segunda-feira, outubro 19, 2009

Boaventura

Hoje, apetece-me contar uma historieta da minha terra, de Vila Real, que ouvia ao meu pai.

Na minha adolescência, vivia na cidade uma figura de porte imponente, sempre bem vestida e com um chapéu cinzento, que parecia apenas pousado no alto da sua cabeça, que dava pelo nome de Boaventura. Ao que se sabia, o senhor Boaventura vivia dos rendimentos de anteriores actividades comerciais no Brasil, que lhe garantiam a prosperidade que transparecia no seu quotidiano. Homem sociável, bem disposto e de trato agradável, parava pelos finais de tarde na Relojoaria Salgueiro, na "rua central", local para conversas soltas, sem agenda, entre amigos.

Estava-se nos anos 60, algumas crises sacudiam então o país, tentativas de golpes políticos tinham sido abafadas, ideias "avançadas" (como à época se qualificavam as ideias de esquerda) iam fazendo o seu clandestino caminho, Portugal dava ares de estar já cansado de "viver habitualmente", como o doutor Salazar desejaria.

Num desses fins de tarde de charlas, um dos amigos do senhor Boaventura não resiste, e lança-lhe, irónico e ousado: "Ó Boaventura, você tem de se 'pôr a pau', homem! Isto está a aquecer, um destes dias o comunismo vem 'por aí acima' e o meu amigo, que não faz nada na vida, vai ter que começar a trabalhar".

O Boaventura não se desmancha e responde: "Pode ser que sim. Mas uma coisa é certa: quarenta anos de boa vida já ninguém me tira!".

Contei hoje esta historieta a Lídia Jorge, à hora do almoço. O comentário dela foi de que não era por acaso que o nosso homem se chamava Boaventura...

7 comentários:

estouparaaquivirada disse...

Exmo. Sr. Embaixador,
Gosto de passar por aqui para saber "novidades", a política não me interessa quase nada, leio e fico atenta só mesmo para saber do que se passa!
Aqui, o que eu mais adoro são as suas "Histórias"que além de interessantes e cheias de sentido de humor estão muito bem escritas.
Se vier a escrever um livro de contos por favor avise-me. :)
Maria

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Papoila: muito obrigado pela sua atenção. Acho que os blogues são o espaço exacto para esta escrita despretenciosa, quase efémera, perecível a um "delete". Além disso, a minha imaginação esgota-se no quotidiano que observo ou que me chega. Tenho a consciência clara que o meu tipo de escrita não dá para aventuras literárias. Outros colegas meus, também da carreira diplomática - como Marcelo Matias, Paulo Castilho ou Luis Filipe Castro Mendes - foram, com merecido êxito, por esses caminhos. Leia-os! Vale bem a pena.

Anónimo disse...

Grande Boaventura! Patusco e sapiente! Costumo dizer o mesmo…mas apenas quanto aos anos que já levo desta vida, que já sendo alguns, maleita nenhuma jamais me tirará.
P.Rufino

Helena Sacadura Cabral disse...

Tem o Senhor Embaixador toda a razão, quando fala dos seus interessantes colegas.
Mas deixe aos outros, neste caso, nós, os seus leitores, a avaliação da sua escrita que, por ser despretenciosa, tanto nos cativa.
É que já aprendi que o simples e claro, custa mitíssimo.
Senhor Embaixador as "histórias" que nos narra são valiosos bocados de vida. Bem gostaria eu, ao contrário do que diz, que esse livro fosse escrito.
Tem a Lídia toda a razão. E o Boaventura Sousa Santos deve ficar agradecido aos padrinhos que lhe deram o nome. Ou não?

Anónimo disse...

Bom dia Senhor Embaixador do (Rio Kway),

Nas nossas infâncias há sempre um Boaventura ou um Abrantes que nos fica na memória e aviva-se quanto mais se caminha para a hora da verdade.
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Nos meus verdes anos (uns dez) havia na minha aldeia um sargento, bonacheirão, reformado da GNR chamado Abrantes.

Ora o Abrantes aprendeu a ler e a escrever, foi à “sortes”, apurado para o serviço militar e chegou a sargento “lateiro” .
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Mais tarde nomeado chefe do posto da GNR na vila de Gouveia comandando uma meia dúzia de praças.

O Abrantes reformou-se e terminou o resto dos dias na minha aldeia, num vale, encravada entre a penedia da Serra da Estrela.
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Engordou e voltou num velho barrigudo pelas dietas de fatias de queijo e de presunto.

O Abrantes nunca criou porquito nem ovelhas teve a pastar que lhe dessem umas frechas de leite para fazer um requeijão.
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Na altura dos rapazes da minha aldeia ir à inspecção militar e porque eram necessários para cavar lameiros para produzir pão, os casais mais abastados seguiam para casa do Abrantes, para que lhe livrasse da tropa o rapaz, com cestas onde dentro estavam nacos de presunto tirados da salgadeira e queijos, já meios curados da tábua, pendurada, queijeira.
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O Abrantes estatuto e poder já não tinha, não mexia uma palha, ou pedido que fosse e parte da rapaziada ficava mesmo apurada para todo o serviço militar.

Porém as fatias de queijo, do presunto e o prazer que lhe deu a dar ao dente já ninguém lho poderia tirar.
José Martins

Anónimo disse...

Bom dia

Descubro-o como um autêntico narrador, contador de histórias.

Histórias escritas a tinta permanente, sem borrões, daquelas que constituem vivências pessoais armazenadas na nossa memória.

Conte-nos mais, como tão bem sabe fazer.

Carlos Falcão

P.S.: proponho para o seu livro, o título seguinte:
Souvenirs dum Embaixador Transmontano

Alcipe disse...

Claro que escreves bem, tinhas era que dar à escrita o mesmo esforço e trabalho que dás aos teus textos diplomáticos... C'est ton choix, mon ami!

Davos

Deve ter graça estar em Davos, por estes dias. Os maluquinhos das teorias da conspiração, os mesmo que acham que Bilderberg tem qualquer imp...