Num passeio na fria manhã deste sábado, num mercado de legumes de Paris, deparei com uma bancada cheia de belas alcachofras, o que me recordou uma historieta diplomática do final dos anos 80.
Estávamos nos tempos da renegociação da Convenção de Lomé, o acordo que, nomeadamente, permite aos países africanos (e também a outros das Caraíbas e do Pacífico) exportar para a Europa, em condições privilegiadas, algumas das suas produções agrícolas, parte das quais essencial para sustentarem as suas débeis economias. Nesses cíclicos momentos negociais, os produtores europeus tentavam sempre convencer os seus governos a evitar que a Europa fizesse novas concessões. A Comissão Europeia, responsável pela negociação, propunha uma lista de possíveis novas aberturas e os vários Estados europeus retiravam dela, apresentando as suas razões, produtos que entendessem concorrentes com os seus.
O nosso Ministério da Agricultura enviara-nos uma lista de “produtos sensíveis” para os agricultores portugueses. Conseguíramos sustentar a maior deles, mas, nas versões sucessivas da “lista negativa” europeia, a Comissão teimava em não incluir - imaginem! - as nossas alcachofras. Porque não compete aos diplomatas, que se encarregam de negociar, serem eles a “deixar cair” as objecções colocadas pelos departamentos especializados, era nosso dever tentar encontrar, e até inventar, todos os argumentos possíveis para sustentar o bom fundamento das nossas posições de defesa comercial.
Num determinado passo das discussões técnicas, uma nova “lista negativa” chegou à mesa das negociações. Mas, uma vez mais, nada de alcachofras... Pedimos a palavra e regressámos ao nosso argumentário, tão convincente quanto possível, sublinhando que as margens de comercialização dos nossos produtores de alcachofras eram já muito reduzidas, que uma invasão do nosso mercado por alcachofras de origem africana originaria um desastre económico no sector, etc. Não sei se fomos ao ponto de referir a possibilidade de crescimento de desemprego sectorial, bem como outros efeitos colaterais de natureza social, mas devemos ter ficado perto disso.
Recordo-me que a enfática posição portuguesa foi apoiada pela Grécia e pela Itália, embora, em ambos os casos, com uma convicção que se me afigurou um tanto débil, o que tomei à conta do facto de poderem estar a reservar-se para um defesa prioritária de outros produtos, em que teriam maior interesse.
Finalizada que foi a apresentação do nosso caso, feita com todo o garbo possível, a Comissão Europeia tomou a palavra, através de Manuel Marín, o comissário do pelouro. Como quase todos os espanhóis, Marin falava um francês com uma pronúncia macarrónica, cheia de “xes”, o que dava às suas intervenções uma sonoridade algo caricata, um castelhano em tom rural beirão. Mas Marin – que, entretanto, já foi ministro e presidente das Cortes espanholas – é um homem fino e muito inteligente. Além de ser um bom amigo de Portugal, diga-se de passagem. Dirigindo-se à presidência da sessão, disse ter tomado muito boa nota dos sólidos motivos que a delegação portuguesa, apoiada por outras, acabara de apresentar, "com tanto brilho", com vista a recusar, liminarmente, a possibilidade de autorizar a entrada de alcachofras africanas no mercado português.
Chegado que foi este ponto do discurso do comissário, a delegação portuguesa ficou mais descansada. Imagino que nos teremos recostado nas nossas cadeiras, prenhes de satisfação pelo dever cumprido. E preparávamo-nos para ouvir da Comissão Europeia a confirmação final de que, por consequência, ela iria, finalmente, colocar as nossas prezadas alcachofras na “lista negativa”.
Foi então que, continuando a dirigir-se ao presidente da sessão, como era de regra, mas olhando de viés para a delegação portuguesa, Marin acrescentou: “Mais, M. le Président, je dois vous avouer un secret: il n’a pas d’artichauts en Afrique” (“Mas, senhor Presidente, devo confessar-lhe um segredo: não há alcachofras em África”). Afinal - surpresa das surpresas! -, a África não produzia as alcachofras que nós, tão denodadamente, tentávamos impedir de concorrerem com as nossas!
A sala entrou em gargalhadas – e nós em sorrisos, definitivamente, bem amarelos. Pela teimosia do nosso Ministério da Agricultura, numa defesa pateta das nossas alcachofras, tínhamos perdido uma boa ocasião para não desperdiçar capital negocial numa discussão europeia.
Mas, também eu, devo confessar-lhes um segredo: hoje de manhã, no mercado de Paris, não me contive e deitei um olho às caixas que acondicionavam as alcachofras. Não fosse dar-se o caso de serem originárias de algum país africano. Não eram.
Estávamos nos tempos da renegociação da Convenção de Lomé, o acordo que, nomeadamente, permite aos países africanos (e também a outros das Caraíbas e do Pacífico) exportar para a Europa, em condições privilegiadas, algumas das suas produções agrícolas, parte das quais essencial para sustentarem as suas débeis economias. Nesses cíclicos momentos negociais, os produtores europeus tentavam sempre convencer os seus governos a evitar que a Europa fizesse novas concessões. A Comissão Europeia, responsável pela negociação, propunha uma lista de possíveis novas aberturas e os vários Estados europeus retiravam dela, apresentando as suas razões, produtos que entendessem concorrentes com os seus.
O nosso Ministério da Agricultura enviara-nos uma lista de “produtos sensíveis” para os agricultores portugueses. Conseguíramos sustentar a maior deles, mas, nas versões sucessivas da “lista negativa” europeia, a Comissão teimava em não incluir - imaginem! - as nossas alcachofras. Porque não compete aos diplomatas, que se encarregam de negociar, serem eles a “deixar cair” as objecções colocadas pelos departamentos especializados, era nosso dever tentar encontrar, e até inventar, todos os argumentos possíveis para sustentar o bom fundamento das nossas posições de defesa comercial.
Num determinado passo das discussões técnicas, uma nova “lista negativa” chegou à mesa das negociações. Mas, uma vez mais, nada de alcachofras... Pedimos a palavra e regressámos ao nosso argumentário, tão convincente quanto possível, sublinhando que as margens de comercialização dos nossos produtores de alcachofras eram já muito reduzidas, que uma invasão do nosso mercado por alcachofras de origem africana originaria um desastre económico no sector, etc. Não sei se fomos ao ponto de referir a possibilidade de crescimento de desemprego sectorial, bem como outros efeitos colaterais de natureza social, mas devemos ter ficado perto disso.
Recordo-me que a enfática posição portuguesa foi apoiada pela Grécia e pela Itália, embora, em ambos os casos, com uma convicção que se me afigurou um tanto débil, o que tomei à conta do facto de poderem estar a reservar-se para um defesa prioritária de outros produtos, em que teriam maior interesse.
Finalizada que foi a apresentação do nosso caso, feita com todo o garbo possível, a Comissão Europeia tomou a palavra, através de Manuel Marín, o comissário do pelouro. Como quase todos os espanhóis, Marin falava um francês com uma pronúncia macarrónica, cheia de “xes”, o que dava às suas intervenções uma sonoridade algo caricata, um castelhano em tom rural beirão. Mas Marin – que, entretanto, já foi ministro e presidente das Cortes espanholas – é um homem fino e muito inteligente. Além de ser um bom amigo de Portugal, diga-se de passagem. Dirigindo-se à presidência da sessão, disse ter tomado muito boa nota dos sólidos motivos que a delegação portuguesa, apoiada por outras, acabara de apresentar, "com tanto brilho", com vista a recusar, liminarmente, a possibilidade de autorizar a entrada de alcachofras africanas no mercado português.
Chegado que foi este ponto do discurso do comissário, a delegação portuguesa ficou mais descansada. Imagino que nos teremos recostado nas nossas cadeiras, prenhes de satisfação pelo dever cumprido. E preparávamo-nos para ouvir da Comissão Europeia a confirmação final de que, por consequência, ela iria, finalmente, colocar as nossas prezadas alcachofras na “lista negativa”.
Foi então que, continuando a dirigir-se ao presidente da sessão, como era de regra, mas olhando de viés para a delegação portuguesa, Marin acrescentou: “Mais, M. le Président, je dois vous avouer un secret: il n’a pas d’artichauts en Afrique” (“Mas, senhor Presidente, devo confessar-lhe um segredo: não há alcachofras em África”). Afinal - surpresa das surpresas! -, a África não produzia as alcachofras que nós, tão denodadamente, tentávamos impedir de concorrerem com as nossas!
A sala entrou em gargalhadas – e nós em sorrisos, definitivamente, bem amarelos. Pela teimosia do nosso Ministério da Agricultura, numa defesa pateta das nossas alcachofras, tínhamos perdido uma boa ocasião para não desperdiçar capital negocial numa discussão europeia.
Mas, também eu, devo confessar-lhes um segredo: hoje de manhã, no mercado de Paris, não me contive e deitei um olho às caixas que acondicionavam as alcachofras. Não fosse dar-se o caso de serem originárias de algum país africano. Não eram.
2 comentários:
É impressionante como o embaixaddor Seixas da Costa não perde "pitada" de tudo que vai observando no seu quotidinao.
Longe, este humilde ex-manga de alpaca,encontrar uma peça em cima de alcachofras.
Um embaixador deslocar-se ao mercado de Paris, aprende muita coisa, sobre o que lá se vende.
Prevejo que Seixas da Costa vai enviar um ofício para as Necessidades para que informe o ministro da Agricultura que há necessidade de incrementar a cultura das alcachofras.
Já o nosso Eça de Queirós, na década noventa do século XIX, quando cônsul de Portugal em Paris, estava bem atento e informava Lisboa, em pormenor, os produtos que a França importava e exportava.
Numa das suas informações estava figo seco, cujas exportação portuguesas tinham aumentado de 1896 a 1898: "O mais importante ramo de importação directa de Portugal para o porto de Nantes é o figo seco, cujo consumo cresce regularmente.... O figo vem geralmente de Vila Nova de Portimão por navios franceses.. Depois do figo uma importação que sempre se mantém é dos ossos calcinados...
Cordialidade
De Banguecoque
José Martins
...quantos episódios caricatos, curiosos, pitorescos, românticos, originais e incríveis não existirão na diplomacia (não só portuguesa, mas universal) que até se poderiam revelar...
Um mimo, este subtil embaraço verde...
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