segunda-feira, dezembro 19, 2011

Jogo eletrizante

O jogo era péssimo. O futebol daquele país estava longe de proporcionar grandes espetáculos e a transmissão televisiva, a preto e branco, com escassos meios e uma ainda mais escassa técnica, era de uma imensa pobreza. Mas, com a chuva que caía, pouco mais havia para fazer na residência portuguesa, naquela cidade de um país em guerra, onde eu fora visitar um colega em posto e já tínhamos colocado a conversa em dia. Com uma cerveja a acompanhar, a emissão ajudava a passar as horas, até porque o meu avião de regresso era só na tarde do dia seguinte.

A certo ponto, a imagem televisiva estragou-se, por segundos, regressando depois à sua qualidade habitual. Mas por pouco tempo. A partir daí, sem regularidade temporal, o incidente repetia-se. Ver o jogo tornava-se um exercício difícil. Ah! e, naquele país, só havia um canal televisivo, claro. 

- É sempre isto! Com estas variações de luz, estragam-se os aparelhos todos. Uma arca já foi à vida e o frigorífico está com problemas. Já coloquei estabilizadores de corrente, mas não adianta. E, sabes?, ainda eu tenho a sorte deste ser um acesso elétrico que me foi dado pela polícia. É um fio que liga à esquadra, que fica ali atrás. O comandante é meu amigo e foi ele mesmo quem sugeriu podermos fazer uma ligação direta, para poder beneficiar do gerador deles, quando há falhas gerais de energia. E o "quarto andar"* nem sabe o que poupa! Imagina agora o que sofre o resto da gente desta cidade!

Eu continuava a tentar olhar o errático écran e perguntava-me se Lisboa alguma vez tinha consciência das dificuldades com que se defrontavam diplomatas e outro pessoal destacado, despachados para  postos recônditos, perdidos pelo mundo, sujeitos a privações constantes, à  insegurança e às doenças típicas dessas terras, que muitas vezes os obrigavam a separar-se das famílias. Tendo essa gente, como gozo supremo, numa tarde de chuva, jornais atrasados chegados pela "mala", ou um livro e um disco como os que eu lhe levara. E, claro, transmissões de futebol medíocre e outros programas de nível congénere, acompanhados de uma, duas, três, mil cervejas, para almofadar o quotidiano. 

Um velho empregado entrou na sala, para perguntar se queríamos (claro!) mais uma cerveja. Ao passar pela televisão, com as sucessivas interrupções de imagem, deixou cair:

- Eles hoje devem ter muitos trabalhos, patrão.

O meu colega terá notado o meu olhar perplexo, face ao comentário, e esclareceu, vi que um pouco embarçado:

- Aí o meu pessoal, que sabe das entradas e as saídas na esquadra da polícia, acha que algumas destas quebras na luz são devidas aos choques elétricos durante os interrogatórios aos "do inimigo". Se calhar têm razão, sei lá! Não posso perguntar-lhes, não é?

Concentrou-se na televisão, irritado:

- C'os diabos, ao menos os polícias podiam gostar de futebol...

* Nome pelo qual os diplomatas designam a administração do MNE

9 comentários:

Helena Sacadura Cabral disse...

Ai Senhor Embaixador, o que eu tenho aprendido da ocupação familiar, com estes seus textos!
Qualquer dia já me podia candidatar à carreira... não ao quarto andar, claro. Que Deus me livrasse!
:)))

Anónimo disse...

Não pode mais patrão! Os polícia não faz horas instrórdinárias! Jura mesmo, aka!

Anónimo disse...

Da velha senhora, em noite de insónia -dela e minha -, sem comentários:

helenas tão sorridentes
simpáticas dependentes
como eu também desta vez
de sexa - duas ou três.

patricio branco disse...

mera imaginação minha, fruto de ver filmes de espionagem ambientados na guerra fria:
claro que essa ligação directa à esquadra foi feita a troco de uns agradecimentos em apetecidos dolares;
é mais que possivel que a ligação tenha sido acompanhada duns microfones de escuta colocados ao mesmo tempo;
finalmente, não confiar muito no empregado, agente do regime que vê e ouve o que se passa na casa e ainda por cima provoca conversas sobre o que se passa dentro da esquadra.

Ps. bons televisores, os philco.
o modelo mostrado, tenho uma ideia que os vi em casa de familiares. Eu tive um, a cores, panoramico, mas durou só 6 anos. Por qualquer razão, as maquinas de lavar que tenho tambem são da mesma marca e funcionam bem.

Guilherme Sanches disse...

Este post deixou-me "chocado".
Um abraço

Helena Sacadura Cabral disse...

Anónimo encantador este, que tão bem verseja seu falar!
E simpática, a senhora que em noite de insónia, se lembra das dependentes helenas.
O meu Natal está feito com este caloroso aconchego virtual!

Isabel Seixas disse...

Jogo eletrizante joga a nossa querida velha amiga, de ausente a presente, verseja os nomes da gente, sempre toda contente, deve-lhe correr bem a vida.

Isabel Seixas disse...

Jogo eletrizante joga a nossa querida velha amiga, de ausente a presente, verseja os nomes da gente, sempre toda contente, deve-lhe correr bem a vida.

Anónimo disse...

Passou de novo por aqui comigo a velha senhora, intermitente que é por natureza e opção
('vive viva a vida ao calhas
morta até as falhas falhas'
- diz ser um dos seus lemas).
Agradou-se dos comentários das caras Helena Sacadura Cabral e Isabel Seixas e sonetilhou em resposta:

correra-me a vida bem
da coisa me ocuparia
rimalho porque ninguém
brincar quer com velha tia

não estivera eu pràqui sem
quem me dê com alegria
o encanto que a coisa tem
outro galo cantaria

se cantar como convém
então sim fico conten-
te e sem vã literacia

jovens amigas porém
contentes quero-as também
mui grata pla simpatia.

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