ainda por cima a conversa era sempre interessante porque ele gostava de conversar e de ouvir opiniões diferentes de pessoas que podiam ser seus filhos. Por razões que não importam agora, não pôde ou não quis ter postos considerados muito mais importantes do que aqueles em que foi colocado - e que lhe foram oferecidos.Teria lá sido um diplomata excepcional. Tenho muitas saudades dele e muitos remorsos por não o ter visto mais nos últimos meses. A Paula, a Vera e o Pedro estão agora mais sós, sem a presença do Iá. Merecem um abraço grande. João Pedro Garcia
Só hoje tive conhecimento que o Emb. Nunes de Carvalho tinha falecido. Encontrava-me em Londres quando recebi um telefonema a convidar-me para ir trabalhar com ele em Harare.Durante os 5 anos que lá permaneci tive muito prazer no trabalho e nos convívios acompanhados de muitas histórias e boas recordações. Os meus sentimentos à D.Paula e à Vera, que conheci, e ao Pedro. João Parreira
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