terça-feira, dezembro 27, 2011

Líbia

No fim deste ano que viu o mundo árabe passar por convulsões cuja resultante final está muito longe de estabilizada, lembrei-me desta história, que contei já algumas vezes a amigos. Mas que nunca tornei pública. Agora, já posso fazê-lo.

Naquele dia, na longa estrada de Misrata para Tripoli, o carro em que eu seguia era conduzido por um engenheiro líbio, formado no Reino Unido. Havíamos feito um desvio para visitar as magníficas ruínas de Leptis Magna (na imagem), a majestosa cidade de colonização romana, situada a mais de uma centena de quilómetros da capital líbia.

Íamos os dois sós, no carro. Falámos bastante, da vida e do mundo, com ele sempre a mostrar-se orgulhoso do seu país e das suas realizações. Não tinha um discurso apologético àcerca de Kadafhi, mas não se lhe notava qualquer pendor para a dissidência. À passagem pela cidade de Homs (homónima da da Síria, da mesma forma que há outra Tripli no Líbano), a densidade de cartazes e "outdoors" com a face do líder líbio, legendados em árabe, tornava-se muito evidente. Ousei então perguntar: "Kadafhi é mesmo popular? As pessoas gostam dele?".

O meu interlocutor, cujo nome devo ter ainda em alguma parte, mas de quem nunca mais tive notícias, ficou silencioso por alguns instantes, olhando a estrada. Depois, retorquiu:

- Se gostam de Kadafhi? Gostam de quem lhes dá casas, como Kadafhi lhes dá. Gostam de quem lhes dá escolas para os filhos, como Kadafhi lhes dá. Gostam dos novos hospitais, que Kadafhi está a construir, bem como destas estradas, que antes não tínhamos. Já andou de avião dentro da Líbia, não andou? Os pobres agora viajam de avião.

De facto, as minhas duas ou três experiências nas linhas internas da Libyan Airlines tinham-me mostrado que os aviões estavam transformados numa espécie de autocarros de província, com imensos beduínos, transportando mesmo gaiolas com galinhas!

Estava a chegar à conclusão que o meu condutor, homem com mundo e um excelente inglês, era, afinal, um fiel apoiante do coronel Kadafhi.

- Kadafhi dá muita coisa ao povo. Paga tudo com o petróleo e há muita gente contente com ele. Você já leu o "Livro Verde"? 

Fiquei num certo embaraço. De facto, havia passado os olhos por aquela "obra", escrita num estilo delirante, de quem tinha "descoberto a pólvora" política, desenhando uma terceira via entre o comunismo e o capitalismo. Kadafhi era uma espécie de "genérico" de Nasser: abolira uma monarquia corrupta, afastara os americanos da base americana de Wheelus (eu estava alojado no "Beach Hotel", ao lado da antiga base, antes frequentado pelos militares dos EUA) e julgava-se fadado a ser um federador do mundo árabe. Mas estava muito longe da dimensão histórica do líder egípcio. O "Livro Verde" havia aparecido em Portugal pela mão de um jornalista já desaparecido, Cartaxo e Trindade, que cheguei a encontrar, numa outra ocasião, em Tripoli.

Sobre o "Livro Verde", eu não sabia o que dizer ao meu interlocutor. Não queria hostilizá-lo, nem parecer complacente. Devo ter dito uma coisas "redondas" sobre a "originalidade" das ideias expressas no livro. Mas também não era preciso, como verifiquei pelo que me disse a seguir, sempre olhando a estrada em frente:

- Kadafhi é um fanático que se acha mais inteligente que todos os outros. O povo líbio não tem grandes queixas materiais, mas não tem, nem percebe que não tem, uma coisa importante que vocês já têm: a liberdade. Mas se "eles" sonhassem que lhe estava a dizer isto, eu seria preso.

Calou-se. Percebi que tinha ido tão longe quanto lhe era possível. Ficámos longos minutos em silêncio. Voltei a encontrar esse engenheiro líbio em algumas reuniões técnicas posteriores. Todas já há muitos anos. Que será feito dele?

6 comentários:

Anónimo disse...

Recebi estes dias, antes das festas, uma "carta aberta" ao nosso Primeiro-ministro (português) que a não fiz circular porque me deixou, francamente, sem vontade de festejar o Natal e não queria "estragar" a festa aos meus amigos. A autora da carta, uma mulher com dois filhos e um curriculo universitário interessante, tem a liberdade de dizer que ganha por ano cerca de 4.000€. Liberdade, sim, mas com aquele salário alimenta uma mizéria diária para ela e seus filhos e não vê indicios de qualquer futuro. Diz também que não quer emigrar porque isso já seus pais tinham feito e, se houve aspetos positivos, eles não conseguiram apagar as agruras indeléveis que a condição de imigrante deixa em herança!
A liberdade é das coisas mais preciosas de que o ser humano pode beneficiar depois do pão, educação e saúde como muito bem diz o nosso Sérgio Godinho! Mas recordo que nestes ultimos meses, a nossa própria liberdade tinha dificuldades para, simplesmente, repetir a alta voz, aquilo que o engenheiro libio lhe contou na estrada entre Misrata e Tripoli! Simplesmente! 
Porque os "nossos" soldados franceses estavam a pôr aquilo tudo de pantanas e o facto de dizer que o povo libio conseguia beneficiar, com a politica do "Colonel", de pão, educação, habitação e  saúde seria visto como uma posição de apoio a Kadhafi!
Volto a Sérgio Godinho: Só há liberdade a sério quando houver a Paz, o pão, habitação, saúde, educação...
A outra liberdade não é soficiente porque é sofrível.
José Barros          

Manuel de Castro disse...

Gostei. Obrigado por partilhar.

Anónimo disse...

Quer queiremos quer não é precisamente o que faz falta, garantir a paz (incluo a segurança interna), pão, saúde e educação. O mal dos ditadores é assumirem-se donos, quando não passam de administradores com "isenção de horário".
Não pude de achar interessante os 4000 eur com dois filhos... e 485 eur com curriculum profissional invejável?

Anónimo disse...

Tomáramos nós, portugueses, quem nos desse escolas, hospitais,bons transportes e ... trabalho.
Sem isso não há liberdade.
V

Anónimo disse...

A velha senhora é pertinaz nas suas fidelidades:

sou viúva de kadhafi
foi-mo lá matar a nato
mas com líbios não me abato
farão que a líbia se safe

de mau trato e desacato
de exploraçao que a abafe
governo que faça gafe
não se sujeitam de facto

a interesses alheios
que lhes cortem liberdade
lhes roubem os seus produtos

terá que encontrar os meios
mas minha líbia sei que há-de
livrar-se em breve de brutos.

Anónimo disse...

Leptis Magna a terra de origem de Septimus Severus! Um dos últimos grandes Imperadores da antiga Roma.
P.

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