Uma patética tragédia na eleição autárquica em Mondim de Basto em 2009, fez-me recordar que, em Outubro de 1969, precisamente 40 anos antes, fomos por lá fazer campanha eleitoral pela Oposição Democrática contra o Estado Novo.
Como já aqui foi referido, as listas eleitorais, ao contrário do que hoje sucede, eram então impressas sob responsabilidade das forças políticas promotoras (aliás, só havia duas: a "Situação" e a "Oposição"...) e entregues pelo correio ou directamente aos eleitores, neste caso num porta-a-porta mais seguro, mas nem sempre fácil.
Numa reunião da Comissão Democrática Eleitoral de Vila Real, dirigida por essa figura, para mim inesquecível, que foi o médico Otílio de Figueiredo, e que congregava o escasso número de quantos, no distrito, abertamente se dispunham aos riscos de enfrentar o regime, demo-nos conta que o concelho de Mondim de Basto era o único onde não dispúnhamos de nenhum contacto.
Na discussão sobre o assunto, ao ser constatada esta lacuna, o Carvalho Araújo protestou: "Ora essa! Temos lá o Meireles! Já fez connosco o Norton e o Delgado. O Meireles é fixíssimo". (Um parêntesis para dizer que o nome "Meireles" me ficou na memória, mas posso estar enganado. Porém, para o que aqui importa, é irrelevante).
Convém esclarecer que o Carvalho Araújo era um homem já idoso, feroz republicano, que havia sido demitido da função pública nos anos 30, por actividades anti-regime. Tinha sempre um semblante grave e fechado, tratando-nos a nós, os mais novos que andávamos envolvidos na acção política da Oposição, com visível distância e até alguma desconfiança. Na verdade, não tínhamos andado com "o Norton" ou com "o Delgado": as eleições em que Norton de Matos havia sido candidato presidencial tinham tido lugar em 1949 (eu tinha nascido no ano anterior, o que, como se compreenderá, condicionou muito a minha participação na respectiva campanha...) e a idêntica aventura de Humberto Delgado fora em 1958 (altura em que as minhas prioridades se centravam na admissão ao liceu...). Porém, se o Carvalho Araújo, democrata experimentado, assegurava o apoio do tal Meireles, era uma oportunidade que havia que aproveitar.
Assim, no dia seguinte, com a mala de um carro (creio que era um NSU do Délio Machado) cheia de envelopes já endereçados com boletins de voto, lá avançámos nós para Mondim. Aí chegados, com o Carvalho Araújo no comando das operações, fomos à procura do Meireles. Tarefa que se revelou menos viável, porque o Meireles havia falecido... já há sete anos!
Quando pensávamos que o Carvalho Araújo se ia deixar abater pela dura realidade, ele renasce: "Não há problema! Vamos à farmácia!". Olhámo-nos intrigados: "À farmácia? Para quê?". O Carvalho Araújo lança-nos, condescendente, a sociológica revelação: "Meus amigos, os farmacêuticos são sempre gente com espírito liberal, as farmácias são espaços de tertúlia, confiem em mim!". Verdade seja que as alternativas eram poucas e tínhamos necessidade de "despachar" as centenas de boletins de voto (os inscritos de então não eram muitos) que levávamos connosco.
O nosso homem tomou conta das operações, foi falar com o responsável da única farmácia local e, impante, regressou com o anúncio: "Eu não lhes dizia?! É um democrata, fica com os boletins de voto e encarrega-se de distribuí-los". Ficámos banzados! E a nossa admiração pelo sentido estratégico do Carvalho Araújo cresceu, de modo exponencial.
Semanas mais tarde, quando o nosso saldo eleitoral em Mondim de Basto se computou no magérrimo resultado de escassas dezenas de votos, o pior em todo o distrito de Vila Real, creio que tivemos a piedade de não comentar com o Carvalho Araújo a eficácia da sua "operação farmácia". E, mesmo sem o termos conhecido, sentimos fortes saudades do Meireles.
4 comentários:
Uma delícia!
Então e o Livrinho???
Eu tenho fé!
Sr. Embaixador, pelo menos faça-nos a vontade e vá pensando no assunto...:)
Obrigada
Quando vivia no Porto e era ainda um jovem, recordo-me de uma vez o meu pai ter chegado a casa e ter dito, para minha mãe: “olha, prenderam o farmacêutico, parece que foi a Pide. O tipo era do reviralho e coitado, tramou-se”. Era uma pessoa simpática, o tal farmacêutico e eu e o filho eramos amigos e colegas na escola. Lá apareceu um dia, com cara de caso”, como se dizia. Pudera! Imaginino as “atenções” da Pide para com o cavalheiro. Mas este era de confiança. Daí ter ido “passar uns tempos” aos calabouços da polícia política de Salazar.
P.Rufino
Senhor Embaixador deliciei-me com o Meireles e lembrei-me das primeiras eleições em que votei. Estava gravidíssima do meu filho Miguel e ia assistir a uma sessão de esclarecimento da oposição no liceu Camões. Cheia de fome resolvi parar no café Monumental para comer qualquer coisa. De repente uma horda de cavalaria avança para o café e tenta expulsar-nos com alguma violência. Perante a minha renitência em sair, o graduado disse-me que fosse para casa. Eu respondi-lhe que dali só saía para o Camões...
E o homem insistia já com o bastão em punho. Respondi-lhe que se se atrevesse a bater-me veria com quem se metia.
Com quem, perguntou-me?
Com a professora do seu filho, respondi.
E não é que o homem, atrapalhado, me acompanhou até ao liceu?!
Caro Embaixador,
Com a devida vénia... e a propósito das autárquicas em Espinho, não resisti a citar esta sua bela narrativa.
http://forespinho.blogspot.com/2009/10/ainda-proposito-de-votos-e-boletins-de.html
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