Foi
sempre um homem frontal, talvez porque tinha uma competência acima de
toda a dúvida e, em vários momentos da sua carreira, em especial nos
lugares de chefia que ocupara, dera provas de grande lucidez e
capacidade de interpretar, com rápida perceção, aquilo que considerava
ser o interesse nacional. Sabia-se que Lisboa temia essa sua forma de
estar, que se irritava com a sua independência, pelo que eram raras as
ocasiões em que ousava contestá-lo.
Um dia, chegou à embaixada que chefiava uma instrução cujo eventual cumprimento representaria o cometer de um flagrante erro, que iria afetar a imagem de Portugal. Às vezes essas coisas acontecem, por uma má avaliação das circunstâncias, por falta de ponderação das consequências da decisão, no seio de uma administração que vive sob a pressão do tempo. As embaixadas existem precisamente para isso, para fornecerem a perspetiva local, para ajudarem a adequar o processo decisório lisboeta às realidades concretas do posto.
Porém, dessa vez, a instrução vinha de muito "alto", tinha um tom de urgência imperativa, pelo que era difícil contestá-la com uma mera comunicação escrita. O ministro-conselheiro da embaixada foi encarregado pelo embaixador de fazer um contacto telefónico, com vista a chamar "Lisboa" à razão. Confrontou-se com uma total intransigência, que logo reportou ao embaixador.
Este resolveu, então, tratar a questão pelas suas próprias mãos e telefonou ele mesmo ao colaborador próximo da alta figura em nome de quem a instrução tinha chegado. A conversa não foi longa. O embaixador expôs, com a inteligência e bom-senso que eram os seus, as razões pelas quais não poderia executar o que lhe era pedido. A certo ponto da conversa, que começou a azedar pela obstinação do interlocutor, o embaixador deixou cair:
- Meu caro, você já tem experiência suficiente para perceber que o que me está a pedir para fazer é uma estupidez!
Do outro lado da linha, o colaborador próximo da figura política terá dito, em desespero argumentativo defensivo, que a decisão não era sua, que fora tomada pelo seu chefe. Aí, o embaixador não se conteve:
- Ó homem! Eu não disse que a decisão era sua! Eu apenas disse que ela é estúpida, quem quer que seja que a tenha tomado...
Para a pequena história, diga-se que a instrução não foi cumprida, porque a sua absoluta falta de razoabilidade acabou se tornar evidente. Como evidente ficou a excecional coragem do embaixador.
Ontem, ao final da tarde, o embaixador e o ministro-conselheiro de então deram um forte abraço de amizade, num salão das Necessidades, onde ambos tinham ido ouvir uma palestra de uma amiga comum. Gosto sempre muito de encontrar esse meu antigo embaixador, por quem tenho um imenso respeito e com quem muito aprendi.
5 comentários:
Entre o cabeleireiro da mulher do porteiro e o que pretendiam lá por, que sempre era um escritório, vá o diabo e escolha. O autor da proeza está outra vez no mesmo lugar, mas de qualquer modo parabéns!
Sempre nos agrada que alguém dê a razão a quem de direito...
sr embaixador
julgo que o correcto sera
"as embaixadas existem para fornecer" e nao
"as embaixadas existem para fornecerem"
pode ser que me engane!
bem haja
Talvez não ficasse mal dizer que o embaixador em causa se chama António Vaz Pereira e que é um Senhor. Ele não levará a mal se se disser que é carinhosamente chamado por muitos pelo "Natas". Fex bem em contar esta história, caro Francisco, mas a dúvida ficou-me: foi Belém ou S. Bento?
não será só este caso, deve haver vários semelhantes, são afinal posições profissionais sérias, frontais e ponderadas...
Enviar um comentário