quinta-feira, maio 06, 2021

Sancho


Aqui por Lisboa, há alguns, poucos, restaurantes em que a moda quase não toca. Muitos dirão: e ainda bem! Um deles é o "Sancho", na Travessa da Glória. bem junto aos Restauradores. É um restaurante que conheço há várias décadas, que não aparece com frequência nos guias, que não anda nas bocas da crítica, mas onde, desde há muito, se pode encontrar uma cozinha sólida, sã, com uma qualidade constante que, não lhe conferindo um espaço de destaque nos Michelin & Cia, lhe garante um lugar na simpatia de muita gente que o frequenta, alguns com persistente e leal regularidade. Voltei lá, não há muito tempo, para um almoço de trabalho, com um amigo. Cheguei antes dele. Disse o seu nome e logo alguém ordenou: “Leva o senhor embaixador à mesa do senhor doutor...”. Como já lá não ia há uns tempos, tive de fazer “de conta” de que não fiquei surpreendido por me terem identificado (ou teria sido o meu amigo que alertou, como hipótese mais modesta). O almoço foi agradável e, a aquilatar pela lista que no início consultei, os preços estão numa escala de razoabilidade. Não posso dizer que saí esmagado de luxúria gastronómica, mas - com a franqueza com que digo sempre aquilo que penso dos locais que visito - posso dizer que fiquei satisfeito. Uma cozinha de restaurante para uso regular é aquilo mesmo: qualidade sustentada, serviço atencioso, cuidado com os clientes, tudo coisas que, nos tempos que correm, fico sempre contente por encontrar em Lisboa. Não sei quando vou voltar ao Sancho, mas, da próxima vez que andar pelo pelo fundo da Avenida da Liberdade, vou-me lembrar deste restaurante onde, pela primeira vez, nos anos 60, um tio que já lá vai há muito me levou a almoçar, numa primeira aprendizagem das mesas de uma Lisboa que, felizmente, ainda conseguimos reencontrar nos dias de hoje.

quarta-feira, maio 05, 2021

Pensem nisto!


O futuro e a nossa segurança passam por aqui.

Nunca interromper!


Por muitos anos, em Campo de Ourique, havia dois restaurantes cuja clientela se dividia bastante, ideologicamente. 

Os socialistas iam muito ao “Tachinho” (nada de graças, está bem?) e os social-democratas enchiam o “Comilão” (aqui, se quiserem fazer humor, façam favor!)

Talvez porque sou “do contra”, sempre fui um frequentador deste último e só raramente passava pelo primeiro. 

O “Comilão” é talvez o restaurante português a que o PSD pode chamar mais “a nossa casa”. Uma das suas paredes está cheia de fotografias de figuras gradas da constelação histórica social-democrata. Mas não só!

Um dia, recomendei a um amigo que fosse lá almoçar. Quando lhe perguntei que tal tinha sido a refeição disse-me: “Entrei cheio de apetite mas perdi-o logo, ao olhar a parede...”

Passos Coelho, que vivia perto, além de um grande amigo da casa, foi um seu frequentador regular. Mas encontrei por lá, ao longo dos muitos anos de cliente que também sou, uma miríade de gente do PSD. Não sendo dessa “freguesia” política, devo dizer que fui sempre muito bem tratado no “Comilão”, porque aquela é uma casa em que, no que toca a clientes, não há sectarismos!

Há mais de duas décadas, no meus anos de passagem pela política, gostava muitas vezes de almoçar por lá sozinho, com uma montanha de jornais e papelada para ler. Ia tarde, quando a maioria dos clientes já tinha zarpado. Os meus amigos Cardoso e Nelson (o primeiro, um sportinguista de raça, o segundo um lampião de carteirinha) arranjavam- me então duas mesas anexas, onde eu podia estender todo o meu “material”.

Numa dessas vezes, quiseram-me colocar junto de uma mesa onde estavam, num evidente “tête-à-tête” de conspiração, duas figuras muito importantes e muito conhecidas, ambos antigos e futuros ministros, do PSD. Na altura, o líder do PSD era o chefe da oposição ao governo de que eu fazia parte e sabia-se que a sua condução das hostes social-democratas estava longe de fazer a unanimidade (um velho hábito no PSD, como é sabido). A coreografia da conversa apontava para estarem a “cortar na casaca” do seu líder...

À entrada, eu tinha cumprimentado essas pessoas, que naturalmente conhecia, e procurava uma mesa adequada aos meus propósitos de leitura. O Cardoso, simpático, apontou-me um lugar, o qual, porém, logo notei que estava a “hearing distance” dos dois interlocutores da oposição. 

Eles, simpáticos e urbanos, sorriram, sem reagir, à ideia de me irem ter ali ao lado, preparando-se, pela certa, para terem de baixar o tom da conversa ou serem obrigados a modulá-la à luz do novo circunstancialismo. 

Eu tomei então a iniciativa de recusar o espaço que me era oferecido e, por forma a ser ouvido pelas duas figuras políticas, disse: “Muito obrigado, mas nessa mesa não pode ser. Não se estraga nunca uma boa conspiração contra um adversário...” Ambos riram e eu lá fui, para mais longe. 

Daqui a dias, tenciono regressar ao “Comilão”. Desta vez, espero poder comemorar uma coisa com o meu amigo Cardoso e receber os parabéns do meu amigo Nelson.

terça-feira, maio 04, 2021

País sem censo

Como já se previa, lá mudou a data para resposta ao Censo! Por que razão, neste país, quem cumpre os prazos vive sempre sobre pressão mas o lóbi dos incumpridores - por desleixo, por descaso, por se estarem “nas tintas” - consegue sempre uma boleia da vontade oficial?

Que medo! Vem aí o comunismo!


Este ano, em que celebra o seu centenário, está a ser de indiscutível glória para o PCP.

Uma paranóia bizarra de alguma direita anda por aí a relançar o "espetro" do comunismo. Podemos imaginar o que isto deve fazer rir, na sua tumba em Highgate, o velho Marx, o qual, curiosamente, comemoraria amanhã o dia em que veio ao mundo, lá por Trier ou Trèves, conforme queiram chamar à terra. Aliás, ele e o seu compincha Engels já tinham falado de como esse espantalho sempre assustava alguns, logo no primeiro parágrafo do seu célebre Manifesto.

O que é mais ridículo é que o tema, que se pensava que tinha caído fragorosamente com o muro, há uns anos, lá por Berlim, ressurja agora de forma caricata - apontando-se como modelos “de referência” o maluquinho dos mísseis da Coreia do Norte, o patético genérico de Chávez que, em fato de treino, atazana os venezuelanos ou os herdeiros empobrecidos dos reformados da Sierra Maestra, a quem o bloqueio americano ofereceu décadas de caribenho alento patriótico. Se o perigo vem dali...

Bem dizia o velho Karl que a História surge uma primeira vez como tragédia e uma segunda como farsa. O anti-comunismo, ao que se vê, também: andou em outros tempos pelo “Diário da Manhã” e pelo “Novidades” para acabar hoje no “ Observador”. Que maldade! Não se faz!

Alentejo desencantado

Há um país hipócrita que nasceu agora para a realidade das condições de vida miseráveis dos trabalhadores estrangeiros que trabalham nas estufas alentejanas. É escandaloso alguém vir manifestar surpresa perante uma questão que já nos envergonha há muitos anos.

O sal da vida

Gosto que o Sporting ganhe. Fico feliz pelo facto do meu clube ter conquistado um título internacional em futsal. Mas confesso que o futsal é uma modalidade que não me entusiasma minimamente. E também acho que não tenho de pedir desculpa por isso.

segunda-feira, maio 03, 2021

Então, nada?

“Então não publicas nada no teu blogue, hoje?”.

Já estava à espera disto, confesso. As novas tecnologias dão-nos uma vida impossível: três horas de Zoom de manhã, almoço a correr, gravação de um programa via Spype, uma reunião empresarial via Teams, ida à garagem (“a estimativa do conserto aponta para cerca de mil euros)”, duas horas a dar uma aula via Zoom, jantar à pressa e, agora, ir a uma reunião do outro lado da cidade servem de desculpa?

domingo, maio 02, 2021

Justiça

Nas redes sociais, houve uma acusação grave contra uma pessoa publicamente conhecida. Hoje, essa pessoa anunciou ter recorrido à Justiça, contestando a imputação que lhe foi feita. Num Estado de direito, uma acusação não é uma condenação. Deixemos que a Justiça decida.

Mãe

Alguém me fez notar, há tempos, algo que já me tinha ocorrido: naquilo que escrevo, refiro muitas vezes o meu pai e, muito raramente, a minha mãe. 

É uma verdade. Posso presumir que isso se deva ao facto de o meu pai ter sido uma pessoa com uma postura mais singular, mais afirmativa, mais “vocal” (no sentido anglo-saxónico), às vezes até mais cortante, na linha da tradição familiar que vinha da ala da família que era a sua. Lembro-me dos qualificativos que ele dava a algumas tipologias de comportamento, que nos ajudavam tão bem a perceber logo como alguém era. Como sobreviveu, por uns anos, à minha mãe, tendemos a concentrar ainda mais nele, e nas suas atitudes e ditos, a nossa atenção.

Não me recordo de ouvir algo de similar à minha mãe, a qual, no entanto, não deixava de ser uma personalidade bem forte e com imensa influência no curso de “funcionamento” da família, muito em especial junto do meu pai. Por isso, porque era mais dado a utilizar essas expressões - “isso é muito dos Costas”, ria-se a minha mãe -, ficaram-me, do meu pai, essas “citações”, que, às vezes, tendo a recriar no meu próprio estilo. 

Dela, da minha mãe, ficaram-me coisas essenciais, atitudes eternas de vida, ternuras que guardo, coisas que nem se escrevem. 

Hoje, dizem, é o dia das mães. Lembrei-me da minha, como me lembro todos os dias - e já lá vão 20 anos.

Deixo, como sua lembrança, e uma vez mais, este poema de Eugénio de Andrade que, quando o li, há uns poucos anos, me pareceu que lhe era dedicado:

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte. 

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
Dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

Turismo de família


Tenho uns familiares que estão a pensar comprar uma propriedade, algures no Alentejo, para aí instalar um “turismo rural”. O entusiasmo da família com o empreendimento está a ser tal que todos já prometem ir lá passar uns dias. 

Temo que venha a passar-se o que, nos anos 20, do século passado, aconteceu com umas tias, irmãs da minha avó materna, que, aproveitando o que tinham recebido de uma herança, instalaram, nas Pedras Salgadas, o “Hotel Colonial”, num tempo em que ir “para as águas” estava na moda. 

Ao que consta, toda a imensa a família se aprontou logo a lá ir passar férias - na época “alta”, claro. Não faço ideia que preços “especiais” foram praticados. Só sei que o empreendimento acabaria por se revelar um desastre, como negócio...

“Observare”


Aí está o “Observare” desta semana. Neste programa da TVI, sob a moderação de Pedro Bello Morais, com Carlos Gaspar e Luís Tomé, fazemos um bosquejo das questões do mundo, desde o “estado da arte” da presidência portuguesa da União Europeia ao discurso de Joe Biden, ao final dos primeiro 100 dias da sua presidência, abordando igualmente a questão de Cabo Delgado. Pela minha conta, sublinho as controvérsias que envolvem o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, bem com saúdo a decisão do Parlamento Europeu de suspender a imunidade diplomática a um criminoso grego, que se escudava por detrás de um partido neo-nazi.

Pode ver aqui.

Avisem-me, está bem?


Queria pedir o favor de me avisarem quando a ponte suspensa de Arouca deixar de ter visitantes. Nessa altura, quando puder passar por lá (aproveitarei, já agora, para ir almoçar ao “Parlamento” e encontrar, pela cidade, a nossa amiga Josefina e, se calhar, o Joaquim Brandão, como me aconteceu da última vez), gostaria de ter essa experiência. Mas não antes!

Faço parte de uma “raça”, por mania própria, que faz questão de “não ir” às novidades. 

Todos os anos, faço uma deliberada abstinência às aparições fílmicas. Quando surgem películas que estão escaladas para ou já tiveram Óscares, a minha reação automática é não as ver. Deixo passar - a sério! - um ano ou dois. Passo quase vergonhas nos “dinêrs en ville”, quando toda a gente já comenta um filme e eu, olimpicamente distante, digo: “Ainda não vi!”. Já olhei muitas caras espantadas a mirar-me de pasmo. A minha mulher vive menos bem com isto, porque há muito percebeu (ter começado a namorar comigo há 56 anos, dá para me conhecer já um pouquinho) que eu faço isto deliberadamente. E começa a irritar-se! Por este andar, daqui a vinte e tal anos, há uma crise no casamento!

Com a ficção literária, atuo da mesma forma. “O Nome da Rosa”, do Umberto Eco, é a minha coroa de glória. O filme, com o Sean Connery, saiu mesmo antes de eu ter lido o livro. Mesmo os que não tinham lido o livro já o comentavam, sempre comigo a deixar cair: “Já sei que é bom. Um destes dias leio!”. Um dia, li. Desde que a Elena Ferrante entrou na moda, eu coloquei-me à distância. Cá em casa, já passaram todos - mas todos! - os volumes e eu... nada! Já me tinha acontecido o mesmo com o “Memorial do Convento”: deixei passar dois anos sobre a edição, antes de o ler. Com os policiais nórdicos, foi a mesma coisa: eu ainda andava pelo Ellery Queen e pelo Dennis McShade e o pessoal cheio de ler sobre neve salpicada de sangue lá no cimo da Europa. Até na não-ficção isso se passa: o tempo que eu andei para ler o “Diplomacy”, do Kissinger! E ainda tenho em atraso, claro, todo o António Damásio. E tantas coisas mais!

Ultimamente, como quase deixei de ver televisão, a “snobeira” mudou de registo: só no dia 29 de abril li o (excecional!) discurso do presidente da República no 25 de abril (repito, um extraordinário discurso!). E tenho assim perdido, pelo menos no “timing” dito adequado, algumas outras coisas “imperdíveis”. Há um amigo, que me telefona quase todos os dias, que até hoje não entende como é que eu, com todas estas “falhas”, ainda consigo escrever nas redes sociais e na imprensa! 

Mas sou assim, que se há-de fazer! 

Há lá maior prazer do que encontrar um “finaço” do Porto e, perante a pergunta “O que é que achaste do Euskalduna?”, poder responder (a quem tem a ideia de que eu conheço ali desde a Badalhoca aos estrelados Michelin), com deliberada indiferença: “Nunca lá fui! Vale a pena?”

Há muitos anos, arrependi-me bastante desta atitude. Vivia no estrangeiro e, no Dona Maria, exibia-se o “Passa por mim no Rossio”. Eu adorava teatro de revista, como gosto imenso de fado (desde o chungoso ao aristocrático, com exceção do “Avenidas Novas” - um dia explico isto). Quando vinha a Lisboa, nunca havia bilhetes. Como não meto cunhas (quem alguma vez tiver recebido uma cunha minha pode escrever isso, em caixa alta, nos comentários), e aquilo continuava “na moda”, fui deixando passar a oportunidade. Até que a revista saiu de cena. Um dia contei isto ao José Bouza Serrano, que chefiava um gabinete de um governante com autoridade na noite lisboeta. Escandalizou-se: “Ó Francisco, podias ter dito! Arranjava-te, com gosto, dois bilhetes!”. Não pedi, perdi a revista. Dessa, não me perdoei!

Pronto(s)! Não gosto de ir às novidades! Era só isto que queria dizer. Ah! E pedir que me avisem quando aquilo em Arouca estiver “sem povo”!

sábado, maio 01, 2021

Notícias do fim do mundo

Um grande amigo contou-me que costumava dizer aos seus conhecidos estrangeiros que, se um dia se anunciasse o fim do mundo, uma maneira de se protegerem era virem viver para Portugal: cá, tudo chegava com dez anos de atraso! Hoje, ao ler algumas “ondas” que por aí andam, podemos concluir que o tempo de espera de certos ciclos se encurtou: as coisas chegam cá mais rapidamente. Só que o estilo de abordagem lusa do tema é como o bife, é “à moda da casa”.

Sociologia empírica


Há pouco, deu-me para olhar para as estatísticas de visitantes deste blogue, oferecidas pelo próprio sistema. Não resisti a fazer alguma breve interpretação do números, sempre tendo presente que visitas não equivalem necessariamente a leitores. Por exemplo, não acredito ter leitores nos 176 países de onde houve visitas registadas ao blogue. Por isso, valendo o que vale, aqui fica essa análise.

O blogue começou a ser publicado em fevereiro de 2009, quando era embaixador em Paris, lugar que ocupei até janeiro de 2013. O estilo dos textos, dadas as funções institucionais que desempenhava, era relativamente contido e politicamente neutral, naturalmente sem incursões pelas questiúnculas que então dividiam o país. Os índices de leitura do blogue foram crescendo, de forma sustentada, à medida que ele se tornava conhecido.

De 2013 a 2015, tendo deixado de ter funções oficiais, o blogue mudou de registo. Passei a poder tomar posições sobre temas que, no passado, me estavam vedados. E, com naturalidade, os textos passaram a fazer transparecer a minha aberta oposição ao governo que estava então em funções, em especial em artigos que escrevia para jornais. Os níveis de leitura aumentaram bastante. Até ao período do início da “geringonça”, o número de visitantes mensais chegou quase aos 100 mil.

Quando, a partir daí, passei a apoiar a nova solução de governo, o número de visitantes declinou: ser “da situação” não só não acarreta popularidade como afasta quem é hostil...

Os “boosts” que se notam, com súbitos altos e baixos, que passam a ocorrer entre um certo momento de 2016 e o início de 2018 têm uma razão muito especial: houve ali “mão” de uma empresa que, um dia, me informou querer “potenciar” mecanicamente as visitas ao blogue, com vista a poder propor-me, com a inclusão de publicidade, a sua exploração comercial (isto “fabrica-se”, sabiam?). Como acabei por não me mostrar interessado em retirar qualquer rendimento comercial do blogue (que poderia chegar aos dois mil euros/mês, ao que fui informado), a partir de janeiro de 2018 as “máquinas” desligaram-se e o blogue regressou aos seus “verdadeiros” visitantes. Confesso que foi um sossego, porque, nesse período “eufórico” de números, eu não percebia exatamente quantas pessoas me liam e qual era o “acréscimo” artificial que essas “máquinas” faziam.

Desde o início de 2018, passou então a registar-se uma descida de visitas, até cerca de 30 mil visitantes/mês, em inícios de 2019. Pensei que esse “trend” estivesse a ditar o declínio inexorável do blogue. Porém, a partir de inícios de 2020, houve uma sensível recuperação de leitores, que ultimamente não têm baixado dos 50 mil/mês. Convém notar que, a partir de 2013, grande parte dos textos passou a ser publicada, quase simultaneamente, no Facebook, pelo que muitos dos antigos leitores do blogue se deslocaram para esta nova plataforma, onde há hoje mais de 17 mil seguidores.

Há dois fatores que, verifico, influenciam bastante os “picos” ocasionais de leitura. Por um lado, o número de textos publicados (em 2020, aumentei bastante o número de posts, porque passei a reproduzir ali alguns dos textos curtos que publico no Twitter), com o número de leitores a acompanhar esse volume crescente de produção, mês após mês. O segundo - e, verdadeiramente, o mais decisivo - é quando algo publicado no blogue suscita alguma polémica pública, com consequente procura do Google. Esses textos passam a ter uma leitura excecional e as visitas ao blogue disparam logo.

Mas há uma realidade que creio inescapável: os blogues desta natureza, isto é, de ideias e sem objetivo comercial, estão a ficar fora de moda. Além disso, os blogues individuais dão muito trabalho a alimentar e começam(os) a ser raros os que se sustentam no “mercado”. As pessoas deslocam-se, cada vez mais, para outras plataformas nas redes sociais, até porque escasseia a paciência para ler textos longos, como os que por aqui frequentemente publico. Porém, até eu um dia me cansar, este blogue vai continuando.

Quanto às estatísticas, como as que aqui trago, confesso que elas me são quase indiferentes. Às vezes, passo meses sem as olhar. Não que o número dos meus leitores seja irrelevante, longe disso!, mas porque este exercício de escrita simplória é, pelo menos no meu caso, feito muito “para mim”, para registo pessoal de opiniões e de memórias. Porém, hoje, na madrugada do dia do trabalhador, deu-me para fazer, em modo impressionista, este “trabalho de casa”, que achei curioso, em especial para uso de quantos ainda se dão ao simpático cuidado de me lerem.

sexta-feira, abril 30, 2021

A geografia da vida


O inferno das máscaras retira a naturalidade às relações humanas e, em especial, à alegria dos encontros fortuitos. (Claro que sei que tem que ser assim! - e isto é um aviso para quantos tresleem tudo o que se escreve!). Damos de frente (ia dizer “de caras”, mas, afinal, é só “meia” cara) com pessoas que julgamos conhecer e, a menos que um de nós arrisque identificar-se (mas é um tanto ridículo se, afinal, a pessoa acaba por não ser quem julgamos), ficamos a olhar-nos de modo estranho, até que desistimos desse consumar esse potencial “descobrimento” aventuroso.

Há poucas horas, numa cerimónia oficial a que funções, também oficiais (é verdade, ainda as tenho, mas não são pagas, para que conste), me levaram, fiquei ao lado de uma senhora idosa (a senhora em causa, como já irão notar, tem mais 23 anos do que eu, o que me permite esgueirar-me com alguma “juventude” relativa por esta historieta). 

Fizemos um cumprimento leve com a cabeça e coloquei a minha própria a pensar: quem poderá ser esta senhora? Ela estava ali em funções similares às minhas. Aquele cabelo! A cerimónia ainda não tinha começado. 

Só um minuto depois, é que se me fez luz. 

Aquela senhora tinha sido minha professora de Geografia, na faculdade, em 1968/69. Era a professora catedrática Raquel Soeiro de Brito, discípula de Orlando Ribeiro e, sem contestação, uma das figuras mais marcantes daquela especialidade académica a nível nacional. 

Há cinco anos, num tempo em que ainda não andávamos neste baile pandémico de máscaras e num dia em que ambos tínhamos tomado posse das funções que ainda hoje ocupamos, a professora Raquel Soeiro de Brito tinha tido a gentileza de atravessar uma sala do Palácio de Belém para vir ter com este seu antigo aluno, a quem saudou com generosa simpatia. Fiquei encantado com o seu gesto!

Falámos então desses tempos antigos no Palácio Burnay, na Junqueira, numa escola onde preponderava Adriano Moreira, tendo ela lembrado que, no seio do corpo docente, eu tinha uma imagem de “revolucionário” (era dirigente estudantil e tive por ali alguns conflitos, mas, na realidade, eu era um “paz de alma”, ao lado de outros). 

A professora Raquel Soeiro de Brito é hoje uma senhora de 96 anos, com um aberto e agradável sorriso (lembro-me bem dele, do tempo sem máscaras e a fotografia prova-o). Na ocasião, devo dizer que não consegui ter coragem de dizer-lhe que, como professora, há mais de meio século, ela projetava, com aquele seu ar quase nórdico, uma imagem um pouco intimidante e que dela recordava umas graças cortantes, das quais alguns colegas eram frequente alvo. 

Há pouco, quando pensei relembrar-lhe quem eu era, para o que me preparava para tirar a minha máscara por um instante, o “dono da casa” entrou no espaço onde estávamos, a cerimónia teve início e eu perdi assim o ensejo de saudar, como devia, a minha antiga professora de Geografia.

É que gostaria de lhe ter dito que, se no exame que fiz no fim das aulas teóricas não passei então de um mísero e justo 13, eu viria, afinal, a ter o privilégio de uma imensidão de “aulas práticas”, na muita geografia de algum mundo por onde a vida me fez andar.

Alves dos Santos

É nestes dias de grandes jogos de futebol que me vem à memória a histórica frase de comentário televisivo de Alves dos Santos: “Lá vai o jovem Simões, inteligência nos pés e futebol na cabeça”.

Palermice

Já estava a estranhar que uma coisa tão óbvia como o Censo, feito a cada dez anos, para se perceber o país em que vivemos, não viesse a ser contestado por acusações palermas de "orwellianismo". A demagogia tomou conta da praça pública, com a redes sociais a ajudar.

quinta-feira, abril 29, 2021

“O Mundo não tem de ser assim”


Ela aí está, com o belo título de “O Mundo não tem de ser assim”, uma biografia muito completa de António Guterres.

Um dia, já há uns bons anos, um dos autores, Filipe Domingues, disse-me ter tido a ideia, com um amigo, de fazerem uma obra sobre a vida do secretário-geral da ONU e antigo primeiro-ministro. Na altura, lembro-me de lhe ter comentado que o único trabalho sobre Guterres que existia, além de datado, ficava muito aquém do que era devido ao cidadão português que mais longe fora no mundo internacional, pelo que uma boa biografia de Guterres claramente que se impunha. E que, antes que alguém, lá por fora, avançasse com isso, era muito bom que se colocassem em movimento.

Para tal, disse-lhes, era vital que eles conhecessem o embaixador João Lima Pimentel, um grande amigo de juventude e que também havia sido colaborador próximo de António Guterres, o qual tinha uma imensidão de histórias sobre o amigo e que, além disso, poderia ser a chave para muitas portas se abrirem, a principal das quais era o próprio potencial biografado, o qual, à época, estaria ainda longe do projeto.

Com os autores, o João Lima Pimentel e eu tivemos uma longa conversa, durante um simpático jantar onde eu conheci aquele que seria o outro autor, Pedro Latoeiro, e em que ambos conheceram João Lima Pimentel. Esse foi, ao que recordo, o meu único contacto com os autores da obra, durante toda a sua feitura. Às vezes, ao longo dos anos que se passaram entretanto, perguntava ao Filipe Domingues como iam as coisas, que sempre teriam de demorar o tempo que este tipo de obras sempre leva.

Fico muito satisfeito por ver agora surgir o fruto daquele que deve ter sido um intensíssimo trabalho. Porque a vida não dá para tudo quando queremos, ainda só tive tempo de passar os olhos por alguns capítulos daquelas quase 700 páginas, densas de um tempo de Guterres que acompanhei, grande parte dele à distância mas, desde cedo, com atenção. Numa outra parte, relativamente curta, com alguma proximidade. Agora, mesmo sem ter lido o livro todo, não quero deixar de saudar um empreendimento que sei ter sido feito com grande rigor e entusiasmo. Como António Guterres merecia, aliás.

quarta-feira, abril 28, 2021

“A Arte da Guerra”



Da importância a nível nacional espanhol das eleições regionais em Madrid à crise política e às dependências externas da Geórgia, passando por uma reflexão sobre a primeira cimeira da NATO com Biden. 

Veja aqui

Se Conceição


A Se Conceição era mãe da Arménia. Ditas as coisas assim desta forma, as coisas ficam pouco compreensíveis. “Se” Conceição era o nome que eu e os meus primos dávamos a uma empregada da minha avó paterna, na nossa infância, lá por Viana do Castelo: abreviatura de Senhora Conceição. 

Tinha uma filha com um estranho nome, que me começou a “causar espécie”, como se dizia nesse tempo, quando aprendi alguma geografia: Arménia. Voltei a encontrar a Arménia, lá por Viana, nas ocasiões onde é costume cruzar pessoas conhecidas, de quando em vez: em alguns funerais. Nunca me lembro de ter falado com ela (era pouco mais velha do que eu, recordo-me) sobre o seu nome com topónimo de uma república do Cáucaso, que às vezes surge nas notícias e quase sempre não pelas melhores razões.

A mãe da Arménia, a Se Conceição, era uma mulher serena, que recordo silenciosa, de sorriso um pouco triste, com o cabelo apanhado em carrapito, de cujos dotes culinários não tenho a menor memória. Apenas me lembro do cheiro do café que ela fazia e que eu apanhava no ar quando ela o trazia pelo longo corredor que ia da cozinha à sala de jantar.

Nesse tempo, os pacotes de café (ou seria de cevada?) traziam dentro brindes, em forma de pequenas colheres, feitas num alumínio manhoso, que eu achava o máximo ajudar a descobrir quando se abria cada novo pacote. (A lógica era a mesma que está subjacente à graça que se ouvia, quando os conflitos de trânsito se passavam de forma educada: “Saiu-te a carta na Farinha Amparo!”)

Porque é que me lembrei hoje da Se Conceição? Sei lá! Talvez pelo azul do céu desta fotografia da bela estação da cidade.

Na morte de Mara Abrantes


Por muitos anos, no mundo das artes performativas, não havia muitos brasileiros que vivessem em Portugal e que fossem bastante conhecidos. Ou melhor, havia dois: Mara Abrantes, uma cantora mulata (não sei se isto hoje ainda se pode dizer assim, mas eu digo), e Badaró, um cómico que por cá ficou, depois de um tempo em que algumas “revistas” brasileiras andaram, com um sucesso proporcional à poupança de tecido nos trajes das respetivas artistas, por palcos divertidos de Lisboa e Porto.

Badaró já tinha partido há muito. Hoje foi Mara Abrantes. É um certo Brasil dos palcos portugueses, bem de outros tempos, que assim acaba.

Nos dias de hoje, há muitos outros brasis que vivem entre nós. E ainda bem! Gosto de ser cidadão de um país onde convive - já sei, também com problemas, claro - muita gente nascida em outros lugares onde também se fala português, tributária das suas diferentes culturas. Muitos teimam em não entender a riqueza, que não se mede só em cifrões, que isto traz a Portugal.

Biden

Estou muito longe de ser um incondicional da orientação da política externa de Joe Biden - e isto é um “understatement”. Biden foi a resultante hábil de uma tática construção democrática para afastar Trump. Em condições normais, como ainda há dias li algures, nunca teria chegado à Casa Branca. Contudo, se tivermos em conta a globalidade da ação que até aqui desenvolveu como presidente, pode dizer-se, sem favor, que se está a sair bastante “melhor do que a encomenda”.

Decidam-se!

A boa notícia é que estão aí a ser publicados muitos novos livros. A má notícia é que não há tempo (nem dinheiro) para conseguir ler muitos deles. Esta malta encontra sempre razões para andar insatisfeita, direi eu, depois de dizer o que disse! Decidam-se, por uma vez!

Linguareiros

O presidente da República chama os partidos e troca ideias, com cada um em particular. Alguns partidos saem da reunião, a qual, não terá sido por acaso, teve lugar à porta fechada, e logo contam aos jornalistas o que o presidente lhes disse. É assim a nossa democracia. É à moda da casa.

Conversa de sala de espera

O facto do nome da vacina que cada um de nós toma ter tomado conta das conversas é a prova do estado muito básico da cultura de convivência que assentou por aqui

terça-feira, abril 27, 2021

Calamidade!

Há coisas em que a língua portuguesa nos traz grandes surpresas. O presidente da República decretou o fim do Estado de emergência. Ufh! Que alívio! Sabem o que aí vem (formalmente, pelos vistos, mais suave e descansativo)?: o “Estado de calamidade”! É nele que vamos entrar...

José Fernandes Fafe


“Famalicão e Cacém seguem amanhã”. Era o texto de um curto telex, do meu colega Tavares de Carvalho, que estava na nossa embaixada em S. Tomé, enviado para mim, colocado na de Luanda, algures em 1985.

A nossa mensagem cifrada era em “ostensivo”, como se dizia nas Necessidades, para gozar com a “secreta” angolana, porque havia a suspeita de que ela lia a nossa “telegrafia”. 

No caso, era irrelevante, mas a mensagem significava que o embaixador itinerante para as questões culturais, José Fernandes Fafe (daí o “Famalicão”) e o professor Lindley Cintra (daí o “Cacém”), viriam no bissemanal voo da TAAG, de S. Tomé para Luanda, que chegaria no dia seguinte. Foi nesse dia que os conheci a ambos, pela primeira vez.

No passado dia 25 de Abril, o presidente do município de Cascais, Carlos Carreiras, nas palavras que proferiu, aquando do encerramento do marco que atribui a José Fernandes Fafe o nome de uma rotunda na vila, evocou, imagino que perante o desconhecimento de muitos que por ali estavam, a associação do homenageado à “Esquerda Liberal”. 

“Chapeau!”, pensei para comigo! Como é que alguém se lembrou disso, que está nos arcanos da memória político-cultural portuguesa?! Pressenti uma leve reação de surpresa e (só imaginei, por causa da máscara) um sorriso na cara do meu amigo Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, ali presente como amigo de Fernandes Fafe.

Achei graça porque, numa das belas noites de conversa que tivemos com Fafe e Cintra em Luanda, nesse ano de 1985, recordo-me de lhe ter manifestado a minha estranheza pelo facto de o ter visto surgir ligado a um grupo de antigos militantes da extrema-esquerda que, com um clube com esse nome, prosseguido depois com a revista “Risco” (onde o leque ideológico se alargou muito), iniciavam então o seu “luto” da aventura que os tinha levado pelas catacumbas dos diversos estalinismos. 

Fernandes Fafe, que eu sabia ligado a outra bem diferente tradição política, dera a sua prestigiada “bênção” a esse grupo (Pacheco Pereira, João Carlos Espada, Villaverde Cabral) e, julgando conhecer as suas ideias, isso surpreendera-me. E disse-lho.

Nessa noite, Fernandes Fafe explicou-me, com um detalhe teórico que eu, posso imaginar hoje, só por educação terei fingido acompanhar, por que me não revia minimamente nas ideias da tal Esquerda Liberal, o mérito dessa iniciativa. Recordo bem ele ter feito um enfático elogio à qualidade intelectual dessas figuras, no que concordei, em absoluto. Mas só nisso! 

Verdade seja que essa Esquerda Liberal viria a cair, então, inteiramente nos braços do “soarismo” que haveria de chegar a Belém, para depois alguns se afastarem até chegarem ao “cavaquismo”. Não foi esse, claro!, o percurso de Fernande Fafe.

Para uma pessoa para quem, desde há muito, a palavra “liberal” só soa bem quando é dita por um americano e com o sentido que por lá tem (na tropa, eu “insultava” o meu amigo e posterior colega embaixador António Franco, chamando-lhe “liberalóide”), tendo lido muito do que Fernandes Fafe publicou, até ao final da sua vida, permito-me crer que, nos dias de hoje, ele se sentisse menos confortável com uma proximidade à ideia “liberal”. Mas isto sou só eu a especular!

E como já não tenho já comigo, para tirar teimas, o meu amigo António Silva, uma das pessoas que venerava Fernandes Fafe, e que, há anos, editou uma muito interessante conversa com ele, só me posso ficar por estas conjeturas, hoje suscitadas por aquele episódio, que durou escassos segundos, na mais do que merecida homenagem a esse grande embaixador da Cultura que o Palácio das Necessidades teve.

Parabéns, José Paulo Fernandes Fafe, por esta justíssima homenagem ao seu pai. E agradeço-lhe muito o ter sido convidado a nela participar.

O reino


Longe de ser um “Buckinghamólogo”, tenho a sensação crescente, desde há meses, pela coreografia dos “royals” britânicos, com a rainha e o príncipe Carlos a surgirem apenas os dois em fotografias e filmes, que pode estar a ser preparado um processo de sucessão em vida de Isabel II.

segunda-feira, abril 26, 2021

Lola


Lola é o nome que foi dado, sabe-se lá por quem, a uma tempestade que, por estas horas, está a cair, a rodos, sobre Lisboa.

As gerações atuais talvez o desconheçam, mas houve longas décadas em que as noites, em alguns lugares da cidade, eram animadas por umas jovens espanholas que, para finalidades tarifadas, “por supuesto”, tinham atravessado a fronteira e acabavam o seu dia a chamar “cariño” a uns cavalheiros abonados, cansados do serralho familiar. Havia então o mito estatístico, quiçá exagerado, de que uma em cada três dessas senhoras dava sempre pelo nome de Lola.

Já nos tempos do Eça, como poderão verificar, isso se passava assim e um cronista da vida noturna lisboeta mais contemporânea, o humorista José Vilhena, encheu de Lolas as suas belas historietas - de que, infelizmente, ao contrário do escritor e diplomata, ainda não há uma edição completa em papel bíblia.

Como antigo profissional de relações externas, entendo que nunca foi feita devida justiça ao papel histórico desempenhado por essas Lolas para a promoção do bom relacionamento bilateral ibérico - ou, para utilizar o “politicamente correto” das Necessidades (onde, no meu tempo, se aprendia que a palavra “ibérico” era demasiado hispano-centrada), peninsular.

domingo, abril 25, 2021

Há 20 anos, dia por dia


Eu estava em Nova Iorque há menos de dois meses. Nesse dia, saí de casa, muito cedo, diretamente para a sede da ONU, onde tinha reuniões, umas a seguir às outras.

Com alguma ingenuidade, algo “stakhanovista”, eu tinha decidido encontrar-me pessoalmente com todos os colegas estrangeiros embaixadores na ONU! Todos! Os 189, à época! Toda a gente achou que era uma loucura, mas eu só cheguei a essa conclusão ao final de quase três meses.

Com uma “vingança” pessoal: ganhámos todas as eleições para todos os cargos a que concorremos, algumas ditas impossíveis. É verdade que eu tinha uma equipa “eleitoral” de luxo, herdada do meu colega António Monteiro, mas ter a “lata” de ir ver o embaixador de Vanuatu, seguido do de Saint Kitts and Nevis e o do Burkina Faso e, depois, nos dias seguintes, mais 185, não terá deixado de contar alguma coisa para isso. Foram longas semanas nisto!

Cheguei assim, nesse dia, à nossa Missão, já depois do almoço. Ainda não tinha entrado no gabinete e já as minhas secretárias me avisavam da lista das “chamadas em atraso”. Nas Nações Unidas, está sempre alguma coisa em atraso! E havia ainda a lista dos colaboradores que tinham feito “reserva” para me verem, com “telegramas” para eu dar “luz verde”, antes de seguirem para Lisboa, onde já eram umas horas mais tarde, com informações ali aguardadas, o que aumentava a angústia.

Só quando me sentei na secretária é que dei por ele: um ramo de cravos vermelhos. Era 25 de abril! E eu nem me lembrara da data! Nas embaixadas bilaterais era feriado! Ali, em Nova Iorque, era um dia de trabalho, como os outros!

“Cristina! Quem trouxe estes cravos?”, perguntei, imagino que com o sentimento de ter ganho o meu dia. “Foi a Dra. Clotilde Mesquita!” A Clotilde era uma funcionária da Missão, que eu conhecia já de Lisboa.

Quis a sorte, ou o azar (hoje a minha doutrina interior divide-se sobre o assunto) que só tivesse mais um 25 de Abril em Nova Iorque.

No ano seguinte, em 2002, também no dia 25 de Abril, organizei um jantar em casa em que juntei Xanana Gusmão e Mari Alkatiri, para lhes apresentar aquele que iria ser o sucessor de Sérgio Vieira de Mello em Timor, o indiano Kamalesh Sharma, até ali meu colega como embaixador da Índia junto da ONU.

A minha mulher, que não estava presente no jantar, tinha posto um cravo vermelho em frente de cada convidado. Xanana e Alkatiri sorriram muito. Ao indiano tive de explicar o porquê da flor.

Mas, também nesse dia, já de manhã, a Clotilde me tinha deixado cravos sobre a minha mesa de trabalho na Missão portuguesa. E, depois disso - e já passaram quase duas décadas - esses cravos passaram a virtuais, em Viena, em Brasília, em Paris e, finalmente, aqui em Lisboa. Em todos os 25 de Abril.

Obrigado, querida Clotilde! E viva o 25 de Abril! Sempre! 

Já passou!

 


As quintas da empregada





Renato Janine Ribeiro é um intelectual brasileiro que, há uns anos, ocupou o cargo de ministro da Educação do Brasil. É um figura serena, dialogante, com uma sabedoria amável, a que, seguramente, não será alheia a sua formação em filosofia. Um democrata e um amigo.

Tenho o gosto de, com ele, ser membro de uma agremiação “do bem”, o Forum Demos, uma estrutura animada por Álvaro de Vasconcelos, que Portugal se habituou a conhecer como a alma do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI) e que, mais tarde, ajudou as instituições europeias a pensarem-se no mundo.

O Renato enviou-nos hoje, a propósito do 25 de Abril, uma data que os nossos amigos além do Atlântico saúdam connosco a cada ano, este delicioso testemunho que, com sua autorização, me atrevo a partilhar:


ANIVERSARIO DA REVOLUÇÃO DOS CRAVOS

Penso que nunca relatei este episódio de que fui testemunha.

Hoje, aniversário da Revolução dos Cravos, que tornou possível falar em público de liberdade e democracia na língua portuguesa, até então presa de vis tiranos, eu a conto.

Estive em Portugal todo o mês de agosto de 1974, conhecendo o vigor de um povo que se libertara. Voltando a Paris, onde eu era bolsista (não, não fui exilado), recebi um convite de um amigo de meu pai que ia dar uma recepção pequena, em seu apartamento, para o 7 de Setembro. Era o adido cultural em Paris, Clovis Graciano, um dos grandes pintores brasileiros.

De vez em quando, aliás, ele me chamava a almoçar em sua casa, onde ele e a esposa me recebiam. Seu filho Paulo trabalhou com meu pai, ainda jovem, na editora Banas de publicações econômicas. Mais tarde, meu pai assessoraria Paulo, quando este foi presidente do Instituto Brasileiro do Café, o IBC. Havia, então, uma discreta amizade de família.

Paulo Graciano era um pintor vigoroso, que tinha militado à esquerda. Agora, era adido cultural do embaixador Delfim Neto.

Pois a certa altura, numa destas rodas que se formam e dissolvem num coquetel, todos de pé, um jovem filho de dono de jornal importante começou a contar sua viagem a Portugal, dias antes, e o descontentamento que ouvira dos motoristas de taxi. Clovis Graciano então disse o que sua empregada, portuguesa como era muito comum em França naquela época, lhe afirmara:

- Dr Clovis, os comunistas estão a tirar as quintas, as herdades de quem as tem!

Os circunstantes, dois além de mim, ficaram animados, esperando a frase fatal anticomunista que deveria arrematar esse depoimento da senhora portuguesa. Mas Clovis:

- Minha filha, tu tens quintas? Tens herdades? Não? Então tens é que estar com os comunistas!

O silêncio foi sepulcral. Os dois outros circunstantes saíram da roda, ressabiados. Clovis ria. Eu exultava.

O Fado do Chicão

Do cravo negro do Ventura (sponsorizado, podemos imaginar, pela Servilusa) ao cravo branco do Chicão do Caldas, na manhã a-preto-e-branco deste “pas de deux” da direita, qual será a verdadeira distância? O tempo o dirá!

Aqui fica este oportuno poema de Luís Filipe Castro Mendes, revisitando Pedro Homem de Mello e o seu “O Rapaz da Camisola Verde”:

“O Fado do Chicão”

De olhos nas câmaras e de olhar afoito,
jeito de marinheiro ou de soldado,
era um rapaz da direita moderna,
negra madeixa ao vento, cravo branco de lado.

Perguntei-lhe quem era e ele disse
“sou a direita e por mim vai tudo mudado”.
Pobre rapaz da direita moderna,
negra madeixa ao vento, cravo branco de lado.

Porque me assaltam turvos pensamentos?
Que queres tu mudar no nosso fado?
Diz-me rapaz da direita moderna,
negra madeixa ao vento, cravo branco de lado?

Ouvindo-me, quedou-se altivo o moço
e respondeu com o cravo branco empinado
“De vermelho tornei branco este cravo,”
negra madeixa ao vento, olhar arregalado.

Soube depois que tivera tantos votos
quantas ideias tinha apresentado.
Ai do rapaz da direita moderna,
negra madeixa ao vento, cravo branco murchado!


E agora vou comprar cravos...


 ... porque “o 25 de Abril é à hora que um homem quiser” (citação de um “late riser” anónimo)

Pois é, Sophia...

 


... o “dia inicial inteiro e limpo” está assim! Mas dias melhores virão!

Há 200 anos


Faz hoje precisamente 200 anos, dom João VI, que ganhara o título real já no Brasil, deixava definitivamente aquela terra, ao final de 13 anos, para onde a corte se transferira em 1808, acossada pela primeira invasão napoleónica de Portugal. O efeito do período joanino sobre o Brasil foi imenso, como o reconhece quem se debruça com seriedade sobre os múltiplos impactes da presença tropical da corte, os quais, a curto prazo, vieram densificar a massa crítica que deu lugar à posterior independência da colónia. Mas porque as relações coloniais são sempre o que são, há um Brasil que não resiste a pontuar a evidência do salto qualitativo dessa centralidade conjuntural do império português com algumas notas caricatas e depreciativas sobre a imagem e os hábitos do rei. Esse tipo de discurso a propósito de dom João VI iniciou um recorrente ciclo de lusofobia, umas vezes mais acentuado, outras vezes mais atenuado, que se converteu numa espécie de doença infantil a que a brasilidade raramente consegue escapar. Um artigo na “Folha de S. Paulo” de hoje segue, com naturalidade burocrática de pensamento, essa “politicamente correta” dualidade de leitura. Nada de novo, a Sul.

A eterna maiúscula

Eu sigo o Acordo Ortográfico. Mas a palavra Abril do nosso 25 de Abril é o único mês que, em exceção à regra do Acordo, deve ser sempre escrita com uma imensa maiúscula.

Os tempos

Todos sentimos que o 25 de Abril já foi há muitos anos. Grande parte da atual população portuguesa nem sequer era ainda viva nessa data. 

E já pensaram que a ditadura, que nesse dia foi derrubada, exerceu o seu poder totalitário (com polícia política, pessoas presas pelas ideias que professavam, torturas, assassinatos deliberados, guerras coloniais, ausência de liberdades mínimas, fraudes eleitorais permanentes, etc.) por tantos anos quantos aqueles -tambem já imensos! - que hoje nos separam do 25 de Abril?

sábado, abril 24, 2021

É pena!

Começa a ser muito evidente que algumas - repito, só algumas! - das pessoas da direita democrática que, há uns tempos, assinaram um belo manifesto em que, num ato de assinalável decência, se afastavam abertamente da extrema-direita, estão já arrependidas de o terem feito. É pena!

24 de abril

Um (agora bem mais conhecido) diplomata português, um dia, algures no mundo, numa conversa comigo, num tom que recordo cordial:

- Ó Francisco, desculpe lá! Você anda sempre a dizer às pessoas que eu sou um reacionário “de primeira”, quase um fascista, só porque sempre fui um conservador...

- Ó homem! Você não tem culpa nenhuma! Foi a vida que assim quis! Em que dia e mês é que nasceu? 

- 24 de abril... 

- Eu não dizia?! É a vida!

- Mas como é que sabe isso? 

- Leio muito! Até o Anuário, lá das Necessidades...

Viva o 25 de Abril!

Houve anos em que eu andava já cansado de ser sempre a mesma coisa: o MFA, os cravos, a Grândola, o Otelo, o Tarrafal, a Pide, a censura, o Maia, o Carmo, o ”povo unido” & parafernália idêntica.

Afinal, eu estava errado. Com a neo-fachalhada por aí, cada vez é preciso berrar mais alto: Viva o 25 de abril!

sexta-feira, abril 23, 2021

Salazar no 25 de Abril


“Senhor professor! Senhor professor! Telefonou o general Kaúlza a dizer que estão tropas nas ruas. Diz que, desta vez, não conseguiu impedir o golpe”. 

À dona Maria, com os olhos esbugalhados, parecia que ia dar qualquer coisa má. O roupão, até aos pés, dava-lhe um ar de espantalho, de assombração, com a luz tépida, vinda do corredor, a surgir-lhe por detrás, quebrando a escuridão do quarto de Salazar.

Silencioso, Salazar permanecia, pelo menos aparentemente, calmo. Levantou-se, pijama às riscas e abriu a cortina da janela que, do quarto, dava para a calçada da Estrela. Não viu qualquer movimento. 

Pôs os chinelos, saiu para a sala ao lado e ligou para casa do Barbieri Cardoso. É que o Silva Pais, chefe deste, nunca sabia nada de nada. A mulher do número dois da Pide respondeu que ele estava em Paris, numa visita aos colegas de lá. Sereno, Salazar agradeceu. Parou a olhar o teto, por um instante. Seria desta?

Lembrava-se do que fora a agitação pelo país quando ele caíra, lá no forte, já há quase seis anos. Na Cruz Vermelha, depois de semanas de dúvidas, tinham-no dado quase como morto. Mas as as contas tinham saído furadas aos que já o pensavam ir ver pelas costas. Ao que apurara, Marcelo Caetano até tinha andado a consultar gente para um governo. Muito se tinha rido! No fim, foi ele quem riu melhor! Mas Tomás portara-se bem, fora firme e tudo voltara à normalidade. 

O telefone que acabara de utilizar tocava agora. Era Paulo Rodrigues, um seu homem de confiança. “Senhor presidente! Algumas unidades militares atacaram vários pontos estratégicos! Há tropa por todo o lado! Tem de sair daí da residência! Podem ir prendê-lo!”

Salazar deu uma gargalhada nervosa: “Mas vou para onde? Fujo para Santa Comba?”. E logo inquiriu: “Mas quem é que manda nesse tal golpe? Não me diga que o Costa Gomes está outra vez envolvido? E o ministro da Defesa, o Bettencourt Rodrigues, por onde é que anda?” 

Paulo Rodrigues sabia pouco. As informações eram escassas. Estava tudo ainda muito confuso. Apenas lhe constara, dias antes, mas não teria querido incomodá-lo, que o Venâncio Deslandes andava algo agitado, em contactos.

Salazar ficou atónito! Não era possível! O Venâncio, sempre tão mesureiro! O próprio chefe do Estado-Maior das tropas deixara-se seduzir pela hipótese de derrubar o regime? Mas porquê? Bem, já tudo era possível! Paulo Rodrigues ficou de inquirir algo mais e ligar de volta.

Mal a chamada terminara, logo o telefone voltou a tocar. Desta vez era o Silva Pais. 

Salazar tinha cada vez menos paciência e confiança num homem que, sendo chefe da sua polícia, não conseguira evitar que a filha fosse viver para a Cuba de Fidel de Castro. Era uma suprema ironia! 

“Diga lá, Silva Pais. O que é que você sabe?” O homem engrolou-se em desculpas. Falou que, de facto, havia rumores de que o general Deslandes tinha andado a fazer uns contactos, mas nada indicava que um movimento sedicioso estivesse iminente. Tinha pensado falar do assunto a Salazar numa conversa aprazada para a semana seguinte.

As últimas informações, disse Silva Pais, eram de que, pela rádio, estava a ser transmitida uma espécie de senha musical, que pusera várias unidades em movimento. Uma música que estava a dar de hora a hora. “O senhor presidente, se quiser, pode ligar agora o Rádio Clube, vão ser quase seis horas. Dizem que dá mesmo antes das notícias. Os revoltosos seguem aquilo, porque a música lhes transmite uma indicação”.

Uma música? Está tudo doido? Salazar estava mais do que irritado! O Rádio Clube?! Seria outra vez o Botelho Moniz? Não podia ser. A verdade é que ele era cunhado do Deslandes...

Ligou o Telefunken. Estava a dar uma marcha militar! Mau mestre!, pensou para si! Não era bom sinal.

E logo surgiu a voz do locutor: “Faltam cinco minutos para as seis da manhã. Convido agora os nossos ouvintes, pelo país inteiro, a ouvirem a canção “A vida toda”. Uma melodia interpretada pela bela voz de Carolina Deslandes”.

Pronto, era mesmo o Deslandes!

Da cepa torta à boa nova

                           


Alguns podem detetar algo de gastronómico no título deste artigo. Têm e não têm razão.

Rui Paula, hoje um “chefe” mais do que credenciado, iniciou o seu percurso no ‘Cepa Torta’, em Alijó, atravessou o Douro para a Folgosa, aportou depois no Porto, andou pelo Recife e por Lisboa, e hoje, estrelado sem favores pela Michelin, oficia grande qualidade na Casa de Chá da Boa Nova, um pouco além de Matosinhos.

Neste entretanto, conseguiu, apenas à custa do seu esforço e mérito, romper barreiras e entrar na aristocracia gastronómica dominada por Lisboa e por algum Algarve feito para a estranja. Ele é, assim, a prova provada de que se pode sair da Cepa Torta…

Mas não, não era do Rui Paula que eu queria falar hoje. Era do país.

Portugal evoluiu muito. Somos muito diferentes do que éramos há décadas. As pessoas vivem, em geral, bem melhor, houve um salto imenso na sua qualificação. A sociedade (infraestruturas, saúde, educação, bem-estar) deu um grande passo adiante, as mentalidades abriram-se, há novas oportunidades.

Foi o 25 de Abril? Foi a entrada para as instituições europeias? Se não tivesse havido uma Revolução naquele dia, alguma coisa teria acontecido tempos mais tarde, embora provavelmente com mais sangue e mais lágrimas. Se não tivéssemos aderido às Comunidades em 1986, teríamos, com toda a certeza, chegado lá tempos depois, mas seguramente em condições mais desvantajosas. Portugal não ficaria parado no tempo. A única coisa que me parece certa é que a Revolução chegou tarde demais mas que, face a esse calendário, a entrada para o projeto europeu foi no momento certo.

Mas, aqui, começa a minha perplexidade: por que razão, com toda a liberdade e com fortes ajudas, não obstante os avanços que se produziram, o país continua a perder terreno face aos seus pares europeus? Há quantos anos ouvimos falar de planos, de projetos, de metas e, depois, tudo o que é concretizado acontece tarde, e sempre numa escala mais modesta?

Vem agora por aí a ‘bazuca’. Magnífico! Mas por que é que será que muitos não acreditam que “agora é que é”, que o passo adiante no nosso desenvolvimento pode, afinal, ser mais uma oportunidade falhada?

“Também tu alimentas o pessimismo?”, estou já a ouvir alguns amigos a inquietarem-se com estas minhas interrogações. Sou um otimista por natureza, mas, confesso, já estou tão “escaldado” que, de quando em vez, tenho quebras no meu ânimo.

Custa-me muito ter a sensação de que, por muitos esforços que façamos, não saímos da mediania, do “assim-assim”, de um resultado apenas razoável. Não consigo encontrar alguém que, de forma convincente, me diga, sem eu ter de fazer um esforço voluntarista para acreditar, que é desta que vamos deixar de ser o país mais pobre da Europa ocidental, que vamos parar de exportar mão-de-obra qualificada “chave-na-mão”, que vamos aproximar-nos, decisivamente, da média de crescimento e de riqueza da União. Gostava de ouvir alguém que me desse a boa nova de que vamos sair da cepa torta.

A América mexe com o mundo


Já por aqui se refletiu sobre o caráter determinante que a mudança de um presidente americano assume sempre na ordem global. Nenhuma alteração de liderança, em qualquer outro país do mundo, cria tanta expetativa e concita tanta atenção. A razão por que isso acontece é óbvia: muitas das orientações oriundas de qualquer que seja o titular da Casa Branca refletem-se nos vários cenários estratégicos internacionais.

Biden foi acolhido com o alívio de quantos esperam ver a América regressar a uma certa forma de “business as usual”. A maioria anseia ter uns EUA previsíveis na sua postura, face às grandes questões mundiais, ao invés dos humores cíclicos de uma figura, que oscilava entre o caricato e o irresponsável.

Dito isto, convém nunca esquecer que um presidente americano é, essencialmente, um presidente dos americanos e dos seus interesses - e esses interesses nem sempre coincidem com os dos outros. Por isso, para além da simpatia e da expetativa amável, o mundo vai ter que se confrontar, adaptando-se ou não, a uma nova ordem que aí virá. E os EUA, podendo conversar com os seus aliados, habituaram-nos já a não pactar as suas grandes decisões estratégicas.

No campo internacional, já se começaram a perceber algumas coisas essenciais.

Desde logo, que a China é o inimigo estratégico e que os EUA tudo farão para coligar, à sua volta, o conjunto de vontades que possa ajudar a isolar o poder de Beijing. Tendo criado a noção, provavelmente certa, de que, no tempo de Trump, a América perdeu tempo, que a China utilizou para reforçar o seu poderio e capacidade de afirmação, Biden não quer desperdiçar a oportunidade de se colocar, muito rapidamente, à frente dos aliados asiáticos da América, na resistência à nova assertividade chinesa. Quando utiliza, cada vez mais, a expressão “indo-pacífico”, Washington assinala querer cooptar para esse seu esforço o parceiro essencial que é a Índia. É por aqui que, tudo o indica, vai passar o esforço político, diplomático e militar, que estará no centro da administração Biden.

Deixar de ter “boots on the ground” (botas no chão) é também, já desde há muito, um objetivo tendencial de Washington. As memórias do Vietnam ou do Iraque não fazem parte de um património afetivo do imaginário americano, ao contrário da Segunda Guerra mundial.

As ameaças aos adversários são feitas, cada vez mais, de outra forma e Biden - como já tinha acontecido com Obama e mesmo com Trump - pretende corresponder à vontade, que se sabe muito expressiva, da opinião pública americana de ter o mínimo possível de tropas no exterior, em especial em zonas de risco efetivo ou potencial. A confirmação da decisão de sair do Afeganistão, que se soma ao continuado “desengajamento” no Médio Oriente, vai nesse sentido. Isso compensará, com certeza, a necessidade de presença em outros teatros simbólicos, como a Alemanha ou a Coreia do Sul.

Interessante, neste desenho estratégico, é, contudo, a conflitualidade - que quase parece estimulada - com a Rússia. Onde Trump mostrava tibieza e até uma estranha cumplicidade, Biden faz renascer aquilo que foi a linguagem mais jingoísta do tempo de Obama. O regresso da Ucrânia à primeira linha de alguma mobilização, retórica e não só, acarreta, contudo, consequências que não são despiciendas para a própria unidade das vontades europeias. Sabemos bem que, no seio da União Europeia, o discurso face à Rússia não é necessariamente unívoco. A questão do gasoduto Nordstream 2, que é uma obsessão estratégica americana, é, por exemplo, um problema sério de decisão para uma Alemanha que atravessa um complexo ano eleitoral. Mas há bastante mais.

Ainda na Europa, e tendo começado por sossegar os seus aliados quanto à continuidade do seu interesse na Nato, os Estados Unidos irão, quase como contrapartida, forçar uma maior clareza face à questão chinesa. A ausência do Reino Unido no processo de debate intraeuropeu neste domínio não facilita as coisas para Washington, mas este promete ser um tempo nada fácil em Bruxelas.

Trump deu à Europa muitas dores de cabeça? Biden vai-nos colocar equações bem complicadas para resolver. Vão ver!

Diplomacia e informação


A convite do Centro de Formação de Jornalistas, de Angola, farei hoje uma palestra dedicada aos profissionais da diplomacia angolana que estão ligados às questões da informação e da imprensa, com especial ênfase nas área da comunicação digital e do apoio à diplomacia económica.

quinta-feira, abril 22, 2021

Voltar


A chuva, que caiu quase de manhã à noite, tinha tornado muito pesado e longo o dia de viagem de ontem, de norte a sul. Chegar a Lisboa foi quase uma bênção. Desmalado e arquivado o carro, abri a caixa do correio, atulhada de coisas, depois de mais de uma semana de ausência. E dei então com o envelope. Sentei-me a ver snooker sem som na televisão - desde há muito funciona, para o meu descanso psicológico, como imagino que o Baby TV deva ajudar os consumidores a que se destina - e comecei a ler o “Voltar”, o novo livro de poemas que o Luís Filipe Castro Mendes nos tinha enviado, com uma amiga dedicatória. Fez-me muito bem, ajudou-me a acordar o fim de um dia, em que estava já entorpecido, o poder saltitar por aqueles versos, escritos a pretexto de muitos lugares e com o amor como frequente mote. Li mesmo alguns dos textos em voz alta, como aprendi a fazer com o meu pai.

Não me considero um leitor perspicaz para pescar sentimentos alheios (desde logo, nem sequer os meus próprios) mas, ousando, por uma vez, ir por aí, diria que a poesia mais recente do Luís me surge atravessada (mas isto, repito, vale o que vale!) por uma suave e assumida nostalgia, às vezes com um toque, aqui ou ali, de algum bem esboçado desencanto, a meu ver mais buscado (mas nada rebuscado) do que real. Trata-se de poesia, não esqueçamos! Mas ela é oriunda de quem, estando muito bem reconciliado com a vida, cuida bastante em revisitar as suas geografias afetivas - as humanas e as propriamente geográficas, estas sempre muito ligadas à sua memória cultural. Logo ele, que teve a sorte de ter muita sorte e de saber procurá-la e vivê-la tão bem! Às vezes, contudo, só numa segunda leitura se me torna evidente (cada um lê o que quer ler, não é?) que a poesia do Luís tem muito de uma radiografia, contida e muito serena, da sua óbvia felicidade pessoal. E isso resulta muito bom para o leitor. Pelo menos, resulta para mim.

Fica aqui um “amuse bouche”, com os cumprimentos do chefe poeta, este “Ao lembrar”:

Cada cidade que recordamos
trai a nossa memória dela, ao ser outra
a cada dia.
Só nos são fiéis as cidades desconhecidas
com que não chegámos a sonhar
.”

Vacina (2)

Nota 20 para a administração das vacinas! Serviço bem personalizado: bela hora, só ao final da manhã, e local adaptado ao "cliente": logo ali ao lado, estava a Livraria da Travessa, uma das melhores de Lisboa. E como, ao contrário dos bolos do José Severino, "eu é mais livros..."

Vacina

Fui convocado para, daqui a horas, tomar a primeira dose da vacina anti-covid. “Qual das vacinas vais tomar?” foi a pergunta que ouvi, da parte das pessoas a quem anunciei o espetamento que me aguarda. ”Sei lá! Nem me interessa”, respondi, para espanto de todos. E é pura verdade!

quarta-feira, abril 21, 2021

“A Arte da Guerra”


Esta semana, “Arte da Guerra”, o podcast para o Jornal Económico que semanalmente faço com o jornalista António Freitas de Sousa, é dedicado à América Latina: falamos dos reajustamentos na liderança cubana, das novas hipóteses políticas que as decisões judiciais oferecem a Lula da Silva no Brasil e do relativo “esquecimento” em que parece ter caído o governo de Nicolás Maduro na Venezuela.

Pode ver essa conversa aqui

terça-feira, abril 20, 2021

Nos 80 anos de Roberto Carlos



Foi em 2008. Ia numa longa viagem de trabalho pelo Ceará adentro, tendo ao meu lado uma senhora brasileira. Era uma mulher com responsabilidades na área da cultura, com sólida formação universitária. 

Muitas coisas vieram à conversa e, a certo ponto, surgiu o nome de Roberto Carlos, que ontem fez 80 anos. Perguntei-lhe como é que, depois de tantos anos de exposição pública, o cantor ainda era visto no país. A sua reação foi espontânea: "O rei? É o ídolo de todo o Brasil, adorado por todos! É o maior!".

Cometi o erro de não levar o comentário à letra e, um tanto brutalmente, disse-lhe o que pensava. 

Roberto Carlos fora um cantor muito popular em Portugal nos anos 60, com êxitos que, à época, muitos conhecíamos de cor, como "O Calhambeque" e coisas assim. Depois, ao que eu observara, a sua popularidade entre nós fora declinando progressivamente. A meu ver, isso ficava a dever-se ao facto de ele ter enveredado por um romantismo possidónio, quase "pimba" (terei dito "cafona"), num certo período com letras de cariz religioso, numa linha melódica repetitiva e, para o meu gosto, nada criativa, A tudo isto se somava uma imagem pública ridícula, típica de um canastrão irreconciliado com a idade, com um cabelo de arrepiar e trajes "retro", quase anos 70. Estranhava muito, por isso, ouvir expressada uma admiração pelo cantor, por parte de uma pessoa como ela. Lembro-me de não ter sido muito subtil...

A minha paciente interlocutora explicou-me então uma coisa que eu, apesar de estar no Brasil há vários anos, não entendera. Roberto Carlos estava "para além" das gerações, era uma figura mítica que unia todos os brasileiros, que tinha tido uma vida familiar trágica, com um comportamento que lhe grangeara um grande respeito público. Todos os anos - e acabou por ser a minha segunda grande surpresa - fazia pelo Natal um espetáculo que dava origem a um disco, o qual, por tradição, era uma das prendas dadas nessa época, por todo o Brasil.

"Mas... e aquela música? O que é que aquilo tem a ver com a fantástica riqueza da vossa música, de Tom Jobim a Chico Buarque, de Milton Nascimento a Gilberto Gil, de Ivan Lins a Caetano?" A minha acompanhante, com serena pedagogia, explicou-me que essa música, que eu ridicularizava, continuava a ser apreciada por muitos milhões de brasileiros, coexistindo, sem dificuldade, com as outras sonoridades que eu tanto apreciava, como era o caso da música sertaneja, que eu lhe gabara muito. O romantismo de Roberto Carlos era parte da alma brasileira e a religiosidade, que marcara fases da sua vida, era bem entendida e respeitada por todos. "No Brasil, há espaço para toda a música e nela haverá sempre um lugar eterno para o nosso "rei", para Roberto Carlos". Embatuquei.

Com o tempo, fui testando a mesma questão com outros amigos brasileiros. Nem um só, dentre todos eles, deixou de concordar, no essencial, com a opinião da minha interlocutora do Ceará. Aprendi assim que, às vezes, devemos relativizar em público os nossos gostos e, em particular, temos de fazer um esforço maior para entender os dos outros. Por muito que, no íntimo, continuemos a pensar o mesmo, claro.

O fundo da reforma

A quem se atrever a dizer que, num mês, este governo não fez nada que se visse, deixo esta impressionante imagem de uma reforma de fundo - l...