quarta-feira, outubro 28, 2009

Negociação

Foi numa sala do Altis, em Março de 1976. Frente-a-frente, delegações de Portugal e de S. Tomé e Príncipe, país recém-independente. O tema era o chamado "contencioso financeiro" e, no caso específico, os arranjos necessários para garantir a transferência dos descontos para a segurança social feitos pelos funcionários públicos portugueses, durante os últimos meses do regime colonial, que se encontravam depositados no Banco central de S. Tomé.

As conversas estavam a decorrer bem, até que um zeloso membro da nossa delegação, que estava no uso da palavra, decide suscitar, sem conhecimento do secretário de Estado que a chefiava, o seguinte tema: haveria cerca de 800 contos de descontos feitos pelos agentes da Direcção Geral de Segurança (novo nome dado à PIDE), a polícia política do regime derrubado no 25 de Abril. Portugal pretendia que o Governo santomense entregasse esse dinheiro.

No cômputo geral do que estava em jogo, o montante era perfeitamente irrelevante e só um espírito "picuínhas" e burocrático, sem o menor sentido diplomático, teria tido a peregrina ideia de solicitar a respectiva restituição. Tecnicamente, o problema poderia ter algum sentido, mas, politicamente, era uma atitude completamente desastrada. E aquela era uma discussão política.

Antes que o chefe da delegação portuguesa pudesse aperceber-se da dimensão da patetice que acabara de ser dita pelo burocrata, o seu homólogo santomense levanta-se e afirma que, perante uma atitude deste teor, que considerava como ofensiva, o seu país abandona as conversações.

Ficámos todos em sobressalto. As relações com o novo governo santomense eram excelentes e um incidente destes era mais que escusado. A delegação de S. Tomé e Príncipe seguiu, naturalmente, o seu chefe, e levantou-se da mesa. Do lado português, ainda um pouco aturdidos, fizémos o mesmo.

Todos? Não! O governante português que dirigia a nossa delegação não só não se levantou como, para grande surpresa de quem o olhava como o salvador da situação, esperando que ele alcançasse rapidamente o seu homólogo santomense, que já abandonava a sala, e o convencesse a retomar o diálogo, foi-se "enterrando" na respectiva cadeira, com metade do corpo a deslizar mesmo sob a mesa das negociações.

O espectáculo era surreal e ninguém percebia o comportamento do nosso político - um homem de bem, que mais tarde iria ter uma carreira destacada no Portugal democrático. A sua cara denotava embaraço e, pouco a pouco, fomo-nos dando conta de que, afinal, procurava algo debaixo da mesa.

A explicação foi dada em segundos: o nosso governante havia tirado os sapatos durante a reunião de trabalho. Com os momentos precipitados que tinham acabado de suceder, e ao procurar calçá-los, terá acabado por lhes dar um pontapé e enviado ainda para mais longe, pelo que toda a sua estranha coreografia não representava senão o seu denodado esforço para se calçar, antes de ir tentar uma "démarche" diplomática. De facto, em peúgas, seria um pouco estranho estar a promover um diálogo político...

Tudo acabou em bem, os sapatos apareceram, os santomenses regressaram à mesa negocial e lá descalçámos mais essa bota...

5 comentários:

Helena Oneto disse...

Imagino as caras da delegação portuguesa a ver o "chefe" a sumir-se!
(Geralmente é só á noite que venho aqui. E quase sempre vou para a cama a rir.)

Força Espinho disse...

Excepcional!

Anónimo disse...

Faço mihas as palavras de Helena Oneto. Que divertida situação, ainda assim!
Albano

Anónimo disse...

Pois... a cena descrita é engraçada. Mas eu, rapariga de atalhos e entrefolhos na mente, questiono-me é se, em vez de uma delegação são-tomense, estive outra de maior peso...geográfico, o dito descalçado teria ficado em...meias? E, por arrasto, se os minutos, presumo, que levou a recuperar os tamancos, não terão sido essenciais para que o repentista são-tomense, que chefiava a delegação do arquipélago, retomasse as batidas normais do seu sobressaltado coração e estivesse, então, mais disponível para ser diplomaticamente conduzido à mesa da conversa! E seria o chefe da delegação portuguesa, de facto, um génio, que tivesse pensado nisso e, por causa das coisas, ter feito assim as coisas, de forma a ter justificação para ambos os lados do seu compasso de espera?! A diplomacia é uma coisa gira. A cabeça das criaturas ainda mais. Mas acho que um dia destes o Embaixador ainda vai publicar todas estas historinhas. Nem que seja para ajudar a diplomacia portuguesa...
Rita

Anónimo disse...

Há necessidades humanas básicas que não se compadecem nem mesmo da actividade diplomática...
A necessidade de liberdade dos pés é de facto um impulso quase incontrolável, como compreendo o acto de coragem e analgésico do nosso governante ao libertar-se de uns sapatos opressivos.Curiosamente pensei que as senhoras teriam maior predisposição para estas situações...
Embora a emergência do consenso quase impusesse uma corrida de sapatos na mão.
O insólito normalmente tem graça.
Isabel Seixas

Maduro e a democracia

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